Abranches, Almeida & Martins
Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer — a palavra “aparência” não faria sentido — se não existissem receptores de aparências: criaturas vivas capazes de conhecer, reconhecer e reagir — em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer — não apenas ao que está aí, mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.
Já que os seres sensíveis — homens e animais, para quem as coisas aparecem e que, como receptores, garantem sua realidade — são eles mesmos também aparências, próprias para e capazes tanto de ver como de serem vistas, ouvir e serem ouvidas, tocar e serem tocadas, eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal; não são menos “objetivos” do que uma pedra ou uma ponte. A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade “objetiva”. O que usualmente chamamos “consciência”, o fato de que estou cônscio de mim mesmo, e que, portanto, em algum sentido, posso aparecer para mim mesmo, jamais seria o bastante para assegurar a realidade (o Cogito me cogitare ergo sum, de Descartes, é um non sequitur, pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece, a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores). Vista da perspectiva do mundo, cada criatura que nasce chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem; são criaturas adequadas à existência mundana. Os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos — percebendo e sendo percebidos — ao mesmo tempo.
[ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 17]The world men are born into contains many things, natural and artificial, living and dead, transient and sempiternal, all of which have in common that they appear and hence are meant to be seen, heard, touched, tasted, and smelled, to be perceived by sentient creatures endowed with the appropriate sense organs. Nothing could appear, the word “appearance” would make no sense, if recipients of appearances did not exist—living creatures able to acknowledge, recognize, and react to—in flight or desire, approval or disapproval, blame or praise—what is not merely there but appears to them and is meant for their perception. In this world which we enter, appearing from a nowhere, and from which we disappear into a nowhere, Being and Appearing coincide. Dead matter, natural and artificial, changing and unchanging, depends in its being, that is, in its appearingness, on the presence of living creatures. Nothing and nobody exists in this world whose very being does not presuppose a spectator. In other words, nothing that is, insofar as it appears, exists in the singular; everything that is is meant to be perceived by somebody. Not Man but men inhabit this planet. Plurality is the law of the earth.
Since sentient beings—men and animals, to whom things appear and who as recipients guarantee their reality—are themselves also appearances, meant and able both to see and be seen, hear and be heard, touch and be touched, they are never mere subjects and can never be understood as such; they are no less “objective” than stone and bridge. The worldliness of living things means that there is no subject that is not also an object and appears as such to somebody else, who guarantees its “objective” reality. What we usually call “consciousness,” the fact that I am aware of myself and therefore in a sense can appear to myself, would never suffice to guarantee reality. (Descartes’ Cogito me cogitare ergo sum is a non sequitur for the simple reason that this res cogitans never appears at all unless its cogitationes are made manifest in sounding-out or written-down speech, which is already meant for and presupposes auditors and readers as its recipients.) Seen from the perspective of the world, every creature born into it arrives well equipped to deal with a world in which Being and Appearing coincide; they are fit for worldly existence. Living beings, men and animals, are not just in the world, they are of the world, and this precisely because they are subjects and objects—perceiving and being perceived—at the same time.
ARENDT, H. The Life of the Mind: the Groundbreaking Investigation on How We Think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1981 (LM)