Birault: Ética

Donde a tímida e por vezes cômica substituição da ética pela moral que testemunha frequentemente certa recusa e certo rechaço de todas estas filosofia, já desprendidas e portanto muito recentes, da ação e do engajamento. Com efeito, embora a ética como ciência particular não deixe de se situar na ordem da praxis, a palavra êthos da qual ela deriva conserva apesar de tudo mais densidade ontológica que a moral como arte ou como ciência dos costumes. Assim entendida, a ética poderia significar que o grande “affaire” hoje em dia não é então de mudar o mundo mas, melhor, de o pensar. A dificuldade de ser prevalece sobre a dificuldade de agir, o pensamento do ser e de sua verdade poderia já muito bem ser nele mesmo e por ele mesmo uma injunção a ser e, se se quer, uma ética em sentido ainda não suposto, ainda inaudita da palavra êthos em todo primeiro pensamento grego.

E, no entanto, a recondução da moral à ética tal qual ela é ordinariamente compreendida, é tão vã quanto poderia ser vã a tentativa de restaurar a ideia de uma sabedoria ainda mais antiga. Aí onde o pensamento é autenticamente pensante, ela age enquanto ela pensa: este pensamento não se chama theoria, esta ação não se chama praxis. Eis porque aqueles que demandam a um pensador de “completar” sua “ontologia” por uma “ética” nada sabem ainda disto que é o pensamento, da pobreza de seus resultados e de seus efeitos imediatos, uma pobreza ainda maior que aquela da filosofia, uma pobreza que por vezes no entanto faz história, pois se o pensamento não busca jamais a se engajar na história, acontece que ela engaja uma história com ela e nela.

Significativo do perigo de nosso mundo é o chamado reiterado a uma ética que viria conjurá-la. “Pouco depois do aparecimento de Sein und Zeit, escreveu Heidegger, um jovem amigo me perguntou: ‘Quando escrevereis uma ética?’”. Escutemos um esboço de resposta: “A ‘ética’ aparece pela primeira vez com a ‘lógica’ e a ‘física’ na escola de Platão. Estas disciplinas surgem em uma época onde o pensamento se faz ‘filosofia’, a filosofia, episteme (ciência) e a ciência ela mesma, “affaire” de escola e de exercício escolar. Neste percurso através da filosofia assim entendida, a ciência surge e o pensamento sucumbe. Antes desta época, os pensadores não conheciam nem ‘lógica’, nem ‘ética’, nem ‘física’. Seu pensamento não era no entanto nem ilógico, nem imoral. Mas eles pensavam a physis com uma profundidade e uma amplitude que nenhuma ‘física’ ulterior jamais foi capaz. No caso em que fosse permitido uma tal comparação, as tragédias de Sófocles abrigam mais originalmente o êthos no seu dizer que as lições de Aristóteles sobre a ‘ética’” (Carta sobre o Humanismo).

(BIRAULT, Henri, Heidegger et l’expérience de la pensée. Paris: Gallimard, p. 94-95)