Ernildo Stein (2008:169-174) – “a alma é de algum modo todas as coisas”

A originalidade da intuição heideggeriana, quando introduz a compreensão do ser, consiste no fato de introduzir na Filosofia um terceiro nível de problematização nas questões da ontologia, por meio do ser-aí que tem um modo privilegiado de ser. Já em Aristóteles temos o nível do ser enquanto (170) ser e o nível do ser dos entes. Questões avulsas em Aristóteles apontam para um terceiro nível que também é de caráter ontológico e que não é simplesmente empírico. Quando este filósofo diz que “A alma é de algum modo todas as coisas” (Aristóteles, p. 431, cap. 21; Heidegger, 1976, p. 14), ele se refere indiretamente a uma situação que não consegue descrever por causa do objetivismo de sua visão da ontologia. Foi necessário que se processasse toda a história da Filosofia para que, no fim da metafísica, alguém perguntasse: qual é a compreensão que a alma (o Dasein) deve ter para poder ser de certo modo todas as coisas? “É somente porque é ser-aí enquanto constituído pela abertura, quer dizer compreensão, pode em geral ser compreendido algo como ser, é possível compreensão do ser.” (Heidegger, 1977a, Sein und Zeit, p. 230). É que nesta pergunta a ontologia é posta num outro nível: não mais de objetificação do ser e dos entes, mas de afirmação de que existe uma relação entre ambos com a alma (Dasein) que é condição de possibilidade de falar dos dois. Isto significa que o realismo aristotélico não é suficiente para fundamentar a relação que existe entre a alma e todas as coisas.

Podemos dizer que a objetificação da tradição metafísica se faz porque tudo é situado no contexto de uma concepção de tempo como sucessão de momentos, segundo o antes e o depois. Pelo fato de a alma ser todas as coisas, só podemos falar das coisas por intermédio daquilo que faz a alma ser todas as coisas. Isso pode ser chamado compreensão do ser, assim como Heidegger a coloca no começo de Ser e tempo. Esta compreensão do ser que faz do Dasein ser de algum modo todas as coisas, no entanto, exige que elas sejam pensadas não como objetos, mas numa relação com um outro tempo que é definido por Heidegger como a temporalidade. Esta temporalidade, esse tempo, tempo originário, é que vai possibilitar as coisas e o Dasein no seu acontecer. Essa solução, contudo, entrevista por Aristóteles e realizada por Heidegger, significa a destruição das concepções objetificantes, introduzindo uma relação entre ser humano e coisas que precede qualquer relação objetificante. Esta relação sempre vem expressa quando tratamos das coisas como objetos, não permitindo que ela seja simplesmente uma relação com objetos porque é condição de possibilidade dos objetos. Toda a analítica existencial pretende, assim, ser uma ontologia fundamental, pois trata do ser-aí (da alma) (171) como ser-no-mundo junto das coisas, mas sempre já as transcendendo em direção ao futuro e ao passado, o que representa a perspectiva da temporalidade do ser-aí.

Naturalmente para nós, herdeiros da metafísica ocidental, a frase de Aristóteles de que “a alma é de algum modo todas as coisas” foi pensada como uma relação objetificadora por causa da ideia de representação. Implicitamente toda metafísica objetivista e toda a Filosofia moderna procuraram pensar a representabilidade da representação sempre como uma questão de possibilidade

dos objetos deduzida da reflexão. Os nomes empregados na Filosofia para esse fim foram: nous, mente, consciência, consciência de si e por meio deles mesmos se consolidou a convicção de que nossa relação com o mundo é sempre uma relação com objetos. Quando Heidegger traz outro nome para substituir os anteriores (Stein, 1991), ele não quer continuar a tradição da representabilidade da representação dos objetos pela consciência e pela reflexão. Ser-aí, ser-no-mundo, representam explicitamente o corte com a tradição metafísica e a ruptura com a ideia de ser e ente de objeto e coisa, de representação e representado é, entretanto, realizada pelo conceito de afecção (sentimento de situação) que acompanha a compreensão e que o filósofo expressa, de maneira sintética, no conceito de cuidado. Esta palavra tem um sentido ontológico, pois ela pretende romper com a ideia da metafísica de que todos os enigmas da Filosofia estariam resolvidos por uma resposta objetiva sobre a origem e o fim do ser e dos entes.

O cuidado se constitui como ser do ser-aí porque nele se estabelece uma relação circular entre afecção e compreensão na medida em que é eliminada a ideia de representação e substituída por um modo de ser-em, de ser-no-mundo e de relação do ser-aí consigo mesmo como ter-que-ser e ser-para-a-morte (faticidade e existência). O cuidado é o ser do ser-aí porque o ser-aí tem nele o horizonte de seu sentido: a temporalidade. Então o cuidado, com sua tríplice estrutura temporal de futuro, passado e presente, é o caminho pelo qual o ser-aí, numa relação ontológica consigo mesmo, consegue, pela afecção e pela compreensão, ser, de algum modo, todas as coisas. Assim, (172) foi encontrado um modo de se relacionar com as coisas e os outros não mais objetificante, pois sensível e inteligível, afecção e compreensão, são o modo como as coisas vêm ao encontro do ser-aí. Isso quer dizer que foi substituído o tempo, no sentido clássico da metafísica, em que os entes são congelados numa sucessão de agoras, pela temporalidade, que não permite mais pensar o ser-aí como oposto ao mundo das coisas. Elas, como entes disponíveis, fazem parte do modo de ser-no-mundo e, portanto, do mundo em sua totalidade. Como o ser-aí, no entanto, enquanto cuidado tem seu sentido na temporalidade, a totalidade não se dá nunca como algo objetificado: a transcendência coincide com a existência, isto é, o caráter da temporalidade do Dasein é a entrada para qualquer tipo de conhecimento. Então “ser de algum modo todas as coisas” não é privilégio de uma entidade humana que representa, mas que em sua finitude (afecção e compreensão não se separam) se dá como temporalidade que é o sentido ontológico do ser-aí. Tudo isso significa que a compreensão do ser se dá na temporalidade e, pelo cuidado, ela recebe ao mesmo tempo a abertura e o limite dessa abertura. Compreender o ser, assim, vem sempre acompanhado por um acontecer irrepresentável e que não pode ser dominado pelo Dasein. É assim que o encontro entre ser-aí e coisas dá-se num acontecer ontológico que precede e acompanha qualquer relação com as coisas e com os outros.

Quando Heidegger fala em compreensão do ser pelo Dasein ele substitui a expressão aristotélica de que “a alma é de algum modo todas as coisas”. Esse de algum modo é, quando se fala em compreensão do ser, aquilo que limita essa compreensão e que, portanto, acontece com o Dasein no horizonte da temporalidade enquanto esta possui o caráter do acontecer. O Dasein não possui mais a possibilidade de um retorno reflexivo sobre si mesmo1 que esgote a compreensão de si e que por meio dela esgote a coisidade das coisas, convertendo-as em objetos. Há um acontecer que impede para sempre toda a objetivação no sentido metafísico. Como a história da metafísica é a história daquilo que não foi pensado como acontecer do ser, ela é uma (173) história de encobrimento, e assim, uma história que pode levar toda a tradição metafísica às pretensões da objetivação total, isto é, a uma pretensão de um sistema absoluto.

A história do ser é, portanto, a história dos limites da compreensão do ser, é uma história da finitude, uma história da temporalidade que foi encoberta pelo conceito metafísico de tempo, em que tudo é objetivável. Saímos, assim, da metafísica pela introdução do terceiro nível que Heidegger juntou ao nível do ser enquanto ser e do ser do ente, nível que podemos chamar o lugar onde foi introduzido o ser-aí como compreensão do ser. Em lugar de os dois níveis da metafísica incluírem o terceiro nível relativo ao Dasein, porém, é somente por meio dele que os outros dois níveis se tornam possíveis, numa unidade de um acontecer do ser que se dá pelo Dasein como temporalidade. Não há mais assim condições para separar sujeito e objeto, inteligível e sensível, compreensão e afecção, pois já sempre há um acontecer na temporalidade, onde reside propriamente a historicidade.

Todo o conhecimento, toda a experiência, se enraízam na concepção da analítica existencial no ser-em, na afecção, no cuidado como modos do ser-aí enquanto ser-no-mundo. Assim, não será mais necessário perguntar pela possibilidade da representação dos objetos, pois eles se dão num encontro com o ser-aí que já sempre pressupõe uma relação de acontecimento. Empírico e transcendental fundem-se na ideia do acontecer. Quando falamos no acontecer do ser, este acontecer une na unidade do cuidado, enquanto temporalidade, o que a metafísica chamava de empírico e transcendental, de objeto e representabilidade do objeto.

Quando falamos desse terceiro nível antropológico-existencial, que Heidegger acrescentou aos dois modos que Aristóteles apresentara como ser enquanto ser e ser do ente, introduzimos aquilo que Heidegger chama de diferença ontológica. Se com ela ele supera a metafísica, de um lado, de outro, ele desfaz o abismo que separava o ser do ser humano, portanto do aspecto antropológico, que Heidegger chama de existencial. Assim a ponte entre o empírico e o ontológico não é mais necessária. Desaparece o transcendental clássico e se introduz o acontecer do ser junto com a compreensão do ser. (174) Quando Heidegger fala do fim da metafísica e de um novo começo é a isso que ele se refere (Heidegger, 1989, v. 65). Estas as razões para podermos compreender que o tratamento da relação entre a Filosofia e as Ciências não é mais epistemológico, mas possui o caráter do acontecer e que está para além das objetivações com que se ocupam os epistemólogos que querem usar a Filosofia para o tratamento das coisas das Ciências. Abre-se um espaço novo para pensar o mundo das coisas e do ser humano.