Carneiro Leão (1977:22-23) – dimensões das possibilidades da sabedoria

No primeiro livro da Metafísica Aristóteles esboça uma graduação das dimensões em que se articulam as possibilidades da sabedoria. Num primeiro grau a percepção sensível, “aisthesis”, se estende a todos os seres vivos. Localizada no espaço e situada no tempo a sensibilidade percebe apenas o que lhe é dado “hic et nunc”. Alguns seres vivos, porém, os animais, retêm o conteúdo de suas percepções, integrando-os na síntese da memória, “mneme”, e nesse sentido já sabem mais, são mais sábios do que os vegetais. Os homens, além de sensibilidade e memória, dispõem ainda de experiência, “empeiria”, e pela experiência se lhes torna familiar uma prática no trato com as coisas, o que os gregos chamavam “techne” e que melhor do que “técnica” traduz a palavra portuguesa “perícia”. Da “techne” procede num plano superior a reflexão sobre os princípios constitutivos da existência, a “episteme”, cuja tradução por ciência é no mínimo desviante. Por fim coroando, como chave, toda a abóbada da sabedoria, a suprema forma de saber, o esforço pela “sophia”, a filo-sofia.

O que Aristóteles pretende nesse esquema não é um sistema estático de graduação, uma cadeia de vasos comunicantes desde as plantas através dos animais até o homem e dentro do espaço humano desde os técnicos através dos cientistas até os filósofos. A graduação constitui, como um todo, um movimento só, um único processo de autopotenciação, de auto-essencialização do saber. A filosofia não é uma posse tranquilamente estática. É a dinamização de uma conquista. Ao homem finito não é dado desde sempre nem para sempre o ser de sua essência. Para ser aquilo que é, ele deve lutar na conquista das estações de sua constituição ontológica. O último grau da graduação já opera virtualmente desde o primeiro, constituindo-se na força, que aciona todo o processo da sabedoria. (22)

Sensibilidade e memória, experiência e perícia, reflexão e filosofia formam a perspectiva em cujo horizonte se articulam previamente as dimensões significativas das palavras “sábio”, “sophos”, e “sabedoria”, “sophia”. Aristóteles ausculta e investiga as condições de possibilidade, implícitas na mais vulgar compreensão, das palavras “saber”, “sábio” e “sabedoria”, a fim de explicitar a maneira latente em que a filosofia exerce uma virulência velada mas vigorosa no ambiente da vida prática. O pré-sentimento, difuso na existência, do que é sabedoria, serve-lhe de esteira à investigação temática da filosofia. Nela se deslindam as pressuposições, que sempre se fazem, mesmo nas condições da vida prática mais alheias a um interesse filosófico. O homem só chegou à filosofia, por sempre conhecê-la virtualmente nos ventriculos de sua existência, por sempre necessitar dos tentáculos de sua força até mesmo para poder negá-la. Supremo grau de autoconsciência da existência, a filosofia não é um saber, que simplesmente aspira a conhecer alguma coisa, independente da existência, mas um saber “kai tou eidenai charin”, um saber, isto é, que, tendo por força o jato próprio do saber humano, como tal, tende à suprema projeção da existência. Assim, o que, re-velando o dinamismo inerente à sabedoria, Aristóteles procura pensar no início da Metafísica, é a presença da filosofia na existência, a trama das relações, que soldam numa interdependência indissolúvel o ser do homem ao ser da filosofia.

(CARNEIRO LEÃO, Emmanuel, Aprendendo a pensar. Volume I. Petrópolis: Vozes, 1977)