O FENÔMENO DA GRATIDÃO e a admiração formam o pano de fundo de toda a compreensão de Homero sobre a existência humana: Homero encontra coisas pelas quais se maravilhar e ser grato que nossas teorias modernas quase sempre encobrem. Veja um dos exemplos mais simples: o sono. Na Ilíada, o próprio Sono é um deus — pelo menos uma vez é mencionado como o “senhor de todos os deuses e de todos os homens” (Hom. Il. 14.230ss).1 Na Odisseia, entretanto, como vimos, o sono é principalmente um poder que outros deuses têm a oferecer. No livro de abertura da Odisseia, Penélope chora e chora “por seu marido Odisseu, até que Atena, deusa de olhos cinzentos, derramou um doce sono sobre suas pálpebras” (Hom. Od. 1.363). E, mais adiante no poema, é revelado que o deus mensageiro Hermes carrega uma varinha “com a qual ele adormece os olhos de quem ele quer, enquanto outros ele desperta novamente, mesmo do sono” (Hom. Od. 5.46).
No entanto, mesmo quando os deuses não são explicitamente responsáveis pelo sono de alguém, a maneira de Homero descrever o acontecimento é profundamente informada por sua compreensão dos seres humanos como não tendo controle total dos aspectos centrais de sua existência. Já vimos a extraordinária variedade de maneiras que Homero tem para descrever o fenômeno de ser atraído para o sono e despertado dele. Em Homero, as pessoas não dormem simplesmente, como se isso fosse algo que se pudesse fazer; o próprio sono é uma dádiva sagrada.
A variedade de maneiras que Homero tem para descrever o sono indica o papel importante que ele desempenha em sua concepção da existência humana. Para nós, o sono é o episódio em branco que separa nossos momentos de atividade; quando estamos dormindo, não somos mais nós mesmos. Por outro lado, no mundo de Homero, o sono é um evento que sintetiza a condição humana. Muitas vezes, é durante o sono que os deuses visitam os seres humanos, dão-lhes direção e propósito, formulam seus planos para eles, acalmam suas ansiedades e revigoram seus desejos. O sono é um evento humano canônico em Homero porque é o paradigma de uma atividade na qual não se pode ter sucesso tentando mais. E, no entanto, também não se é completamente impotente diante dele. É possível se preparar para o sono, ser grato pelo fato de ele chegar, maravilhar-se com a transformação que ele provoca. E tudo isso, para Homero, é característico de nós em nosso melhor momento.
Homero encontra esse tipo específico de excelência humana em quase todos os lugares que procura. Às vezes, ela ocorre no contexto de uma atividade heroica. Em um episódio, após um naufrágio, Odisseu foi jogado de um lado para o outro por dois dias e duas noites, sozinho em uma única tábua de madeira no meio do mar. Finalmente, ele avista uma costa, mas a situação é traiçoeira:
Não havia portos onde um navio pudesse navegar, nem refúgios nem enseadas, apenas recifes irregulares e penhascos salientes. Os joelhos de Odisseu ficaram fracos; seu coração hesitou. (Hom. Od. 5.408)
Não é difícil imaginar o desânimo que alguém pode sentir em uma situação como essa. Ficar no mar é perecer de fome, afogamento ou exposição; buscar terra firme é correr o risco de ser jogado contra as rochas irregulares. Não é de se admirar que Homero tenha feito Odisseu falar consigo mesmo, com sua “mente e espírito ponderando”. E, no entanto, enquanto ele está ocupado se desesperando com suas opções:
uma forte onda o estava levando, de fato, direto para as rochas. Ele teria sido esfolado ali, e seus ossos quebrados, se Atena, de olhos cinzentos, não o tivesse instruído: ambas as mãos foram postas em movimento para agarrar uma borda de rocha enquanto ela passava, e ele se segurou, gemendo, enquanto a onda passava. (Hom. Od. 5.425, tradução de Fitzgerald, ligeiramente modificada).
Homero tem uma excelente compreensão do que é estar em uma situação como essa. Em particular, o Odisseu de Homero, como os heróis modernos que vimos no capítulo inicial, recusa-se a receber o crédito pela ação realizada. Afinal de contas, ele estava ocupado ponderando e se desesperando com seu destino. Suas mãos estenderam para alcançar a rocha e a agarraram, com certeza. Mas, do ponto de vista de Odisseu, sua mãos foram “postas em movimento”, motivadas por uma força externa a ele, Atena de olhos cinzentos.
- Veja também a Teogonia de Hesíodo, especialmente em 750 e seguintes. Lá, Sono e seu irmão Morte são descritos como “deuses terríveis” — presumivelmente no sentido de que inspiram temor.[↩]