Deleuze (2013:116-119) – a dobra

Mas há uma razão positiva mais profunda. É que a própria dobra, a reduplicação, é uma Memória: “absoluta memória” ou memória do lado de fora, para além da memória curta que se inscreve nos estratos e nos arquivos, para além das sobrevivências ainda presas aos diagramas. Já a existência estética dos gregos solicita essencialmente a memória do futuro e, rapidamente, os processos de subjetivação são acompanhados de escrituras que constituíam verdadeiras memórias, hypomnemata. Memória é o verdadeiro nome da relação consigo, ou do afeto de si por si. Segundo Kant, o tempo era a forma pela qual o espírito se afetava a si mesmo, assim como o espaço era a forma pela qual o espírito era afetado por outra coisa: o tempo era então “auto-afecção”, constituindo a estrutura essencial da subjetividade? Mas o tempo como sujeito, ou melhor, subjetivação, chama-se memória. Não esta curta memória que vem depois, e se opõe ao esquecimento, mas a “absoluta memória” que duplica o presente, que reduplica o lado de fora e que não se distingue do esquecimento, pois ela é ela própria e é sempre esquecida para se refazer: sua dobra (pli), com efeito, confunde-se com o desdobramento (repli), porque este permanece presente naquela como aquilo que é dobrado. Só o esquecimento (o desdobramento, dépli) encontra aquilo que está dobrado na memória (na própria dobra). Há uma redescoberta final de Heidegger por Foucault. O que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento, que nos dissolve no lado de fora e que constitui a morte. Ao contrário, enquanto o lado de fora está dobrado, um lado de dentro lhe é coextensivo, assim como a memória é coextensiva ao esquecimento. É esta co-extensividade que é a vida, longo período. O tempo se torna sujeito, por ser a dobra do lado de. fora e, nessa condição, faz com que todo o presente passe ao esquecimento, mas conserva todo o passado na memória, o esquecimento como impossibilidade de retorno e a memória como necessidade de recomeçar. Durante muito tempo, Foucault pensou o lado de fora como uma última espacialidade, mais profunda que o tempo: foram suas últimas obras que lhe permitiram colocar o tempo no lado de fora e pensar o lado de fora como tempo, sob a condição da dobra.

É nesse ponto que se baseia a confrontação necessária entre Foucault e Heidegger: a “dobra” sempre obcecou a obra de Foucault, mas encontra nas últimas pesquisas sua justa dimensão. Que semelhanças e que diferenças em relação a Heidegger? Isto só pode ser avaliado se tomarmos como ponto de partida a ruptura de Foucault com a fenomenologia no sentido “vulgar”, isto é, com a intencionalidade. Que a consciência vise à coisa e “se signifique” no mundo — eis o que Foucault rejeita. Com efeito, a intencionalidade é concebida para superar todo psicologismo e todo naturalismo, mas ela inventa um novo psicologismo e um novo naturalismo, a ponto, como dizia o próprio Merleau-Ponty, de quase não se distinguir de um learning. Ela restaura um psicologismo das sínteses da consciência e das significações, um naturalismo da “experiência selvagem” e da coisa, do deixar-ser da coisa no mundo. Daí a dupla recusa de Foucault. Certamente, enquanto ficarmos nas palavras e nas frases, podemos crer numa intencionalidade através da qual a consciência visa a alguma coisa e se significa (como significante); enquanto ficarmos nas coisas e nos estados de coisas, podemos crer numa experiência selvagem que deixa-ser a coisa através da consciência. Mas a “colocação entre parênteses” que a fenomenologia invoca deveria levá-la a superar as palavras e as frases em direção aos enunciados. as coisas e os estados de coisas em direção às visibilidades. Ora, os enunciados não visam a nada, porque não se relacionam com nada, tal como não exprimem um sujeito, mas apenas remetem à uma linguagem, a um ser-linguagem, que lhes dá objetos e sujeitos próprios e suficientes como variáveis imanentes. E as visibilidades não se desdobram num mundo selvagem que se abriria a uma consciência primitiva (antepredicativa), mas apenas remetem a uma luz, a um ser-luz. que lhes dá formas, proporções, perspectivas propriamente imanentes, livres de todo olhar intencional. Nem a linguagem nem a luz serão consideradas nas direções que as relacionam uma com a outra (designação, significação, “significanda” da linguagem; meio físico, mundo sensível ou inteligível), mas na irredutível dimensão que cada uma lhes dá, cada uma suficiente e separada da outra, o “há” da luz e o (117) “há” da linguagem. Toda a intencionalidade desaba na abertura entre as duas mônadas, ou na “não-relação” entre ver e falar. É a conversão maior de Foucault: converter a fenomenologia em epistemologia. Pois ver e falar é saber, mas nós não vemos aquilo de que falamos, e não falamos daquilo que vemos; e, quando vemos um cachimbo, não deixamos de dizer (de várias maneiras) “isso não é um cachimbo…”, como se a intencionalidade se negasse a si própria, desabasse sozinha. Tudo é saber, e esta é a primeira razão pela qual não há experiência selvagem: não há nada antes do saber, nem embaixo dele. Mas o saber é irredutivelmente duplo, falar e ver, linguagem e luz, e esta é a razão pela qual não há intencionalidade.

Mas é aí que tudo começa, porque a fenomenologia, por sua vez, para exorcizar o psicologismo e o naturalismo que continuaram a marcá-la, superou por si própria a intencionalidade como relação da consciência com seu objeto (o ente). E em Heidegger, depois em Merleau-Ponty, o ultrapassar da intencionalidade se fazia em direção ao Ser, à dobra do Ser. Da intencionalidade à dobra, do ente ao ser, da fenomenologia à ontologia. Os discípulos de Heidegger nos ensinaram a que ponto a ontologia era inseparável da dobra, visto que o Ser era precisamente a prega que ele fazia com o ente, e que o desdobramento do ser, como gesto inaugural dos gregos, não era o contrário da dobra, mas a própria dobra, a dobradiça do Aberto, a unicidade do desvelar-velar. Era menos evidente em que essa dobradura do ser, a prega do ser e do ente, substituía a intencionalidade — ainda que fosse para fundá-la. Coube a Merleau-Ponty mostrar como uma visibilidade radical, “vertical”, se dobrava em um Se-vidente e tornava possível, consequentemente, a relação horizontal de um vidente e de um visto. Um Lado de Fora mais longínquo que todo o exterior, “se torce”, “se dobra”, “se duplica” com um Lado de Dentro, mais profundo que todo interior, e só ele torna possível a relação derivada do interior para o exterior. É, inclusive, essa torção que define a “Carne”, além do próprio corpo e de seus objetos. Em suma, a intencionalidade do ente se supera em direção à dobra do ser, em direção ao Ser como dobra (Sartre, ao contrário, ateve-se à intencionalidade, porque se contentava em fazer “furos” no ente, sem atingir a dobra do ser). A intencionalidade se faz ainda num espaço euclidiano que a (118) impede de se compreender a si mesma e deve ser ultrapassada em direção a um outro espaço, “topológico”, que põe em contato o Lado de Fora e o Lado de Dentro, o mais longínquo e o mais profundo.1

Não há dúvida que Foucault encontrou uma forte inspiração teórica em Heidegger, e em Merleau-Ponty, para o tema que o perturbava: a dobra, o forro. Mas também encontrou a sua aplicação prática em Raymond Roussel: este armou uma Visibilidade ontológica, sempre se torcendo em um “se-vidente”, numa outra dimensão que não a do olhar e de seus objetos 2. Poder-se-ia igualmente aproximar Heidegger e Jarry, na medida em que a patafísica se apresenta efetivamente como uma superação da metafísica, explicitamente fundada no ser do fenômeno. Mas considerar assim, em Jarry ou Roussel, a realização da filosofia de Heidegger, não seria dizer que a dobra foi deslocada e se instala numa paisagem bem diferente, assumindo outro sentido? Trata-se, não de tirar a seriedade de Heidegger, mas de encontrar a imperturbável seriedade de Roussel (ou de Jarry). A seriedade ontológica precisa de um humor diabólico ou fenomenológico. Com efeito, acreditamos que a dobra como forro em Foucault vai assumir feição inteiramente nova, embora conservando o seu alcance ontológico. Em primeiro lugar, a dobra do ser, segundo Heidegger e Merleau-Ponty, só supera a intencionalidade para fundá-la na outra dimensão: eis por que o Visível ou o Aberto não fazem ver sem também fazerem falar, pois a dobra não constituirá o se-vidente da visão sem constituir também o se-falante da linguagem, a ponto de ser o mesmo mundo que é (119) falado na linguagem e que é visto através da visão. Em Heidegger e em Merleau-Ponty, a Luz abre um falar tanto quanto um ver, como se as significações obcecassem o visível e o visível murmurasse o sentido.3 Não pode ser assim em Foucault, para quem o Ser-luz remete apenas às visibilidades e o Ser-linguagem aos enunciados: a dobra não poderá fundar uma nova intencionalidade, pois esta desaparece na disjunção, entre as duas partes, de um saber que jamais é intencional.

  1. Sobre a dobra, o entrelaçamento ou o quiasma, “retorno sobre si do visível”, cf. Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible, Gallimard. E as “notas de trabalho” insistem na necessidade de ultrapassar a intencionalidade rumo a uma dimensio vertical que constitua uma topologia (263-264). Essa topologia implica, em Merleau-Ponty, a descoberta da “carne” como um ponto de virada (como já ocorria em Heidegger, segundo Didier Franck, Heidegger et le Problème de l’Espace, Ed. de Minuit). Esta é a razão por que podemos pensar que a análise das Aveux de Ia Chair (As Confissões da Carne), tal como Foucault a processa no manuscrito inédito, trata, por sua vez, o conjunto do problema da “dobra” (encarnação), sublinhando a origem cristã da carne, do ponto de vista da história da sexualidade.[]
  2. O texto de RR. 136, insiste nesse aspecto, quando o olhar passa pela lente engastada na caneta: “Festa interior ao ser … visibilidade fora do olhar, e se chegamos a ela através de uma lente ou de uma vinheta, é … para colocar o olhar entre parênteses … o ser se impõe numa serenidade pletórica ..”[]
  3. Segundo Heidegger, a Lichtung é o Aberto não apenas para a luz e o visível, mas para a voz e o som. Assim também para Merleau-Ponty. 201-202. Foucault rejeita o conjunto desses encadeamentos.[]