Ethos enquanto morada do ser

A questão da relação entre vida animal e vida humana é para Heidegger, imperativamente, uma questão de mundo, de que “mundo” é e o que significa “ter” um mundo e ser “em” um mundo. Entretanto, compreendemos o status de animais e de diferentes modos de vida animal, sempre inevitavelmente o fazemos em termos de uma compreensão de mundo. Ser na maneira de seres humanos não significa, no discurso de Heidegger, ser uma entidade de uma certa espécie, com certas características especificáveis e habilidades (uma concepção que Heidegger vê como uma forma de reducionismo científico que omite a própria abertura e indeterminabilidade de nosso Ser). Significa, ao invés, nada mais do que ser sujeito a, e considerado por, esta reivindicação antecedente de um mundo historicamente determinado. A distinta auto-relação da vida humana, a habilidade de ser (de habitar) em uma relação para com seu próprio Ser, pressupõe um “ek-statico” Ser-fora-de-si-mesmo de nosso Ser mesmo, uma ek-stase que é possível somente como uma relação para com o fenômeno do mundo. A investigação de Heidegger sugere, entretanto, que o mundo — compreendido como o aberto manifestar-se de entes como tais e como um todo — não é nem puramente ontológico nem um fenômeno transcendental, mas é temporalizado historicamente em e como o desdobramento da existência humana. O evento poietico da “formação-do-mundo” é, nesta interpretação, não apenas isso que o ser humano realiza em e através de suas ações; ao invés, isto primeiramente capacita nosso próprio Ser, nossa auto-compreensão e habilidade a se relacionar a nós mesmos como entes que já estão manifestos. De fato, o desfechar primordial do mundo, Heidegger argumenta, não é de modo algum uma realização do já existente ser humano, nem, por conseguinte, da auto-compreensão ou intelecto humano. É, ao invés, realizada pelo fenômeno de afinamento, através do qual somos primeiramente desfechados para nós mesmos como sendo desta ou daquela maneira, no meio de entes como um todo. Afinamento, como Heidegger já argumentava em sua obra de 1927, Ser e Tempo, é primordial em capacitar nossa própria morada, nosso êthos (eta inicial). Mesmo se tal êthos possa subsequentemente ser modificado pela compreensão, pelo logos e pela deliberação, tal compreensão no entanto sempre permanece responsiva a um afinamento e modo de Ser que já é dado e situado, localizado em um local particular ou sítio de morada. Esse logos (seja como linguagem, pensamento ou compreensão) nem origina nem coincide com o primordial desfechar de nosso próprio Ser, é, no entanto, por um lado positivo, nosso sempre já ter partido de onde estávamos, nosso ek-statico Ser-fora-de-nós-mesmos como um ente em constituição, uma partida que é precisamente capaz de permitir ser, de deixar ser (Seinlassen) — em um deixar que capacita nossa própria morada. Uma retirada do sítio da presença, uma morada em tal retirada, capacita nosso próprio retorno, nossa emergência à presença, mesmo embora tal retorno esteja sempre limitado ao momento. No caso daqueles entes que reconhecemos e aquiescemos como animais, seu lugar de morada, em contraste, coincide com um abrigo habitual ou meio, um habitat (e este é de fato um sentido-raiz do qual deriva êthos). O abrigo do ser humano, tal morada oculta, marca o ser humano como um sítio excepcional de desfechar e auto-ocultar, como tendo um êthos que é verdadeiramente abrigante, ao mesmo tempo sem ardis, unheimlich.