EMBORA NÃO SEJA o centro de nossa concepção de nós mesmos, a ideia de que devemos reconhecer e ser gratos por eventos favoráveis quando eles ocorrem não é totalmente estranha para nós. No entanto, os gregos vivenciaram esse fenômeno de uma maneira particular. Não se tratava apenas de se sentirem sortudos quando algo que eles consideravam estar fora de seu controle acabava bem para eles. Eles vivenciavam esses eventos favoráveis como significativos para eles e direcionados a eles.
Para entender esse ponto, considere a diferença entre os gregos homéricos e os romanos que viviam nos séculos II e I a.C. Os romanos levavam muito a sério a importância da sorte em suas vidas e personificavam essa força na deusa Fortuna. Frequentemente representada como cega — indicando que suas escolhas são indiferentes àqueles a quem afetam — Fortuna não tem precursor natural no mundo homérico. A deusa Tyche, que normalmente é considerada o equivalente grego de Fortuna, não começa a desempenhar um papel importante na mitologia grega até a era helenística, pelo menos quinhentos anos depois de Homero.1
A distinção entre Fortuna e os deuses gregos homéricos é importante: se a Fortuna ilumina um cidadão romano, o sentimento adequado não é de gratidão, pois a Fortuna não o tinha em vista. Em vez disso, vivenciar a própria vida como governada pela Fortuna é, na melhor das hipóteses, cultivar um tipo de estoicismo e reserva. O estoico romano suporta com firmeza as vicissitudes da vida, inoculando-se tanto contra a sorte quanto contra o infortúnio. Esse tipo de reserva, de desapego voluntariamente forçado, não poderia estar mais distante da concepção homérica de excelência em uma vida. E, no entanto, há algo de familiar nisso em nossa era secular. A noção de que a sorte cega determina o curso de nossas vidas leva rapidamente à ideia niilista de que nossas vidas não têm significado. O estoicismo romano é avô do niilismo da era secular.
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Ter sorte e ser bem cuidado são fenômenos radicalmente diferentes. Se considerarmos que a sorte cega é a fonte de tudo o que está além do nosso controle, como faziam os romanos, então não faz sentido sentir-se grato pelas coisas favoráveis que acontecem; o custo, no entanto, é um tipo de distanciamento do mundo que impossibilita a experiência de significado em nossa vida. Os gregos, por outro lado, mantinham o mundo em constante admiração. Eles não conseguiam deixar de ficar maravilhados e gratos sempre que algo favorável acontecia em suas vidas. Esse tipo de espanto e admiração, e a gratidão que decorre naturalmente disso, é a chave para tudo o que é sagrado no mundo dos gregos.
[DREYFUS, Hubert L.; KELLY, Sean. All things shining: reading the Western classics to find meaning in a secular age. 1st Free Press hardcover ed ed. New York: Free Press, 2011]- Indeed, before that time tyche is sometimes considered in Greek culture to be a force which, if it exists at all, excludes belief in the gods. See, for example, Euripides’ play Cyclops at line 606.[↩]