A análise estritamente fenomenológica da VONTADE feita por Heidegger no volume I de Nietzsche segue cuidadosamente suas análises anteriores do eu em Ser e Tempo; só que a VONTADE toma o lugar atribuído ao Cuidado no trabalho anterior. Lemos: “A auto-observação e o autoexame nunca trazem à luz o eu ou mostram como nós mesmos somos. Mas, ao querer e também ao não-querer, fazemos exatamente isso; aparecemos em uma luz que é em si iluminada por um ato de VONTADE. Querer sempre significa: trazer-se a si mesmo (…). Querendo, encontramo-nos com quem somos autenticamente.” (Nietzsche, vol. I, p. 63-64) Logo, “querer é essencialmente querer o próprio eu, mas não um eu dado que é aquilo que é, mas o eu que quer tornar-se aquilo que é (…). A VONTADE de fugir do próprio eu é, na verdade, um ato de não querer” (Ibidem, p. 161). Veremos mais adiante que esse retorno ao conceito de eu de Ser e Tempo não deixa de ter importância para a “reviravolta” ou “mudança de disposição” manifesta no segundo volume. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
A palavra final de Heidegger sobre essa faculdade diz respeito à destrutividade da VONTADE, assim como a palavra final de Nietzsche dizia respeito à sua “criatividade” e superabundância. Tal destrutividade manifesta-se na obsessão da VONTADE pelo futuro, que leva necessariamente o homem ao esquecimento. Para que possa querer o futuro, no sentido de ser senhor do futuro, o homem deve esquecer e finalmente destruir o passado. Da descoberta de Nietzsche de que a VONTADE não pode “querer retroativamente”, segue-se não só a frustração e o ressentimento, mas também a VONTADE positiva e ativa de aniquilar o que foi. E já que tudo o que é real “veio a ser”, isto é, incorpora um passado, essa destrutividade relaciona-se em última instância a tudo o que é. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
Heidegger sintetiza isso em What is Called Thinking?: Diante daquilo que ‘foi’, a VONTADE não tem mais nada a dizer (…), o “foi” resiste ao querer da VONTADE (…) o ‘foi’ reage e é contrário à VONTADE. (…) Mas, por meio dessa reação, o contrário cria raízes dentro da própria VONTADE. A VONTADE (…) padece disso — ou seja, a VONTADE padece de si mesma (…) do que passou, do passado. Mas o que passou origina-se do passar… Assim, a VONTADE quer ela mesma o passar (…). A reação da VONTADE contra todo “foi-se” mostra-se como a VONTADE de fazer com que tudo passe, de querer, portanto, que tudo mereça passar. A reação que surge na VONTADE é, então, a VONTADE contra tudo o que passa — tudo, isto é, tudo o que vem a ser a partir de um vir-a-ser, e que perdura (grifos nossos). (Pp. 92-93. Trad. da autora) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
Nessa compreensão radical de Nietzsche, a VONTADE é essencialmente destrutiva; e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe. Seguindo essa interpretação, a própria natureza da tecnologia é a VONTADE de querer, ou seja, de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo, cujo fim natural só pode ser a destruição total. A alternativa a esse jugo é “deixar-ser, e o deixar-ser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser”. A disposição que permeia o deixar-ser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer; mais tarde, em sua reinterpretação da “reviravolta”, Heidegger a chama de “Gelassenheit”, uma serenidade que corresponde ao deixar — ser e que “nos prepara” para “um pensamento que não é uma VONTADE” (Gelassenheit, p. 33; Discourse on Thinking, p. 60). Esse pensamento está “além da distinção entre atividade e passividade” porque está além do “domínio da VONTADE”, isto é, além da categoria da causalidade, que Heidegger, concordando com Nietzsche, deriva da experiência que o ego volitivo tem de produzir efeitos e, portanto, de uma ilusão produzida pela consciência. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)