Ferreira da Silva (2010:101-105) — A nova compreensão do ser

Como encontramos diversas vezes afirmado nos trabalhos de Heidegger, é necessário renunciar às incitações do ente, inclusive do ente que somos, para receber a graça do Ser. De fato, o ente nada mais é do que o sugerido pela magia projetiva do Ser. O sugerido, entretanto, se manifesta como uma sugestão, como algo em relação ao qual nós subjazemos ou estamos entregues. Entregues ao sugerido do ente, só podemos interpretar o que nos é consignado e oferecido, fato que não só se realiza na figura presente do ente, como também e primordialmente no que há de ser do próprio oferecido. O Ser é o Sugestor da sugestão do sugerido. O ente viría a nós a partir da essência ek-stática da sugestão. O sugerido é o que é proposto, isto é, posto como imagem a cumprir, ou como imagem antecipadamente esboçada. Essas imagens não seriam as nossas imagens das coisas, imagens de imagens, mas sim as próprias coisas como imagens prototípicas. O sugerido originário das imagens seriam as coisas fluindo da imaginação prototípica do Sugestor. Eis por que a sugestão não poderia provir do ente ou das coisas, desde que esse ente já seria o sugerido pela instauração originária. O sugerido tem, entretanto, a sua fonte no Sugestor, sendo esse termo apto para designar o domínio projetante do Ser, isto é, o Aberto da liberdade instauradora. Frobenius afirmara ser o homem um “receptor de realidade”, ou ainda, um receptor de desempenhos possíveis. No fundo, o receptor e o recepcionado seriam uma só coisa, desde o momento em que compreendêssemos universalmente o ente como algo consignado por um poder transcendente e esse poder, por sua vez, como uma Lichtung des Seins. Não existiría, portanto, em primeiro lugar o homem como receptor e depois as diversas incitações aos “jogos” histórico-culturais. Pelo contrário, os desempenhos sugeridos, o ente revelado, constituem o próprio ser do protagonista, de forma que o jogar do jogo seria o próprio jogador. O jogo, porém, é o que sugestiona e fascina. Eis por que poderemos compreender a vigência do ente como Fascinação.

Essa conexão de ideias deve levantar-nos a uma nova experiência do Ser, infensa a qualquer transcrição intelectualista, ou (101) que diga respeito ao conhecimento enquanto tal. Se uma aproximação do Ser só nos é facultada por um ultrapassar o oferecido do ente, e, portanto, por uma experiência do aberto do Ser, não devemos pensar esse domínio do aberto como uma simples vacuidade inerte ou como um não ser desválido e anódino. O Ser não é unicamente o prodigalizador de essências, mas sim e inicialmente o suscitador de paixões, a Fonte trópica de todos os comportamentos. Heidegger já ensinara que a ex-posição ao ente é sempre acompanhada de uma sintonização emocional com a totalidade do ente descoberto. O traçar do ente se manifestaria como a irrupção de um campo emocional e não como um simples desenhar de essências visualizáveis ou como um mundo de representações. Existiría mesmo uma precedência da Befindlichkeit, do encontrar-se afetivo no interior do ente, em relação ao prospecionar-se projetivo do ente. O desvelamento iluminante do ente se daria, portanto, como um stimmend Seinlassen von Seienden 1, como franquia emocional do ente descoberto. Entretanto, falar do Ser como força iluminante nos remete a um setor de metáforas de ordem visual e intelectualística, propenso a transviar-nos na compreensão da originalidade da experiência do Ser. Devemos ter em mente, na nossa meditação, a relação da dimensão da liberdade fundante com o sentido pulsional da realidade.

O ente determinado como o sugerido em possibilidades manifesta-se, outrossim, como Fascinação, isto é, como o ser-tomado (Ergriffensein) pelo revelado enquanto revelado. A fascinação é o próprio rigor de uma projeção do mundo. A Fascinação é a essência última do ente, compreendido como realidade des-coberta pela Fascinação. A experiência do Ser dar-se-ia no adentrar-se, no intimizar-se com a força trópica da fascinatio. Poderíamos esclarecer esses mesmos fenômenos abordando-os por um ângulo mais ilustrativo. Para nós, o documento originário do Ser manifesta-se na vida prototípico-divina, isto é, na Mitologia. Se para Heidegger o “pôr-se em obra” da verdade do Ser dá-se na Poesia, para nós, essa deve ser, antes de tudo, compreendida como Poesia (102) transumana, como Poesia em si, como vida transcendente das potências divinas. Os Deuses encarnaram de maneira insuperável a fulguração imediata do Fascinator, os Deuses são essa fulguração imediata do Fascinator, os Deuses são essa fulguração mesma, enquanto vida produtiva em si e por si. Se meditarmos, por outro lado, na atuação dos Deuses no cenário da História, no contragolpe do seu debruçar-se sobre as coisas, verificaremos que a presença de um Deus manifesta-se sempre e essencialmente como Fascinação e através de um despertar de um mundo de paixões. A Teologia cristã acostumou-nos a considerar unicamente Satanás como o Tentador, não tendo em vista que o seu polo oposto divino também se manifestava à sensibilidade cristã como tentação e atração amorosa, como Fascinação. A diacosmese de um Deus é a área revelada pelos eros divino, é o que se prospeciona e delineia por força dessa teofania.

É a partir de uma experiência do divino que devemos alçar-nos a uma experiência idônea do Ser. Seguindo as insinuações dessa experiência veremos, em primeira linha, que o fundo oculto da realidade não é uma substância inerte ou indiferente, ou uma Ideia, mas sim uma inexaurível Fonte de Atrações, uma instância mágico-transcendente que suscita o soerguer-se do ente enquanto configuração fascinada. O Ser é o Sugestor, o Fascinator, aquilo cuja manifestação ou fulguração se dá como polo pulsional erótico e que traça ou des-vela as coisas ao fasciná-las. Eis por que Heidegger relaciona a proximidade do Ser com a experiência do estranho, do espantoso (Ungeheure), desde que essa experiência nos remete ao Poder selvagem e incalculável que comanda a instrução dos mundos. A compreensão do Ser, como essência fundante, acompanha a experiência desse mesmo Ser, como propensão abismal além do já fundado, como luta de princípios na sequência do divino. O apelo do sagrado faz-nos romper com as possibilidades dadas, com o ente assegurado, através do vir a nós de novas possibilidades e do sortilégio de uma singular epifania. Inicialmente, entretanto, esse chamado se manifesta unicamente como inquietação do espírito, como vertigem do (103) abismo que ainda não irrompeu num novo meio-dia do sagrado. O “ser fascinado” além do já dado é a experiência da experiência da essência trópico-fascinante do Ser. O domínio do Ser é um Poder Passional, um foco de propensões e de parcialidades, e não um domínio isento e equilibrado. Eis por que a experiência do Ser é uma experiência de arrebatamento e de sugestão.

Se para caracterizarmos a atuação essencial do Ser falávamos de uma destinação do Ser (Schickung des Seins) de uma consignação de possibilidades, devemos ter em mente que isso implica um ater-se ao consignado, um ser tomado pelo ente oferecido. Entretanto, esse abandonar-se e subsumir-se ao oferecido, a ponto de que o receptor é o próprio oferecido, constitui a essência da Fascinação. Se a consistência última do Ser se esgota no iluminar projetivo, de forma a se resolver, em última instância, num poder consignante inexaurível, então podemos identificar a área do Ser com um puro foco fascinante. A realidade do Ser traduz-se nesse poder mágico-poético, nessa fascinação omnimoda. Além do já conseguido, manifesta-se o Poder consignante transcendente, além do oferecido manifesta-se o Oferecer do ainda não oferecido, além do fascinado se insinua o Poder mágico-encantatório do Ser. O Ser é um baixar da balança, um princípio faccioso, tendencioso, um contínuo “escolher” instaurador. Assim como se manifesta na figura singular dos deuses essa ameaça arrebatadora, esse rapto instituidor do ente, assim também, e por antonomásia, a dimensão do Ser se manifesta como a dimensão trópica por excelência. É ela o reino do tendencioso, não pelo fato de preferir isso àquilo, desde que não existe ainda o isso ou o aquilo no reino ek-stático do Ser, mas por projetar facciosamente as tendências e as formas pulsionais do cenário do mundo. E como no sugerir do Sugestor se esgota a alma do Ser, é-nos lícito caracterizá-lo como domínio tendencioso e ameaçador. O que é ameaçado do Ser é o ente em sua totalidade, é o direito adquirido do já consignado do ente. O permanecer no já instituído e fundado constitui o puro errar no não fundamento. É o errar que in-siste em si mesmo e que se quer proteger contra o abismar-se (104) no Abismo fundante. De nada vale ao esquecimento, entretanto, empunhar o esquecimento contra a memorização do memorável do Ser, desde que a essência nadificante do Ser rói, em suas bases, o edifício do esquecimento. Essa atuação nadificante do Ser ou Fascinator é, em sua essência, o próprio pensamento do Ser, como ir além de todo o ente. Esse novo pensar pensa o Fascinator e é o próprio Fascinator, como ruptura mágica do esquecimento.

  1. (Um) Afinado permitir do ente. (N. O.)[]