Casanova (MH1:242-243) – impossibilidade de falar de “natureza humana”

Desde o início de nosso texto, procuramos acentuar incessantemente o quanto Heidegger radicaliza a (242) compreensão husserliana da essência intencional da consciência por meio de uma supressão do próprio quadro hermenêutico no qual Husserl pensou a intencionalidade. Assim, ao invés de pensar o ser do homem como consciência intencional, como síntese de vivências intencionais em fluxo, Heidegger reduz o homem à pura dinâmica intencional. É isto que encontramos expresso justamente na já citada passagem que procura descrever o ser mais próprio ao ser-aí: “A essência do ser-aí reside em sua existência”1. Na medida em que se mostra exclusivamente como ser intencional, o ser-aí se revela ao mesmo tempo como um ser desprovido de toda e qualquer determinação natural originária, de toda e qualquer possibilidade de se falar de algo assim como uma natureza humana. Sem toda e qualquer determinação natural, no entanto, não é possível falar de uma direcionalidade natural. De saída, o ser-aí não tem como por si mesmo escapar de sua indeterminação, precisamente porque ele não tem como por si mesmo escolher se ele faz uma coisa ou outra, se ele toma um caminho ou outro, se ele se entrega a uma coisa ou outra. Dito de maneira mais expressa, são os sentidos sedimentados no mundo e operacionalizados primordialmente pelo existir que sustentam pela primeira vez a possibilidade mesma do despontar de tal escolha, de tal direcionamento, de tal entrega. Temos aqui claramente o problema do foco fenomenológico. Sem sentido, não há por um lado foco existencial algum, porque a existência não tem nenhum foco natural. Na medida em que existência se dá, por outro, a compreensão imediatamente abre um campo de sentido que toma pela primeira vez possível o que quer que venha a se mostrar como possível. É com a compreensão, portanto, de maneira intencional, que um direcionamento originariamente emerge. A compreensão, contudo, de saída e na maioria das vezes, não faz outra coisa senão articular um campo compreensivo já previamente sedimentado, de tal modo que o sentido que sustenta a conformação dos campos de ação cotidianos não são atravessados senão por focos cotidianos. [CASANOVA, Marco Antonio. Mundo e historicidade. Leitura fenomenológica de Ser e tempo. Volume um: existência e mundaneidade. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017, p. 242-243]

  1. Martin Heidegger, [Ser e tempo, §9, ET9, p. 42.[]