Essência do homem

Menschenwesen [essência humana], Wesens des Menschen [ESSÊNCIA DO HOMEM] […] ou bem todos os traços que o homem acredita encontrar no ser são extraídos à imagem do homem [Bilde des Menschen], ou bem a fisionomia do homem [Gestalt des Menschen] é somente uma das muitas outras manifestações do ser [Erscheinungen des Seins]. No segundo caso, essas manifestações, na verdade, ainda deveriam ser buscadas e encontradas pelo homem. Mas como isso poderia acontecer se o homem [Mensch] não fosse passível de formação através da forma e visão do ser [das Bild und den Anblick des Seins], permitindo, assim, que o ser lhe advenha a partir dele mesmo? Então não teria o menor valor esse ou-ou, ou tudo é somente uma imagem e um feito do homem [menschliches Gebild und Gemächte], ou tudo é somente reprodução do ser [Abdruck des Seins]. A referência [Bezug] do ser ao homem seria o originário [Ursprüngliche], à medida que essa referência tanto distingue o ser como também pertence originariamente ao homem. E não se poderia fazer a experiência [erfahren] de ser na ausência de uma experiência mais originária da ESSÊNCIA DO HOMEM [ursprünglichere Erfahrung des Wesens des Menschen], e vice-versa. Para o ser e para a essência humana [Menschenwesen], esse originário seria onde eles teriam a sua verdade e a sua referência. O verdadeiro seria a referência entre ambos, que predomina no ser e no mais íntimo da essência humana, enquanto sua origem. A indicação deste nexo praticamente impensado deve chamar nossa atenção para o fato de que o próprio ser não se deixa, absolutamente, apreender como uma coisa ou um objeto. Não porque seria o mais distante do homem, mas, justamente, é por ter chegado a uma tal proximidade e ter conquistado a distância necessária para a possibilidade de apreensão que o homem retrocede diante do ser até a sua própria essência, o que significa algo inteiramente diferente de desviar-se do ser. Por isso, também lá onde o próprio ser é nomeado numa primeira vez, lá no começo do pensamento ocidental, as relações agora sublinhadas encontravam-se num jogo estranhamente velado. Para nós, os epigonais, o provocativo é pensar que também para os primeiros pensadores, e justamente para eles, o dizer do ser era cheio de enigmas. Pensando aquilo que dizem os primeiros pensadores, recebemos o aceno de que devemos atentar de maneira ainda mais principial e rigorosa para a sua via e, assim, para a referência ao ser e para o próprio ser somente a partir desta referência. [GA55:293-294; tr. Schuback]


De bem outra espécie é aquela dis-posição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar ti tó ón – que é o ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo. Pois na Idade Média certitudo não significava certeza, mas a segura delimitação de um ente naquilo que ele e. Aqui certitudo ainda coincide com a significação de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a ESSÊNCIA DO HOMEM penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um clare et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A disposição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna. [MHeidegger:Que é isto – A Filosofia?]


A disposição para a angústia é o sim à insistência para realizar o supremo apelo, o único que atinge a ESSÊNCIA DO HOMEM. Somente o homem, em meio a todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: que o ente é. Aquele que assim é chamado em sua essência para a verdade do ser está, por isso, continuamente envolvido, de maneira fundamental, na disposição de humor. A clara coragem para a angústia essencial garante a misteriosa possibilidade [69] da experiência do ser. Pois, próximo à angústia essencial, como espanto do abismo, reside o respeito humilde. Ele ilumina e protege aquele lugar da ESSÊNCIA DO HOMEM no seio do qual ele permanece familiar no permanente. [MHeidegger:QUE É METAFÍSICA?]


É por isso que também se torna necessária a formulação do que até agora foi silenciado: situa-se este pensamento já na lei de sua verdade se apenas segue aquele pensamento compreendido pela “lógica”, em suas formas e regras? Por que põe a preleção esta expressão entre aspas? Para assinalar que a “lógica” é apenas uma das explicações da essência do pensamento; aquela que já, o seu nome o mostra, se funda na experiência do ser realizado pelo pensamento grego. A suspeita contra a lógica – como sua consequente degenerescência pode valer a logística – emana do conhecimento daquele pensamento que tem sua fonte na experiência da verdade do ser e não na consideração da objetividade do ente. De nenhum modo é o pensamento exato o pensamento mais rigoroso, se é verdade que o rigor recebe sua essência daquela espécie de esforço com que o saber sempre observa a relação com o elemento fundamental do ente. O pensamento exato se prende unicamente ao cálculo do ente e a este serve exclusivamente. Qualquer cálculo reduz todo numerável ao enumerado, para utilizá-lo para a próxima enumeração. O cálculo não admite outra coisa que o enumerável. Cada coisa é apenas aquilo que se pode enumerar. O que a cada momento é enumerado assegura o progresso na enumeração. Esta utiliza progressivamente os números e é, em si mesma, um contínuo consumir-se. O resultado do cálculo com o ente vale como o enumerável e consome o enumerado para a enumeração. Este uso consumidor do ente revela o caráter destruidor do cálculo. Apenas pelo fato de o número poder ser multiplicado infinitamente e isto indistintamente na direção do máximo ou do mínimo, pode ocultar-se a essência destruidora do cálculo atrás de seus produtos e emprestar ao pensamento calculador a aparência da produtividade, enquanto, na verdade, faz valer, já antecipando e não em seus resultados subsequentes, todo ente apenas na forma do que pode ser produzido e consumido. O pensamento calculador submete-se a si mesmo à ordem de tudo dominar a partir da lógica de seu procedimento. Ele não é capaz de suspeitar que todo o calculável do cálculo já é, antes de suas somas e produtos calculados, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao incalculável que se subtrai a si e sua estranheza das garras do cálculo. O que, entretanto, em toda parte e constantemente, se fechou de antemão, às exigências do cálculo e que, contudo, já a todo momento, é, em sua misteriosa condição de desconhecido, mais próximo do homem que todo ente, no qual ele se instala a si e a seus projetos, pode, de tempos em tempos, dispor a ESSÊNCIA DO HOMEM para um pensamento cuja verdade nenhuma “lógica” é capaz de compreender. Chamemos de pensamento fundamental aquele cujos pensamentos não apenas calculam, mas são determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser. Este pensamento responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega sua essência historial à simplicidade da única necessidade que não violenta enquanto submete, mas que cria o despojamento que se plenifica na liberdade do sacrifício. [MHeidegger: QUE É METAFÍSICA?]


E preciso que seja preservada a verdade do ser, aconteça o que acontecer ao homem e a todo ente. O sacrifício é destituído de toda violência porque é a dissipação da ESSÊNCIA DO HOMEM – que emana do abismo da liberdade – para a defesa da verdade do ser para o ente. No sacrifício se realiza o oculto reconhecimento, único capaz de honrar o dom em que o ser se entrega à ESSÊNCIA DO HOMEM, no pensamento, para que o homem assuma, na referência ao ser, a guarda do ser. [MHeidegger: QUE É METAFÍSICA?]


Na medida em que, constantemente, apenas representa o ente enquanto ente, a metafísica não pensa no próprio ser. A filosofia não se recolhe em seu fundamento. Ela o abandona continuamente e o faz pela metafísica. Dele, porém, jamais consegue fugir. Na medida em que um pensamento se põe em marcha para experimentar o fundamento da metafísica, na medida em que um pensamento procura pensar na própria verdade do ser, em vez de apenas representar o ente enquanto ente, ele abandonou, de certa maneira, a metafísica. Visto da parte da metafísica, o pensamento se dirige de volta para o fundamento da metafísica. Mas, aquilo que assim aparece como fundamento, se experimentado a partir de si mesmo, é provavelmente outra coisa até agora não dita, segundo a qual a essência da metafísica é bem outra coisa que a metafísica. Um pensamento que pensa na verdade do ser não se contenta certamente mais com a metafísica; um tal pensamento também não pensa contra a metafísica. Para voltarmos à imagem anterior, ele não arranca a raiz da filosofia. Ele lhe cava o chão e lhe lavra o solo. A metafísica permanece a primeira instância da filosofia. Não alcança, porém, a primeira instância do pensamento. No pensamento da verdade do ser a metafísica está superada. Torna-se caduca a pretensão da metafísica de controlar a referência decisiva com o ser e de determinar adequadamente toda a relação com o ente enquanto tal. Esta “superação da metafísica”, contudo, não rejeita a metafísica. Enquanto o homem permanecer animal rationale é ele animal metaphysicum. Enquanto o homem se compreender como animal racional, pertence a metafísica, na palavra de Kant, à natureza do homem. Se bem sucedido, talvez fosse possível ao pensamento retornar ao fundamento da metafísica, provocando uma mudança da ESSÊNCIA DO HOMEM de cuja metamorfose poderia resultar uma transformação da metafísica. [MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]


Com o advento ou a ausência da verdade do ser, está em jogo outra coisa: não a constituição da filosofia, não apenas a própria filosofia, mas a proximidade ou distância daquilo de que a filosofia, com o pensamento que representa o ente enquanto tal, recebe sua essência e sua necessidade. O que se deve decidir é se o próprio ser pode realizar, a partir da verdade que lhe é própria, sua relação com a ESSÊNCIA DO HOMEM ou se a metafísica, desviando-se de seu fundamento, impedirá, no futuro, que a relação do ser com o homem chegue, através da essência desta mesma relação, a uma claridade que leve o homem à pertença ao ser. [MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]


Mas quem pensa ainda no que foi pensado? Inventam-se coisas. O pensamento tentado em Ser e Tempo está “a caminho” para situar o pensamento num caminho em cuja marcha possa alcançar o interior da relação da verdade do ser com a ESSÊNCIA DO HOMEM; está em marcha para abrir ao pensamento uma senda na qual medite consentaneamente o ser mesmo em sua verdade. Neste caminho, e isto quer dizer, a serviço da questão da verdade do ser, torna-se necessária uma reflexão sobre a ESSÊNCIA DO HOMEM; pois a experiência do esquecimento do ser, ainda não expressa porque exigindo demonstração, encena em si a conjectura da qual tudo depende, de que, conforme o desvelamento do ser, a relação do ser com o homem pertence ao próprio ser. Mas como poderia esta conjectura aventada tornar-se mesmo apenas uma pergunta expressa sem que antes se empenhassem todos os esforços para libertar a determinação fundamental do homem da subjetividade e da definição do animal rationale…? [MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]

Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra a revelação do ser com a ESSÊNCIA DO HOMEM, como também a referência fundamental do homem à abertura (“aí”) do ser enquanto tal, foi escolhido para o âmbito essencial, em que se situa o homem enquanto homem, o nome “ser-aí”. Isto foi feito, apesar de a metafísica usar este nome para aquilo que em geral é designado existentia, atualidade, realidade e objetividade, não obstante até se falar, na linguagem comum, em “ser-aí humano”, repetindo o significado metafísico da palavra. Por isso obvia toda possibilidade de se pensar o que nós entendemos quem se contenta apenas em averiguar que em Ser e Tempo usa-se, em vez de “consciência”, a palavra “ser-aí”. Como se aqui estivesse apenas em jogo o uso de palavras diferentes, como se não se tratasse desta coisa única: da relação do ser com a ESSÊNCIA DO HOMEM e com isto, visto a partir de nós, como se não se tratasse de levar o pensamento [81] primeiramente diante da experiência essencial do homem, suficiente para a interrogação decisiva. Nem a palavra “ser-aí” tomou o lugar da palavra “consciência”, nem a “coisa” chamada “ser-aí” passou a ocupar o lugar daquilo que é representado sob o nome “consciência”. Muito antes, com o “ser-aí” é designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experimentado como âmbito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser adequadamente pensado. [MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]


Mas esta ordem pode também – desligada da ideia de criação – ser representada de modo geral e indeterminado como ordem do mundo. Em lugar da ordem da criação teologicamente, surge a ordenação possível de todos os objetos pelo espírito que, como razão universal (mathesis universalis), se dá a si mesmo sua lei e postula, assim, a inteligibilidade imediata das articulações de seu processo (aquilo que se considera como “lógico”). Não é então mais necessário que se justifique, de maneira especial, por que a essência da verdade da proposição reside na conformidade da enunciação. Mesmo lá, onde, com notório insucesso, se procura esclarecer o modo como se fixou esta conformidade, ela já sempre está pressuposta como a essência da verdade. Paralelamente, a verdade da coisa significa sempre o acordo da coisa dada com seu conceito essencial, tal como o “espírito” (a razão) o concebe. Assim, pode parecer que esta concepção de essência da verdade seja independente da interpretação relativa à essência do ser de todo ente: esta última inclui, entretanto, necessariamente uma interpretação correspondente da ESSÊNCIA DO HOMEM como sujeito que é portador e realizador do intellectus. Assim, a fórmula da essência da verdade (veritas est adaequatio intellectus et rei) adquire, para cada um e imediatamente, uma evidente validez. Sob o império da evidência deste conceito de essência da verdade, mal e mal meditada em seus fundamentos essenciais, admite-se como igualmente evidente que a verdade tem um contrário e que há a não-verdade. A não-verdade da proposição (não-conformidade) é a não concordância da enunciação com a coisa. A não-verdade da coisa (inautenticidade) significa o desacordo de um ente com sua essência. A não-verdade pode ser compreendida cada vez como não estar de acordo. Isto fica excluído da essência da verdade. É por isso que a não-verdade, enquanto pensada como parte contrária da verdade, por ser negligenciada quando se trata de apreender a pura essência da verdade. [MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE]


Entretanto, a indicação de uma relação essencial entre a verdade como conformidade e a liberdade sacode estes preconceitos, suposto evidentemente que estejamos dispostos para a transformação do pensamento. A reflexão sobre o laço essencial entre a verdade e a liberdade nos leva a perseguir o problema da ESSÊNCIA DO HOMEM, dentro de uma perspectiva que nos garantirá a experiência de um fundamento original oculto do homem (do ser-aí) e isto de tal maneira que esta reflexão nos transporta primeiramente para o âmbito onde a essência da verdade se desdobra originariamente. Também a partir deste fundamento se mostrará: a liberdade somente é o fundamento da possibilidade intrínseca da conformidade porque recebe sua própria essência da essência mais original da única verdade verdadeiramente essencial. [MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE]


No ser-aí e enquanto ser-aí acontece apropriadoramente para o seer a verdade, que ele mesmo revela como a recusa, como aquela região do aceno e da subtração – do silêncio – nos quais se decidem pela primeira vez a chegada e a fuga do último deus. O homem não consegue realizar nada para tanto e é quando a preparação da fundação do ser-aí lhe é entregue como tarefa que ele se encontra menos em condições de tal realização, de tal modo que essa tarefa determina inicialmente uma vez mais a ESSÊNCIA DO HOMEM. [tr. Casanova; GA65: 5]

Retenção afina o respectivo instante fundante de um abrigo da verdade no ser-aí futuro do homem. Essa história fundada no ser-aí é a história velada da grande tranquilidade. É nela apenas que é ainda possível um povo. Só a retenção consegue reunir a ESSÊNCIA DO HOMEM e levar a termo a reunião do homem nele mesmo, isto é, na determinação de seu encargo: a insistência do último deus. [tr. Casanova; GA65: 13]

O “ser” mais próprio do homem está, por isto, fundado na copertinência em relação à verdade do ser enquanto tal, e esse ser uma vez mais, porque a essência do ser enquanto tal, e não a ESSÊNCIA DO HOMEM, contém em si a conclamação ao homem como a conclamação que o determina para a história. [tr. Casanova; GA65: 19]

Na transição realiza-se a meditação e a meditação é necessariamente auto-meditação. Essa, porém, aponta para o fato de que esse pensar está ligado a nós mesmos e, com isto, ao homem, exigindo uma nova determinação da ESSÊNCIA DO HOMEM. Na medida em que essa essência é determinada modernamente como consciência e como autoconsciência, a meditação transitória parece precisar se tornar uma nova clarificação da autoconsciência. Sobretudo porque nós não podemos nos expor mais simplesmente a partir do estado atual da autoconsciência que é mais um computo. A experiência fundamental do pensar inicial é, portanto, de qualquer modo, o ente no sentido do homem atual e de sua situação e, com isto, a “reflexão” do homem sobre “si”. Nessa reflexão encontra-se algo correto, e, contudo, ela não é verdadeira. Na medida em que a história e a meditação histórica suportam e dominam o homem, toda meditação é também automeditação. A questão é que a meditação a ser realizada no pensar inicial não toma o ser si mesmo do homem atual como dado, como algo a ser imediatamente alcançado na representação do “eu” e do nós e de sua situação. Pois justamente assim a ipseidade não é conquistada, mas definitivamente perdida e dissimulada. [tr. Casanova; GA65: 30]

A meditação do pensar inicial é muito mais tão originária que ela pergunta primeiramente como é que o si mesmo precisaria ser fundamentado, o si mesmo em cujo âmbito “nós”, eu e tu, chegamos sempre a cada vez a nós mesmos. Assim, é questionável se encontramos por meio da reflexão sobre “nós” a nós mesmos, se encontramos o nosso si mesmo, e se, por conseguinte, o projeto do ser-aí em geral tem algo em comum com a clarificação da “auto”-consciência. Pois bem, não está de modo algum definido que o “si mesmo” seria determinável algum dia pela via que passa pela representação do eu. Ao contrário, é preciso reconhecer que a ipseidade só emerge da fundação do ser-aí, mas que essa fundação se realiza como acontecimento da apropriação do que pertence à conclamação. Com isto, emerge a abertura e a fundação do si mesmo a partir da e como a verdade do seer. Não a decomposição diversamente dirigida da ESSÊNCIA DO HOMEM, não a indicação de outros modos de ser do homem – tudo considerado por si como antropologia aprimorada – é o que produz aqui a auto-meditação, mas é a questão acerca da verdade do ser que prepara o âmbito da ipseidade, na qual, atuando historicamente e agindo, o homem – nós –, assumindo a figura do povo, chega ao seu si mesmo. [tr. Casanova; GA65: 30]

Por que decisões precisam ser tomadas? O que é isso, decisão? A forma necessária de realização da liberdade. Certamente, assim pensamos de maneira “causal” e tomamos a liberdade como uma faculdade. A “decisão” também não é ainda uma forma muito refinada do cálculo? Ou por causa dessa aparência não apenas o oposto mais extremo, mas o incomparável? Decisão, como ato do homem, vista de maneira processual, na sequência. Nela o necessário, que “se encontra” antes do “ato”, que se atém para além dele. O elemento tempo-espacial da decisão como fosso irruptivo do seer mesmo precisa ser apreendido em termos da história do ser, não de maneira moral e antropológica. Arrumação preparatória, então justamente também não uma reflexão ulterior, mas o inverso. Em geral: toda a ESSÊNCIA DO HOMEM, logo que ela é fundada no ser-aí, precisa ser repensada em termos da história do ser (mas não “ontologicamente”). [tr. Casanova; GA65: 49]

O primeiro início não é controlado, a verdade do seer, apesar de sua reluzência essencial, não é expressamente fundada, e isso significa: uma antecipação humana (do enunciado, da techne, da certeza) torna-se normativa para a interpretação da entidade do seer. Agora, porém, faz-se necessária a grande inversão, que está além de toda “transvaloração de todos os valores”, daquela inversão, na qual o ente não é fundado a partir do homem, mas o ser do homem a partir do seer. Isso, porém, carece de uma força superior do criar e questionar, e ao mesmo tempo da prontidão mais profunda para o sofrimento e para a resolução na totalidade de uma mudança completa das relações com o ente e com o seer. Agora, a ligação com o seer não pode mais permanecer em uma repetição que emerge de uma ligação com o ente (dianoein – noein – kategorein). Como, porém, aquela antecipação inicial lança o homem para fora e para dentro do ente a partir do comportamento da apreensão (noûs – ratio), de tal modo que graças a ela um ente supremo é pensado como arche – aitia – causa – como algo incondicionado, as coisas se mostram como se não se tratasse de uma degradação do ser em meio à ESSÊNCIA DO HOMEM. Aquela antecipação característica do primeiro início do pensar como fio condutor da interpretação do ente pode necessariamente ser concebida a partir do outro início como uma espécie de não dominação do ser-aí ainda não experimentável. [tr. Casanova; GA65: 91]

A ESSÊNCIA DO HOMEM é determinada há muito tempo na direção dos componentes corpo, alma e espírito; o modo de superposição e de penetração, assim como os modos de acordo com os quais a cada vez um desses componentes tem um primado em relação aos outros são diversos. Da mesma forma, transforma-se o papel que é assumido a cada vez por um desses “componentes” como fio condutor e ponto de direcionamento da determinação do restante do ente (por exemplo, a consciência no ego cogito ou a razão ou o espírito ou, segundo a intenção em Nietzsche, “o corpo” ou “a alma”). [tr. Casanova; GA65: 193]

O tempo-espaço é a abertura de um fosso abissal apropriada em meio ao acontecimento das vias da viragem do acontecimento apropriador, da viragem entre o pertencimento e o clamor, entre o abandono do ser e o aceno (o estremecimento da oscilação do seer mesmo!). Proximidade e distância, vazio e doação, ímpeto e hesitação, tudo isso não deve ser concebido tempo-espacialmente a partir das representações usuais de tempo e espaço, mas, inversamente, nelas reside a essência velada do tempo-espaço. Mas como é que isso deve ser aproximado da representação usual atual? Aqui é possível percorrer diferentes caminhos preparatórios. Com efeito, o mais seguro parece ser abandonar simplesmente o campo representacional até aqui de espaço e tempo e de sua apreensão conceitual e começar de novo. Mas isso não é possível porque não se trata de maneira alguma apenas de uma modulação da representação e da direção da representação, mas de um tres-loucamento da ESSÊNCIA DO HOMEM em meio ao ser-aí. O questionamento e o pensamento precisam ser, com efeito, iniciais, mas, de qualquer modo, precisamente transitórios. [tr. Casanova; GA65: 239]

O pensar da história do seer pode se tornar questionável a partir de sua necessidade na interpretação prévia em quatro aspectos: 1) A partir dos deuses. 2) A partir do homem. 3) Com vistas à história da metafísica. 4) Como o pensar “do” seer. Esses quatro aspectos só se deixam perseguir aparentemente de maneira isolada. Em relação a (1) Conceber o pensar do seer a partir dos deuses parece de imediato algo arbitrário e “fantástico”, na medida em que se parte aqui por um lado precisamente do divino, como se ele fosse “dado”, como se qualquer um estivesse em acordo com todos os outros quanto a isso; ainda mais estranhamente, porém, na medida em que se partiu, por outro lado, de “deuses” e em que é estabelecido um “politeísmo” como “ponto de partida” da “filosofia”. Todavia, o discurso acerca dos “deuses” não tem em vista aqui a afirmação decidida de algo presente à vista de uma pluralidade em face de um único, mas significa antes a indicação para a indecidibilidade do ser dos deuses, quer um ou muitos. Essa indecibilidade encerra em si a questionabilidade em relação a se em geral algo do gênero do ser pode ser atribuído aos deuses, sem destruir tudo o que é divino. A indecidibilidade de qual deus surgirá e em relação a se um deus – sem levar em conta para que ESSÊNCIA DO HOMEM – um dia novamente surgirá para a indigência extrema: é ela que é designada com o nome “os deuses”. Mas essa indecidibilidade não é apenas re-presentada como possibilidade vazia de decisões, mas de antemão como a decisão, a partir da qual algo decidido ou a ausência completa de decisões têm a sua origem. O pensamento prévio como derivado em meio a essa decisão de tal indecidibilidade não pressupõe deuses quaisquer como presentes à vista, mas ousa se lançar em uma região daquele elemento questionável, para o qual a resposta só pode vir dele mesmo, mas nunca daquele que pergunta. Na medida em que, de antemão, o seer é re-cusado “aos deuses” em tal pensamento prévio, diz-se que todo enunciado sobre “ser” e “essência” dos deuses não apenas não diz nada sobre eles, isto é, sobre aquilo que precisa ser decidido, mas produz ilusoriamente algo objetivo, junto ao qual todo pensar é aviltado porque é ao mesmo tempo coagido a seguir por desvios. (Na consideração metafísica, o deus precisa ser representado como o maximamente ente, como o primeiro fundamento e a causa do ente, como o in-condicionado, in-finito, absoluto. Todas essas determinações emergem não do caráter divino de deus, mas da essência do ente enquanto tal, na medida em que esse ente, como constantemente presente, como algo objetivo, é pensado pura e simplesmente em si e, na explicação re-presentativa, o que há de mais claro é atribuído ao deus como aquilo que se encontra contraposto). [tr. Casanova; GA65: 259]

Em relação a (2) Todavia, aqui também é válido do mesmo modo o fato de que nenhuma concepção existente e habitual do homem pode servir como ponto de partida porque a primeira coisa que é exigida pela necessidade indigente do pensar é que isso se realize na transformação da ESSÊNCIA DO HOMEM até aqui. Por quê? [tr. Casanova; GA65: 259]

Se pensarmos de maneira suficientemente decidida a ESSÊNCIA DO HOMEM ainda que apenas na determinação há séculos habitual enquanto animal racional, então não poderemos passar ao largo da referência que há muito tempo se tornou insípida e vazia ao ser, uma referência que ainda é visada na “racionalidade” desse ser vivo. Diante da perplexidade rapidamente crescente em face da essência “metafísica” da razão, as pessoas podem buscar salvação no último processo normativo ligado a Nietzsche e “reconduzir” a “razão” (e tudo aquilo que se movimenta sob outros títulos na esfera dessa “propriedade” do ser vivo) “à” vida. Com o espírito do auto-evidente e do facilmente demonstrável, é possível ousar se lançar na direção de expor a razão como uma mera irradiação “da vida” e, com isso, como algo ulterior; é possível auxiliar esse modo de pensar de maneira tão desprovida de exceções a chegar a um caráter corrente na representação uni-versal. Apesar disso, nada se altera na consonância essencial da “razão” no sentido da apreensão do ser do ente. Todas aquelas posições ligadas à assunção de um primado “da vida” coincidem, sim, elas mesmas no nada, se é que aquilo que, como a razão, é “dependente” dele, portar em si mesmo e imperar, contudo, completamente sobre a ESSÊNCIA DO HOMEM: o fato de que em meio ao ente, se comportando em relação a ele como tal, ele é um ente, sim, “o” ente, tal como a determinação moderna o concebe no sentido do “subjectum”. Por mais que essa determinação possa se reportar no tempo subsequente à “vida”, ela é, contudo, o atestado mais forte, que apenas vai se tornando correspondentemente cada vez mais cego, da essência metafísica do homem; esquecer-se disso e se manter no esquecimento é algo empreendido por todas as instituições “da vida” e por todas as construções do “mundo”. [tr. Casanova; GA65: 259]

Se, então, todo apoio explicativo fracassa, como é que esse elemento primeiro, o que determina a ESSÊNCIA DO HOMEM, deve ser enunciado? Não podemos tomar o homem como previamente dado nas propriedades conhecidas até aqui e buscar nele agora a jogada extática, mas: o jogar-se para fora mesmo precisa fundar para nós pela primeira vez a ESSÊNCIA DO HOMEM. Como isso acontece, porém? [tr. Casanova; GA65: 263]

Jogar-se para fora, ousar o aberto, não pertencer nem a algo em face de si nem a si e, contudo, pertencer aos dois ao mesmo tempo, mas não como objeto e sujeito; saber e pressentir-se como ré-plica no aberto que aquilo que se joga para fora e do que ele se evade possuem a mesma essência do que o em face de. A ré-plica é o fundamento do vir ao encontro, que aqui ainda não é de modo algum buscado. A ré-plica é o arrancar do entre, no qual acontece a contrariedade, como carente de abertura. O que pertence aqui, porém, ao “homem” e o que é deixado para trás? No lançar-se para fora, ele se funda naquilo que ele não consegue fazer, mas apenas consegue ousar enquanto possibilidade, ele se funda no ser-aí. Isso naturalmente apenas se ele não volta nunca mais a si enquanto alguém que apareceu na primeira jogada extática como o em face de, como physei ón, como um zoon. Isso é importante: lançar para fora e fundar a ESSÊNCIA DO HOMEM no estranhamento do aberto. Agora pela primeira vez se inicia a história do ser e a história do homem. E o ente? Ele não chega mais à sua verdade em um retorno, mas? Como o resguardo do estrangeiro, e o estrangeiro traz a si mesmo ao encontro do acontecimento da apropriação e deixa se encontrar nele o deus. O jogar para fora nunca acontece de maneira exitosa a partir do mero impulso e do desenraizamento do homem. Esse lance é jogado na vibração do acontecimento da apropriação. Isso significa: o ser toca o homem e o volta para a transformação, para a primeira conquista, para a longa perda de sua essência. Essa mensuração da errância essencial como história do homem independente de toda historiologia. E se os deuses afundam no não outorgado da recusa do seer. [tr. Casanova; GA65: 263]

No ser-aí, para o qual o homem volta a tomar pé sobre si por meio da transformação transitória de sua essência, só tem sucesso uma preservação do seer naquilo que aparece pela primeira vez por meio daí como um ente. Se é dito em Ser e tempo que, através da “analítica existencial”, o ser do ente não humano se torna pela primeira vez determinável, então isso não significa que o homem seria o ente em primeiro lugar e de saída dado e que seria de acordo com a sua dotação de medida que os outros entes obteriam a cunhagem de seu ser. Tal “interpretação” supõe que o homem continuaria sendo sempre pensado ao modo de Descartes e de todos os seus sucessores e meros adversários (mesmo Nietzsche está entre eles) como sujeito. Isso, porém, é para nós a meta mais imediata: não estabelecer mais em geral o homem como um subjectum, uma vez que nós o compreendemos de antemão a partir da questão do seer e apenas assim. Se, contudo, apesar disso, o ser-aí ganhar o primeiro plano, então isso significa: o homem, concebido de acordo com o ser-aí, funda sua essência e o caráter próprio de sua essência no projeto do ser e se mantém, por isso, em todo comportamento e em todo modo realizado de se comportar no âmbito da clareira do seer. Esse âmbito, no entanto, não é inteiramente humano, isto é, não é determinável e sustentável por meio do animal rationale, nem tampouco por meio do subjectum. O âmbito não é em geral nenhum ente, mas pertence à essenciação do seer. Concebido de acordo com o ser-aí, o homem é aquele ente que, sendo, pode perder a sua essência e, com isso, sempre está certo de si mesmo da maneira mais incerta e ousada possível, o que acontece, porém, com base na entrega à responsabilidade pela guarda do seer. O primado do ser-aí não é apenas o oposto de todo e qualquer tipo de humanização do homem, ele também fundamenta uma história completamente diversa da ESSÊNCIA DO HOMEM, que nunca tem como ser concebida a partir da metafísica e, por isso, também não a partir da “antropologia”. Isso não exclui, mas inclui o fato de que o homem agora ainda é mais essencial para o seer, por mais que ele venha a ser avaliado como mais desimportante a partir do “ente”. [tr. Casanova; GA65: 271]

Para quem concebeu a história do homem como história da ESSÊNCIA DO HOMEM, a questão quem é o homem não pode significar outra coisa senão a necessidade de questionar o homem para além de sua região de estada metafísica até aqui, apontando de maneira questionadora para outra essência e, com isso, superando essa questão mesma. Esse questionamento se encontra inevitavelmente ainda sob a aparência da “antropologia” e sob o perigo de uma falsa interpretação antropológica. [tr. Casanova; GA65: 272]

Até aqui, o homem nunca foi historicamente. Muito ao contrário, ele “teve” e “tem” uma história. A questão é que esse ter história revela ao mesmo tempo o modo de ser da “história”, que é a única a ser visada aqui. A história é determinada por toda parte a partir do “historiológico”; e isso lá onde se acredita apreender por si mesmo a efetividade histórica e demarcá-la em essência; isso acontece em parte “ontologicamente”: a realidade efetiva histórica como realidade efetiva do devir, em parte “epistemologicamente”: a história como o passado constatável. As duas interpretações são dependentes daquilo que tornou possível a “ontologia” e a “teoria do conhecimento”, isto é, elas são dependentes da metafisica. É aqui que precisam ser procurados os pressupostos para a historiologia. Mas se o homem deve ser histórico e se a essência da história deve ganhar o espaço do saber, então é preciso sobretudo que a ESSÊNCIA DO HOMEM se torne questionável e o ser se torne digno de questão, pela primeira vez digno de questão. Somente na essência do próprio seer, o que significa ao mesmo tempo em sua ligação com o homem, que está à altura de tal ligação, é que a história pode ser fundada. [tr. Casanova; GA65: 273]

Sempre de acordo com a interpretação do animal rationale e sempre de acordo com a concepção do nexo da ratio (da palavra) com o ente e o maximamente ente (deus) ocorrem modulações da “filosofia da linguagem”. Mesmo lá, onde essa designação não é usada expressamente, a linguagem alcança como um objeto presente à vista (instrumento – construto capaz de assumir configurações e dom do criador) o âmbito da consideração filosófica ao lado de outros objetos (arte, natureza etc.). Por mais certamente que se possa admitir que esse construto especial acompanha de qualquer modo uma vez mais toda representação e, com isso, se estende sobre todo o âmbito do ente como um modo de sua expressão, a consideração não ultrapassa com isso aquela determinação inicial da linguagem, por meio da qual ela permanece colocada em uma ligação bastante indeterminada com o ente e com o homem. Quase não se procura conceber a partir dessa ligação com a linguagem e com vistas a ela a ESSÊNCIA DO HOMEM e sua relação com o ente, apreendendo-a inversamente de maneira mais originária. Pois isso já exigiria estabelecer a linguagem por assim dizer de um modo livre de ligações. Em que direção, porém, ela deve ser fundada, uma vez que um ser-presente-à-vista da linguagem contraria evidentemente em si toda e qualquer experiência? [tr. Casanova; GA65: 276]

Segundo a determinação bem compreendida e até hoje válida do homem como animal rationale, a linguagem é dada com o homem e isso de maneira tão certa que se pode dizer mesmo na inversão que é apenas com a linguagem que o homem é dado. Linguagem e homem se determinam de modo alternante. Por meio do que isso se torna possível? As duas coisas são em certo aspecto o mesmo? E em que aspecto elas são o mesmo? Por força de seu pertencimento ao seer. O que significa isso: pertencer ao seer? O homem pertence enquanto um ente ao ente e está submetido, assim, à mais universal determinação de que ele é e de que ele é de tal e tal modo. A questão é que isso não distingue o homem enquanto homem, mas apenas o equipara enquanto ente a todo ente. O homem, porém, pode pertencer ao seer (não apenas ao ente), na medida em que ele cria a partir desse pertencimento e precisamente a partir dele a sua essência mais originária: o homem compreende o seer (cf Ser e tempo); ele é o guarda-posto do projeto do seer, a guarda da verdade do seer constitui isso a partir do seer e “apenas” a partir dessa essência concebida do homem. O homem pertence ao seer como aquele que é apropriado pelo próprio seer em meio ao acontecimento para a fundação de sua verdade. Assim apropriado, ele é entregue à responsabilidade do seer; ao mesmo tempo, tal responsabilidade remete a conservação e a fundação da ESSÊNCIA DO HOMEM para aquilo que o homem precisa primeiro transformar para si em propriedade, aquilo com relação ao que ele precisa ser mais próprio e mais impróprio: para o ser-aí, o que significa a própria fundação da verdade, o a-bismo exposto e sustentado pelo seer (acontecimento apropriador). Como é, contudo, que a linguagem se comporta em relação ao seer? Se não podemos computar a linguagem como algo dado e, com isso, já estabelecido na essência, uma vez que o que importa é “encontrar” a essência, e se o seer mesmo é “mais essencial” do que a linguagem, na medida em que ela é tomada como um dado (ente), então a pergunta precisa ser formulada de outro modo. Como é que o seer se comporta em relação à linguagem? Mas mesmo assim a questão é ainda capaz de induzir em uma falsa interpretação, na medida em que aparece agora como mera inversão da relação anterior e a linguagem, por sua vez, é considerada como um dado, com o qual o seer entra em ligação. Como é que o seer se comporta em relação à linguagem – o que está em questão aqui é: como emerge na essenciação do seer a essência da linguagem? Com isso, porém, uma resposta já não é antecipada: justamente que a linguagem emerge do seer? Mas toda e qualquer autêntica questão acerca da essência, determinada como projeto a partir do que precisa ser projetado, antecipa a resposta. A essência da linguagem nunca pode ser determinada de outro modo senão por meio da denominação de sua origem. Por isso, não se pode fornecer definições da essência da linguagem e declarar a questão acerca de sua origem irrespondível. A questão acerca da origem encerra naturalmente em si a determinação essencial da origem e do próprio emergir. Emergir, contudo, significa: pertencer ao seer no sentido da questão por último colocada: como se essencia na essenciação do seer a linguagem? Que, contudo, essa ligação com o seer não seja em geral nenhuma exposição arbitrária, isso foi algo que a consideração prévia deixou claro. Pois, em verdade, aquela dupla ligação metafísica (só que não pensada de volta à origem) da linguagem com o ente enquanto tal e com o homem (como animal rationale, ratio – fio condutor da interpretação do ente com vistas à entidade, isto é, o ser) não indica outra coisa senão: a linguagem está inteiramente ligada ao ser; e isso precisamente nos aspectos, segundo os quais a metafísica a determina. Mas como a metafísica só é em geral a partir do impasse em relação ao seer o que ela é, precisamente essa ligação e completamente a sua concepção correta nunca pode alcançar o âmbito de seu questionamento. [tr. Casanova; GA65: 276]

Nossa história – não como o transcurso historiologicamente conhecido de nossos envios destinamentais e de nossas realizações, mas nós mesmos no instante de nossa ligação com o seer. Pela terceira vez caímos no abismo dessa ligação. E, dessa vez, não sabemos nenhuma resposta. Pois toda meditação sobre o seer e sobre a linguagem é apenas um impulso prévio, para tocarmos nosso “posto” no próprio seer e, com isso, nossa história. Mas mesmo se nós quisermos apreender nossa linguagem em sua ligação com o seer, o que há de mais corrente da determinação metafísica até aqui da linguagem se aferroa a esse questionamento, uma determinação da qual também não pode ser dito francamente que ela seria inteiramente não verdadeira; e isso sobretudo porque ela, porém, ainda que veladamente, tem em vista precisamente a linguagem em sua ligação com o seer (com o ente enquanto tal e com o homem que representa e pensa o ente). Bem próximo do caráter enunciativo da linguagem (enunciado considerado aqui no sentido mais amplo possível, no sentido de que a linguagem, o dito e o não dito, visa a, representa, configura ou encobre de maneira representacional algo (o ente) etc.) é a linguagem conhecida como posse e como instrumento do homem e como “obra” ao mesmo tempo. Esse nexo da linguagem com o homem, porém, é considerado como sendo tão íntimo que até mesmo as determinações fundamentais do próprio homem (como animal rationale por sua vez) são escolhidas para tanto, a fim de caracterizar a linguagem. A essência espiritual-corpóreo-anímica do homem é reencontrada na linguagem. O corpo (vernáculo) da palavra, a alma da linguagem (tonalidade afetiva, tom sentimental e coisas do gênero) e o espírito da linguagem (o representado-pensado) são determinações correntes de toda filosofia da linguagem. Essa interpretação da linguagem poderia ser denominada interpretação antropológica e ela tem seu ápice no fato de se ver na própria linguagem um símbolo da ESSÊNCIA DO HOMEM. Se aqui a questionabilidade da ideia de símbolo (um filho autêntico do impasse em relação ao seer que vigora na metafísica) é recolocada, então o homem precisaria ser concebido de acordo com isso como aquele ser que tem sua essência em seu próprio símbolo ou na posse desse símbolo (logon echon). Permanece em aberto até que ponto essa interpretação simbólica – pensada metafisicamente até o fim – da linguagem pode ser levada no pensar da história do ser para além de si e até que ponto algo frutífero pode nascer daí. É inegável que, juntamente com aquilo que fornece na linguagem o apoio para o fato de que ela pode ser concebida como símbolo do homem, se toca em algo que é de algum modo próprio à linguagem: o teor da palavra e a sua casca, a afinação da palavra e o significado da palavra, por mais que já pensemos uma vez mais no campo de visão dos aspectos que emergem da metafísica com vistas ao sensível, ao não sensível e ao suprassensível; e isso mesmo que não tenhamos em vista pela “palavra” as palavras particulares, mas o dizer e o silenciar do dito e não dito e esse não dito mesmo. A casca da palavra também pode ser reconduzida a elementos da constituição anatômico-fisiológica do corpo humano e explicada a partir daí (fonética – acústica). Algo desse gênero é a afinação da palavra e a melodia da palavra, assim como o acento sentimental do dizer é objeto da explicação psicológica e o significado da palavra é uma questão da decomposição lógico-poético-retórica. A dependência dessa explicação e decomposição da linguagem em relação à concepção do homem é patente. [tr. Casanova; GA65: 276]

Se, então, porém, com a superação da metafísica, a antropologia também cai por terra, se a ESSÊNCIA DO HOMEM é determinada a partir do seer, então aquela explicação antropológica da linguagem não pode mais permanecer normativa; ela perde aí seu fundamento. Não obstante, agora permanece até mesmo em pleno poder aquilo que foi captado como corpo, como alma, como espírito da linguagem junto a essa explicação. O que é isso? Pensando de maneira correspondente à história do ser, não podemos proceder agora simplesmente de um modo tal, que interpretemos a essência da linguagem a partir da determinação do homem em termos da história do ser? Não; pois sempre permanecemos com isso ainda presos na ideia de símbolo; antes de tudo, no entanto, não se estaria levando a sério assim a tarefa de ver a partir da essenciação do próprio seer a origem da linguagem. [tr. Casanova; GA65: 276]