67. «Agora afigura-te a condição da nossa própria natureza, quanto à relação entre cultura e incultura, da maneira que vai seguir. Representa-te homens que vivem numa espécie de morada subterrânea, em forma de caverna, que tem, em toda a sua largura, uma entrada que abre para a luz do dia; no interior desta morada, desde a infância, que estão agrilhoados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que permanecem no mesmo lugar, não veem senão o que está diante deles, e não podendo, por força dos grilhões que lhes imobilizam a cabeça, voltá-la em redor. Quanto à luz, é a que lhes vem de um fogo que arde atrás deles, no alto e ao longe. Entre este fogo e os prisioneiros, imagina uma senda elevada, ao longo da (115) qual tenham construído um muro baixo, semelhante ao tapume que os exibidores de fantoches colocam diante dos homens que os manobram, e acima do qual os apresentam aos olhos do público (…). Então, ao longo do murozinho, imagina homens que transportam, excedendo-o, toda a espécie de objectos fabricados, estátuas, ou ainda, animais de pedra, de madeira, plasmados em toda espécie de material; e naturalmente, de entre os homens que desfilam, há uns que falam e outros que nada dizem. — Estranha descrição e estranhos prisioneiros! — A nós, se assemelham eles! Com efeito, crês tu que homens, na situação deles, tenham visto, por si ou por seus vizinhos, mais do que as sombras que o fogo projecta na parede da caverna, que se lhes defronta? (…) E agora, se pudessem conversar uns com os outros, não crês que, dando nome ao que veem, pensariam designar as próprias realidades? (…) E se na prisão houvesse um eco proveniente da parede fronteira? Quando falasse um dos que passam ao longo do muro, não te parece que eles poderíam julgar que essas palavras emanavam da sombra que perpassa ao longo da parede? (…) Portanto, homens em tais condições, só teriam por realidade as sombras projectadas por objectos fabricados (…). Considera, agora, o que fariam se os libertassem de suas cadeias e os curassem de sua ignorância; se as coisas se passassem como vou dizer-te. Quando um desses homens for libertado e obrigado subitamente a se erguer, a voltar a cabeça, a caminhar, a olhar para o lado da luz; quando, assim, fazendo, sofrer; quando, pelo deslumbramento, não for capaz de encarar os mencionados objectos, cujas sombras via outrora, ao que te parece, que respondería ele, se lhe dissessem que há pouco não via senão inconsistências vãs mas agora, mais próximo da realidade, e voltado para objectos mais reais, sua visão é mais correcta? E que diria se, designando-lhe cada uma das coisas que passam ao longo do muro, o forçassem a responder a perguntas acerca do que é cada uma delas? Julgas que não ficaria embaraçado? Que mais verdadeiras lhe pareceríam as coisas que outrora via, do que as que agora lhe mostram? (…) Mas, dize-me, se o obrigassem, ainda, a erguer os olhos até à própria luz, pensas que não sofreria dos olhos, e que, voltando as costas, não fugiria para as outras coisas, para aquelas que era capaz de olhar, e que essas não lhe pareceríam mais verdadeiras do que as que lhe apontam agora? (…) Supõe, depois, que à força o arrancam de lá e o fazem subir a rampa rude e escarpada e não o deixam antes de o haver arrastado para fora, para a luz do Sol. Não se afligiría ele, não se revoltaria por assim ter sido arrastado? E, uma vez chegado à luz natural, de olhos cheios de seu (116) brilho, seria ele capaz de ver um único destes objectos que nós, agora dizemos verdadeiros? (…) Ao que me parece, ele teria, pois, necessidade de se acomodar, para conseguir ver as coisas do mundo superior. Primeiro, só olharia facilmente as sombras delas, e depois, na superfície das águas, os simulacros dos homens, assim como os dos outros entes; mais tarde, veria esses mesmos entes. Depois destas experiências, poderia, durante a noite, contemplar os corpos celestes e o próprio céu, fitar a luz dos astros, a Lua, mais facilmente do que, durante o dia, o Sol e o brilho do Sol (…). Por fim, penso eu, seria a vez do Sol, não reflectido na superfície das águas, nem a aparência do Sol em lugar em que ele não está, mas o próprio Sol, no lugar que é o seu; em suma, poderia enfim contemplá-lo tal como ele é (…). Depois chegaria a concluir, razoando acerca do Sol, que é ele quem produz as estações e os anos, quem tudo governa no mundo visível, e é, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna (…). Mas não pensas que, recordando o lugar que antes habitava e a sabedoria desse mundo inferior, e os seus companheiros de grilhões, se louvaria pela mudança e se apiedaria deles? (…) Quando às honras e aos louvores que, suponho, outrora prestavam uns aos outros, e aos prêmios concedidos àquele que, de olhos mais penetrantes, distinguia as sombras que passavam na parede, que se lembrava com maior exactidão aquelas que passsavam antes, depois e concomitantemente, que mais capacidade tinha para extrair dessas observações, conjecturas sobre a que estava na iminência de chegar, achas que ele os invejaria e teria ciúme daqueles que, entre os prisioneiros, tivessem conquistado honras e crédito? Ou não pensaria, como o Aquiles de Homero, e não prefiriria absolutamente ‘viver, empunhando o arado, a serviço de um pobre lavrador’; que aceitaria qualquer provação a voltar a julgar como lá no fundo da caverna se julgava, a viver como lá se vivia? (…) Imagina mais o seguinte: que um homem tal, tornava a descer à caverna, e voltava a sentar-se no assento que ocupara. Não ficaria ele com os olhos ofuscados pelas trevas, vindo bruscamente do sol? (…) E se necessário lhe fosse reenunciar juízos acerca das sombras e concorrer com os prisioneiros que nunca se libertaram de suas cadeias — isso, de olhar ainda conturbado e antes que sua vista se reacomodasse — e se, para tal, não lhe concedessem mais do que um breve prazo, a situação se prestaria ao riso. Não se diria que, da ascensão ao mundo superior, chegara com a vista enfraquecida e que nem vale a pena tentar a ascensão? E se alguém quisesse libertá-los e os obrigassem a subir a rampa, não crês que, se de algum modo o (117) pudessem prender e matá-lo, efectivamente o não matariam? (…) Esta imagem (…) toda ela se aplica ao que antes dizíamos, se assimilarmos o mundo visível à estadia na prisão, e a luz do fogo, que a alumia, ao efeito do sol; a subida ao mundo superior e a contemplação do que nesse mundo existe, à via da alma para ascender ao mundo inteligível, não te enganarás sobre o meu pensar, já que desejas conhecê-los. Deus sabe que este pensamento é verdadeiro! Em todo o caso, tal é a minha opinião: que nos derradeiros limites do mundo inteligível está a ideia do Bem, que dificilmente se apercebe, mas de que não podemos aperceber-nos sem deixar de concluir que ela é a causa universal de tudo quanto existe de bom e de belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz e o Soberano da luz; e que, no mundo inteligível, é dele que emana a verdade e a razão.»
Eudoro de Sousa (HCSM:115-118) – Mito da Caverna
- Eudoro de Sousa (2002:162) – três estados do pensamento humano [Comte]
- Eudoro de Sousa (2002:163-164) – homem e mundo comparticipam mesmo projeto do Ser
- Eudoro de Sousa (2002:166-167) – Teoria dramática do conhecimento
- Eudoro de Sousa (HC:205-206) – Divindade
- Eudoro de Sousa (HCSM:104-110) – Empédocles
- Eudoro de Sousa (HCSM:110-112) – mundo é uma caverna
- Eudoro de Sousa (HCSM:112-113) – Ideia do Bem
- Eudoro de Sousa (HCSM:114-115) – noûs, dianoia, pistis, eikasia
- Eudoro de Sousa (HCSM:118-123) – interpretação da República VI e VII (504d-517c)
- Eudoro de Sousa (HCSM:123-124) – indizibilidade do Ser