ente

Seiendes
(das) Seiende, “aquilo que é”

Uma tal procura que aspira pelo sophon, pelo hen panta, pelo ente no ser, se articula agora numa questão: que é o ente, enquanto é? Somente agora o pensamento torna-se “filosofia”. Heráclito e Parmênides ainda não eram “filósofos”. Por que não? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” não designa aqui o cálculo de um rendimento, porém aponta para uma outra dimensão do pensamento. Heráclito e Parmênides eram “maiores” no sentido de que ainda se situavam no acordo com o logos, quer dizer, com o hen panta. O passo para a “filosofia”, preparado pela sofística, só foi realizado por Sócrates e Platão. Aristóteles então, quase dois séculos depois de Heráclito, caracterizou este passo com a seguinte afirmação: [original grego] (Metafísica, VI, 1, 1028 b 2 ss.). Na tradução isso soa: “Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) está em marcha já desde os primórdios, e também agora e para sempre e para o qual sempre de novo não encontra acesso (e que é por isso questionado): que é o ente? (ti to on)”.

A filosofia procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser. Aristóteles elucida isto, acrescentando uma explicação ao ti to on, que é o ente?, na passagem acima citada: touto esti tis he ousia? Traduzido: “Isto (a saber, ti to on) significa: que é a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade. Esta, porém – a ousia -, é determinada por Platão como ideia, por Aristóteles como energeia. [MHeidegger]


Ao mesmo tempo, emprega-se o “es gibt” (se dá), para evitar, por enquanto, a locução: “o Ser é”; pois o é se diz comumente daquilo que é. E isso chamamos de ente. Ora, o Ser não é o ente. Por isso, se se diz o é, sem ulteriores explicações, do Ser, então facilmente se entende o Ser como um ente, à maneira dos entes conhecidos, que como causa produzem efeito ou como efeito são produzidos. Sem embargo, já nos primórdios do pensamento, diz Parmênides; estin gar einai, “é, pois, o Ser”. Nessa palavra se esconde para todo pensamento o mistério originário. Talvez o é só possa ser dito de maneira adequada do Ser, de sorte que, em sentido próprio, nenhum ente é. Todavia, porque o pensamento ainda deve chegar a dizer o Ser em sua Verdade, ao invés de explicá-lo como uni ente, tem que ficar aberta, para o desvelo cuidadoso do pensamento, a questão, se e como o Ser é. [CartaH]


No final do primeiro livro de um de seus principais tratados, Aristóteles diz que: [original grego] É também, portanto, ο que sempre se buscou desde sempre, como também (sobretudo) agora e no futuro, e nunca (quando se pensa) encontrou resposta, é o que é o ente…”[Met.Z1, 1028 b 2 ff. (Traduzimos a tradução de Heidegger. [N.daT.])]

tí tò ón, “o que é o ente?”, pergunta o pensador. Na determinação aqui explicitada daquilo que para o pensador constitui o a-se-pensar, encontramos a palavra tò ón, o ente. Assim, novamente, uma palavra que tem o caráter de particípio. Apreendemos, contudo, esse particípio segundo a representação comum mais à mão, isto é, segundo o significado substantivado. De acordo com a observação feita até agora sobre as sentenças de Aristóteles, o a-se-pensar do pensador é tò ón. Disso se pode concluir muito pouco, se essa palavra participial tò ón deve ser compreendida “substantivamente”, “verbalmente” ou ainda de outra maneira. No entanto, o próprio Aristóteles pode nos socorrer nesse apuro. A primeira frase de um de seus tratados, que oferece um projeto do campo em que se deve abrigar o pensamento essencial, começa assim: [70] [original grego] “É (ou seja, existe a possibilidade e a necessidade interior de) algum saber, que tem em vista o ente à medida em que é ente (portanto um saber), segundo o qual também tem em vista tudo aquilo que, em sendo ente, vem ao encontro em si mesmo.” [Metafísica, G 1, 1003 a 21-23.]

Segundo essa frase de Aristóteles, o pensamento essencial é um saber. Esse saber tem como especificidade ter em vista o que é para ele o a-se-pensar. Tem-se em vista o ente, tò ón, mas he ón, isto quer dizer: a vista é uma visão de que o ente é ente. No ente, o que se deve assim agarrar não é o que está mais à mão, ou seja, se é uma casa, uma árvore, um asno, um homem ou outra coisa, mas o ente deve ser visto “somente” a partir da distância transparente em que se determina como um ente. Ente, porém, é ente só pelo fato de que “é”, ou seja, pelo fato de “ser”, tò ón, o ente, é tò zetoumenon, o procurado, mas procurado no pensamento que pensa o ente, o ser dos entes e aquilo que vem de encontro ao ser.

Em grego ser é tò einai. Essa palavra einai é o infinitivo do verbo cujo particípio é tò ón. Aqui fica claro: se o pensador pensa o ente, então ele compreende a palavra participial não no sentido substantivado, mas no sentido verbal. A questão abreviada e ambígua — o que é o ente? — mostra-se, na verdade, como a pergunta que conduz os pensadores. Sob o fio condutor dessa pergunta, eles não perguntam, porém, se o ente é uma pedra, um osso, um asno ou um triângulo. A pergunta em causa para os pensadores — o que é o ente? —- significa somente a pergunta: o que é o ser dos entes? O que é isso, dentro e através do que algo é “ente”? [Em português, a forma que corresponde propriamente ao latino “ens” e ao grego “ón” é “sendo”, o particípio presente do verbo ser. (N. da T.)] O que caracteriza como tal o “ente” que “está sendo”?

A linguagem chama, por exemplo, de liberdade o que caracteriza e distingue o “livre” como tal, o que se distingue enquanto [71] um livre. O que relaciona o ser-justo com o justo é a justiça. Consequentemente, deveríamos dizer, mesmo fazendo estremecer o ouvido comum, que aquilo que caracteriza o ente como tal é a “entidade”. [GA55MSC:70-72]