Continuando o estudo da origem do mundo, na linha dessas nossas reflexões, vejamos se é possível pensar essa origem como uma criação de coisas. Só podemos falar em coisas como de realidades intramundanas, isto é, como seres que se destacam numa prévia presença mundanal. A esse respeito, diz Heidegger: “O mundo não é simples conjunto das coisas numeráveis e inumeráveis, conhecidas e desconhecidas. Welt weitet (o mundo (223) mundifica) e é mais existente do que as coisas tangíveis e perceptíveis, entre as quais nos julgamos em segurança”. O problema da criação do mundo deve ser elaborado em função dessas novas concepções que mudam completamente a fisionomia da problemática mesma. A criação do mundo é o resultado de um projeto de possibilidades, de um ato poético, no sentido mais amplo da palavra, que descobre, descerra e instaura uma visão das coisas. Temos, portanto, acesso ao mundo, mediante um gesto de transcendência que estabelece um regime de inteligibilidade, uma compreensão articulada dos seres intramundanos. Essa doação de sentido às coisas não é uma tarefa do intelecto discursivo, mas sim uma façanha da exuberância imaginativa, da fantasia criadora que povoa a realidade de um sem-número de personagens e de significados. Uma interpretação defeituosa dessa teoria podería levar-nos a supor que o mito seria uma criação arbitrária e caprichosa do homem, quando na realidade, o homem é que é uma criação do mito. Mais do que isso: o homem só tem acesso às suas possibilidades, só cobra consciência de si mesmo, mediante a experiência poético-religiosa. Na sugestiva imagem de Heidegger, o homem grego não preexistiu, na plenitude de sua realidade, ao tempo de seus deuses, mas foi a presença do templo que tornou o grego, grego.
Dessas considerações decorre o que entendemos por origem do mundo, e qual o conceito que formamos da relação do homem com o polo inicial. O começo se propõe, portanto, como aurora de um sentimento do divino e do humano, como o desabrochar gradativo das anteposições axiológicas máximas, como o despertar de uma experiência inédita da vida. Esse começo, apesar de acontecer no tempo, retroage sobre o seu momento particular, alargando a perspectiva para um passado ainda mais remoto. Esse começo se apresenta como contendo em si um passado. Os deuses olímpicos gregos reportavam à linhagem teogônica das divindades ctônicas. O cristianismo acrescentou-se ao passado dos livros de Israel. A ideia da origem das coisas, assim compreendida, é um elemento essencial para a compreensão de (224) nossa realidade histórica é cultural. Nesse sentido, podemos dizer que o começo é o verdadeiro plasmador do homem histórico e que o mito é a paideia original da humanidade. Não podemos aceitar a tese platônica, hostil à fundação poética da educação e contra ele vemos em Homero o educador da Grécia.
Com o começo, entendido não como um ponto espaço-temporal, mas como um complexo de pressentimentos e de crenças, como nebulosa mítica, é proposto um destino. Ser-para-o-começo significa abraçar e identificar-se com os grandes modelos e exemplos de um dado círculo de possibilidades históricas. Não devemos pensar, entretanto, que num grupo histórico-cultural exista uma homogeneidade absoluta em relação às normas e valores gerais nele reinantes. Podemos descobrir, na evolução do pensamento grego, concorrentes orientalizantes que prenunciavam os futuros desenvolvimentos neoplatônicos. Nas épocas de maior unidade cultural, essas forças heterogêneas e discordantes parecem ter-se apagado diante da luminosidade das grandes ideias-força. São, entretanto, esses fermentos heréticos os pontos sensíveis a partir dos quais poder-se-ão desenvolver novas sementes culturais e históricas.