45. Não vemos qualquer objeção válida da parte de quem nos chame a atenção sobre o que de mais sabemos. E o que por de mais sabemos é que o homem morto, o seu corpo sem vida como o de qualquer outro animal, é matéria orgânica ou organizada, que se vai degradando até que só lhe restem os ossos descarnados. Deste ponto de vista, até se pode dizer que o homem começa morrendo no instante em que nasce. Que é nestas circunstâncias da imortalidade que, por ser o divino no homem, se constitui em núcleo de todas as religiões? Contra a mais clara das evidências, o homem persiste e insiste em considerar-se divino, enquanto insubmisso à fatal condição da morte. E contra tal persistência e (133) insistência, não vale o facto indefinidamente repetido. A crença, a fé, não é cega. Resta averiguar o que ela viu e crê. Ao que me parece, é que a morte sempre esteve, está e estará no tempo, com suas dimensões de passado, presente e futuro, e no espaço, com suas dimensões de proximidade e distância, para trás e para a frente, e que a sua negação, que é a imortalidade, semelhante à divindade no homem, consiste precisamente em que as portas da vida e da morte se desengoncem do tempo, para se fecharem e abrirem no trans-objetivo, com suas indimensionais dimensões de Lonjura e do Outrora. Aí o homem é símbolo, e o ser-origem acrescido à coisa que era não pode estar no tempo, em que tudo o que começa terá de acabar em dia mais ou menos distante. Imortalidade é só a da originalidade do homem inserido no simbólico. Eu sou imortal só em algum ponto singular de uma curva traçada na pseudo-superfície de trans-objetividade, provisto que seja capaz de nela me «situar». E para isso não há método. Só uma coisa sei: há que transpor em vida um limes-limen, um horizonte que é limite-liminar, e que este é o do mundo em que minha alma está à venda pelo preço de mais ou menos elevado número de «coisas» que fazem que me encha de mim, do «mim» que é fabricante delas e por elas usado a bel-prazer do Diabo. (EudoroMito:133-134)
Eudoro de Sousa (MHM:133-134) – morte
- Eudoro de Sousa (2002:162) – três estados do pensamento humano [Comte]
- Eudoro de Sousa (2002:163-164) – homem e mundo comparticipam mesmo projeto do Ser
- Eudoro de Sousa (2002:166-167) – Teoria dramática do conhecimento
- Eudoro de Sousa (HC:205-206) – Divindade
- Eudoro de Sousa (HCSM:104-110) – Empédocles
- Eudoro de Sousa (HCSM:110-112) – mundo é uma caverna
- Eudoro de Sousa (HCSM:112-113) – Ideia do Bem
- Eudoro de Sousa (HCSM:114-115) – noûs, dianoia, pistis, eikasia
- Eudoro de Sousa (HCSM:115-118) – Mito da Caverna
- Eudoro de Sousa (HCSM:118-123) – interpretação da República VI e VII (504d-517c)