Charles Taylor (1997) – filosofia moral e identidade humana

Desejo examinar várias facetas daquilo que vou chamar de a “identidade moderna”. Uma boa primeira abordagem do que isso significa seria dizer que a tarefa envolve o rastreamento de várias vertentes de nossa concepção moderna do que é ser um agente humano, uma pessoa ou um seif. Contudo, o processo dessa investigação logo mostra que não é possível formar uma ideia muito clara disso sem alguma compreensão adicional de como nossas representações do bem evoluíram. A individualidade e o bem, ou, em outras palavras, a identidade e a moralidade, apresentam-se como temas inextricavelmente entrelaçados.

[…] Boa parte da filosofia moral contemporânea, particularmente mas não apenas no mundo de língua inglesa, tem abordado a moralidade de maneira tão estreita que algumas das conexões cruciais que desejo esboçar aqui são incompreensíveis em seus termos. Essa filosofia moral tendeu a se concentrar mais no que é certo fazer do que no que é bom ser, antes na definição do conteúdo da obrigação do que na natureza do bem viver; e não há nela espaço conceitual para a noção do bem como o objeto de nosso amor ou lealdade ou, como Iris Murdoch o retratou em sua obra, como o foco privilegiado da atenção ou da vontade1. Essa filosofia sancionou uma concepção defeituosa e truncada da moralidade num sentido estreito, bem como de toda a gama de questões envolvidas na tentativa de levar a melhor vida possível, e isso não só para filósofos profissionais como para um público mais amplo.

[…] Em particular, o que desejo apresentar e examinar são as linguagens subjacentes mais ricas em que assentamos os alicerces e o sentido das obrigações morais que reconhecemos. Em termos mais gerais, quero examinar o pano de fundo de nossa natureza e situação espirituais, que está por trás de algumas das intuições morais e espirituais de nossos contemporâneos. No curso desse empreendimento, também me esforçarei para esclarecer melhor o que é um pano de fundo e que papel ele desempenha em nossa vida. E aqui entra um importante elemento de resgate, visto que boa parte da filosofia contemporânea tem ignorado por inteiro essa dimensão de nossa consciência e crenças morais, chegando mesmo a dar a impressão de descartá-la como algo confuso e irrelevante. Espero demonstrar, em oposição a essa atitude, como essa dimensão é crucial.

Falei no parágrafo anterior de nossas intuições “morais e espirituais”. Com efeito, quero considerar algumas concepções um pouco mais amplas do que aquilo que normalmente é descrito como a “moral”. Além de nossas noções e reações relativas a tópicos como justiça e respeito à vida, ao bem-estar e à dignidade das outras pessoas, desejo analisar nosso sentido do que está na base de nossa própria dignidade, ou questões acerca do que torna nossa vida significativa ou satisfatória. Estas poderiam ser classificadas como questões morais em alguma definição ampla, porém algumas estão demasiado ligadas ao respeito próprio ou muito identificadas com nossos ideais para ser classificadas como tal no léxico da maioria das pessoas. Referem-se antes ao que torna a vida digna de ser vivida.

O que elas têm em comum com questões morais, e o que merece o termo vago “espiritual”, é o fato de todas envolverem o que denominei alhures “avaliação forte”, isto é, envolvem discriminações acerca do certo ou errado, melhor ou pior, mais elevado ou menos elevado, que são validadas por nossos desejos, inclinações ou escolhas, mas existem independentemente destes e oferecem padrões pelos quais podem ser julgados. Assim, embora possa não ser julgado um lapso moral o fato de eu levar uma vida que na verdade não vale a pena nem traz realização, descrever-me nesses termos é, de certo modo, condenar-me em nome de um padrão, independente de meus próprios gostos e desejos, que eu deveria reconhecer.

[TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. Tr. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola, 1997]