Hegel denomina “subjetividade concreta” esse universo omnicompreensivo projetado pela linguagem, esse mundo da linguagem, dentro do qual existimos e somos. A linguagem é uma “exteriorização da inteligência” na qual ela se põe dentro de si mesma; em outras palavras, só podemos ter acesso pensante ao que somos e à nossa própria inteligência, usando os meios discursivos da linguagem que é por sua vez uma exteriorização da inteligência. A linguagem, para o nosso filósofo, enquanto pôr-se em obra da imaginação produtiva, é “o sujeito que se dá na Imagem uma realidade efetiva e assim se demonstra a si mesmo”. Essa subjetividade concreta, esse sujeito que vive na linguagem, que é a linguagem (desde que na palavra se encontram identificados o conteúdo, a significação e o sinal), transcende infinitamente o puro sujeito pessoal e individual. Não é a palavra que está em nós, mas nós que estamos na palavra. E em verdade só podemos distinguir em nosso íntimo todas as nuances de nossa vida interior, todos os meandros do nosso ser, devido ao potencial analítico já existente na linguagem. “Não temos consciência de nossos pensamentos, não temos pensamentos determinados e reais, senão quando lhes damos a forma objetiva e os diferenciamos de uma interioridade e por consequência os marcamos com a forma externa, mas com uma forma que tem também o caráter da atividade interna mais alta”. Para Hegel, portanto, essa forma externa, a palavra e a linguagem, representam a atividade mais alta, são o produto de um produzir-se que traduz em suma a irrupção de uma originalidade criadora, justamente a da imaginação na sua forma produtiva. A palavra, portanto, não é um fato, uma existência morta, uma coisa, mas sim um ato, um transcender que continuamente emerge como virtualidade. Ao universo da linguagem, enquanto universo aberto pela palavra, pertencem de maneira evidente as obras de arte da linguagem, a grande esfera da poesia.
Se seguirmos o pensamento do filósofo Martin Heidegger, teríamos mesmo de afirmar que a própria essência da linguagem consistiria na poesia, pois nessa se daria a “nominação” (179) primordial do nominável, a abertura do ente como tal. A poesia e a arte, em consequência, não teriam brotado de um território linguístico utilitário reprodutivo, por uma aplicação especial dos recursos linguísticos, mas ao contrário a linguagem do canto e da celebração é que nos dariam a essência mais íntima do ato das palavras.
Na linha das nossas considerações, aliás, esse fenômeno é plenamente inteligível desde que a linguagem seria o próprio atuar da imaginação produtiva, a dimensão das imagens prototípicas. Falamos evidentemente aqui de uma Ur-poesie, dos mitologemas, cantos e rituais, que estão na Origem e na base de um ciclo de civilização. Nesse caso, a palavra não tem a função de reproduzir fatos, de trazer informações, mas de revelar magnas ocorrências e magnos valores no canto e pelo canto, que condicionam a existência em sua totalidade. A própria possibilidade de estarmos imersos e referidos a um mundo ordenado em significados e articulações de sentidos, nós a devemos à linguagem. Através dos símbolos nós conformamos e dominamos a riqueza desordenada dos estímulos sensoriais, o dilúvio das impressões, num sistema plenamente controlável de formas significativas ou inteligíveis. É o mundo do logos. Arnold Gehlen em seu recente trabalho Anthropologische Forschung (p. 51), lembra-nos que a interposição desse Zwischenwelt (mundo intermediário) simbólico entre nós e as coisas equivale a uma distanciação do mundo, e a possibilidade de estarmos realmente “abertos para um mundo”. A Weltoffenheit (abertura para o mundo) própria do homem, e à qual se referia Max Scheler, encontra a sua efetivação na ordem simbólica que permite a transformação do mero “meio ambiente” no qual o animal está imerso numa representação do mundo com suas linhas infinitas de desenvolvimento virtual. Gehlen, nesse estudo, assinala como esse Distanzierung von Mensch und Welt (distanciamento do homem e do mundo) implica numa decisiva alteração do comportamento do protagonista cultural. (180)
“O nosso comportamento torna-se sempre mais variado e cada vez mais potencial, um simples Poder (Können); o percebido torna-se uma simples sugestão de desenvolvimentos possíveis, aos quais nós em geral não nos abandonamos”. Volta aqui a ressurgir a tese fundamental de Fichte, segundo a qual o conceito de Liberdade não só é necessário para compreendermos o nosso Eu, mas igualmente decisivo para dar razão à forma que as coisas assumem para nós. Como já tivemos ocasião de assinalar acima, as próprias percepções, a representação das coisas, já constituem convites e sugestões a desenvolvimentos e comportamentos eventuais. Entretanto, a linguagem e a imaginação criadora é que estão à base dessa revelação ou desocultação da cena móvel, em que o agente humano desempenha o desempenhável. Sem o poder modelante da imaginação, interpretada, se quisermos, como “iluminação do ente”, (Heidegger), ou como poder de escolha entre várias possibilidades, não existe qualquer campo para comportamentos e ação.