Deleuze (EFP:29-31) – a lei moral não traz conhecimento

Eis, pois, o que é a Ética, isto é, uma tipologia dos modos de existência imanentes (breve121), substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a valores transcendentes. A moral é o julgamento de Deus, o sistema de Julgamento. Mas a Ética desarticula o sistema do julgamento. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau). A ilusão dos valores se confunde com a ilusão da consciência: porque a consciência é essencialmente ignorante, porque ignora a ordem das coisas e das leis, das relações e de suas composições, porque se contenta em esperar e recolher o efeito, desconhece toda a Natureza. Ora, basta não compreender para moralizar. É claro que uma lei, desde o momento em que não a compreendemos, nos aparece sob a espécie moral de um “Deve-se”. Se não compreendemos (30) a regra de três, nós a aplicamos, nós a consideramos um dever. Se Adão não compreende a regra da relação de seu corpo com o fruto, entende a palavra de Deus como uma proibição. Mais ainda, a forma confusa da lei moral comprometeu de tal modo a lei de natureza que o filósofo não deve falar de lei da natureza, mas somente de verdades eternas: “É por analogia que a palavra lei se encontra aplicada a coisas naturais e, de maneira geral, por lei, entendemos um mandamento…”.1 Como diz Nietzsche a respeito da química, ou seja, da ciência dos antídotos e dos venenos, é preciso resguardar-se da palavra lei, pois tem um ranço moral.

Não obstante, é cômodo separar os dois domínios, o das verdades eternas da Natureza e o das leis morais de instituição, mesmo que seja apenas por seus efeitos. Tomemos consciência da palavra: a lei moral é um dever, a obediência é o seu único efeito e a sua única finalidade. É possível que essa obediência seja indispensável, é possível inclusive que os mandamentos estejam bem fundados. Mas não é esta a questão. A lei, moral ou social, não nos traz conhecimento algum, não dá nada a conhecer. Na pior das hipóteses, impede a formação do conhecimento (a lei do tirano). Na melhor, prepara o conhecimento e torna-o possível (a lei de Abraão ou do Cristo). Entre esses dois extremos, a lei supre o conhecimento naqueles que são incapazes de o obter em função do seu modo de existência (a lei de Moisés). Mas, de qualquer modo, não deixa de se manifestar uma diferença de natureza entre o conhecimento e a moral, entre a relação mandamento-obediência e a relação conhecido-conhecimento. Segundo Espinosa, o drama da teologia, a sua nocividade, não são apenas especulativos; provêm da confusão prática que ela nos inspira entre essas duas ordens diferentes por natureza. A teologia considera pelo menos que os dados da Escritura são bases para o conhecimento, mesmo que esse deva ser desenvolvido de forma racional, ou até transposto, traduzido pela razão: daí a hipótese de um Deus moral, criador e transcendente. Há, aqui, como o veremos adiante, uma confusão que compromete toda a ontologia: a história de um longo erro onde se confunde o mandamento com algo a compreender, a obediência (31) com o próprio conhecimento, o Ser com um Fiat. A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/ Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau.

[DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia prática. Tr.: Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002, p. 29-31]
  1. Tratado teológico-político. Cap. 4.[]