O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o suprassensorial, juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides de que o que quer que não seja dado aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros Princípios e Causas (archai), ou as Ideias — é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas também a própria distinção. Enquanto isso, os poucos defensores da metafísica, em um tom cada vez mais estridente, alertaram-nos sobre o perigo do niilismo inerente a essa afirmação. Embora disponham de um importante argumento a seu favor, eles próprios raramente o invocam: de fato, é verdade que uma vez descartado o domínio suprassensível, fica também aniquilado o seu oposto, o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos. O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à MORTE do suprassensível. Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche, que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus (The Gay Science, livro III, n° 125, “The madman”), tanta confusão produziu sobre esse assunto. Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos, ele esclarece o que a palavra “Deus” significava na história anterior. Era meramente um símbolo para o domínio suprassensorial tal como foi compreendido pela metafísica; agora, em vez de “Deus”, utiliza a expressão “mundo verdadeiro” e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que permaneceu? Talvez o mundo das aparências? Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo das aparências.” (“How the ‘True World’ finally became a fable”, 6) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução)
A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “intelecto” (e não “entendimento”, o que me parece uma tradução equivocada; Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus, e, embora Verstand seja o substantivo de verstehen, o “entendimento” das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen) é crucial para nossa empreitada. Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. Para ele, esses assuntos — aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa — restringiam-se ao que agora chamamos habitualmente de as “questões últimas” de Deus, da liberdade e da imortalidade. Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões, e embora Kant ainda acreditasse que “nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a MORTE” (Werke, vol. I, p. 989), ele também estava bastante consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento” (“Prolegomena”, Werke, vol. III, p. 245). Assim, a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo. Embora houvesse insistido nessa distinção, Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastar-se de seu tema tradicional, ou seja, daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis; e embora justificasse a necessidade de a razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido, permaneceu inconsciente ao fato de a necessidade humana de reflexão acompanhar quase tudo o que acontece ao homem, tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer. Por tê-la justificado unicamente em termos dessas questões últimas, Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão, a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia “achado necessário negar o conhecimento (…) para abrir espaço para a fé” (Critique of Pure Reason, Bxxx). Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não “negou o conhecimento”, mas separou conhecimento de pensamento. Nas notas de suas lições sobre a metafísica, escreveu: “O propósito da metafísica (…) é estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos; isto é, eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria” (grifos nossos) (Kant’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 48-49). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução)
Estar vivo significa viver em um mundo que precedeu à própria chegada e que sobreviverá à partida. Nesse nível do estar meramente vivo, o aparecer e o desaparecer — uma vez que um segue o outro — são os eventos primordiais que, como tais, demarcam o tempo, o intervalo temporal entre o nascimento e a MORTE. O finito intervalo vital de cada criatura determina não só sua expectativa de vida, mas também sua experiência do tempo; ele fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais, não importa quanto essas mensurações transcendam o intervalo em direção ao passado ou ao futuro. Assim, a experiência vivida da duração de um ano muda radicalmente ao longo de nossa vida. Um ano que consiste em todo um quinto da existência para uma criança de cinco anos deve parecer muito maior do que quando chegar a constituir um vigésimo ou um trigésimo do tempo dessa criatura na Terra. Todos sabemos como os anos passam cada vez mais rapidamente à proporção que envelhecemos, até que, com a proximidade da velhice, a velocidade volta a diminuir, porque começamos a medi-los com referência à data psicológica e somaticamente antecipada de nossa partida. Contra esse relógio inerente a seres vivos que nascem e morrem está o tempo “objetivo”, segundo o qual a duração de um ano não muda nunca. Esse é o tempo do mundo, e seu pressuposto subjacente — independente de quaisquer crenças científicas ou religiosas — é que o mundo não tem princípio nem fim, um pressuposto que só parece natural a seres que sempre chegam a um mundo que os precedeu e que a eles sobreviverá. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1)
Além do mais, é precisamente a atividade do pensamento — as experiências do ego pensante — que gera dúvida sobre a realidade do mundo e de mim mesmo. O pensamento pode apoderar-se de tudo que é real — evento, objeto, seus próprios pensamentos; a realidade disso tudo é a única propriedade que permanece persistentemente além de seu alcance. O cogito ergo sum é uma falácia não apenas no sentido, observado por Nietzsche, de que do cogito só se pode inferir a existência de cogitationes; o cogito está sujeito à mesma dúvida que o sum. O eu-existo está pressuposto no eu-penso. O pensamento pode agarrar-se a esta pressuposição mas não pode demonstrar se ela é falsa ou verdadeira. (O argumento de Kant contra Descartes também estava inteiramente correto: o pensamento “eu não sou (…) não pode existir; pois, se eu não sou, consequentemente não posso saber que não sou”.) (“Antropologie”, n° 24, Werke, vol. VI, p. 465) A realidade não pode ser derivada. O pensamento ou a reflexão podem aceitá-la ou rejeitá-la, e a dúvida cartesiana, partindo da noção de um Dieu trompeur, é apenas uma forma velada e sofisticada de rejeição. (Heidegger assinala com razão: “O próprio Descartes enfatiza que a sentença (cogito ergo sum) não é um silogismo. O eu-sou não é consequência do eu-penso, mas, ao contrário, o fundamentum, a sua base.” Heidegger menciona a forma que o silogismo deveria ter: Id quod cogitat est; cogito; ergo Sum. Die Frage nach dem Ding, Tübingen, 1962, p. 81.) Restou a Wittgenstein — que planejou investigar “quanta verdade há no solipsismo” e, assim, tornou-se seu mais destacado representante contemporâneo — formular a ilusão existencial subjacente a todas as teorias solipsistas: “Com a MORTE, o mundo não se altera, apenas chega a um fim.” “A MORTE não é um evento na vida; nós não vivemos nossa MORTE.” (Tractatus, 5.62; 6.431; 6.4311. Cf. Notebooks 1914-1916, Nova York, 1969, p. 75e) Essa é a premissa básica de todo pensamento solipsista. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7)
A autonomia das atividades espirituais, além disso, implica também que essas atividades não são condicionadas; nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente. Pois a “tranquilidade desapaixonada” da alma não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual, a premência de pensar, como também a “necessidade da razão”, na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. É certo que os objetos do meu pensar, querer ou julgar, aquilo de que o espírito se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente — limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a MORTE, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes —, podem espiritualmente transcender todas essas condições, mas só espiritualmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade — como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer —, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do espírito. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e “não nos dotam diretamente com o poder de agir” (Heidegger). A ausência de pensamento é realmente um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. A premência, a a-scholia dos assuntos humanos, requer juízos provisórios, a confiança no hábito e no costume, isto é, nos preconceitos. Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti pantón kechórismenon) (Frag. 108). E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9)
A noção bastante curiosa de uma afinidade entre a filosofia e a MORTE persistiu ao longo da história da filosofia. Por muitos séculos esperava-se que a filosofia ensinasse os homens a morrer; foi nesse espírito que os romanos decidiram que o estudo da filosofia era uma ocupação adequada somente aos velhos, ao passo que os gregos sustentavam que ela deveria ser estudada pelos jovens. Foi Platão, contudo, o primeiro a observar que o filósofo aparece, para os que não fazem filosofia, como se estivesse perseguindo a MORTE (Phaedo, 64). Assim como foi Zenão, o fundador do estoicismo, quem relatou, no mesmo século, que o oráculo de Delfos, ao ser indagado sobre o que fazer para chegar à melhor vida, havia respondido: “Tome a cor dos mortos.” (Diógenes Laércio, VII, 2) Em tempos modernos não é incomum encontrar quem defenda, como Schopenhauer, que a nossa mortalidade é a fonte eterna da filosofia, que “a MORTE é de fato o gênio inspirador da filosofia (…) (e que) sem a MORTE não haveria atividade filosófica” (Sämmtliche Werke, Leipzig, s/d, “Über den Tod”, vol. II, p. 1240). E mesmo o jovem Heidegger de Sein und Zeit ainda encarava a antecipação da MORTE como a experiência decisiva pela qual o homem poderia alcançar o seu eu autêntico e libertar-se da inautenticidade do Eles, sem perceber que essa doutrina de fato se originava, como indicara Platão, da opinião de muita gente. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9)
“Tome a cor dos mortos” — deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento, monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas, aparecem para o senso comum dos homens, já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a MORTE e em que se retirar da aparência é morrer. O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a MORTE não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante. É muito mais o próprio senso comum do filósofo — o fato de ser ele “um homem como você e eu” — que o torna consciente de estar “fora de ordem” quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião comum, pois, afinal, compartilha a “qualidade do ser comum” (commonness) a todos os homens; e é seu próprio senso de realidade (realness) que o faz suspeitar da atividade de pensar. Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do senso comum e contra a insistência na “falta de sentido” de sua busca por significado, o filósofo sente-se inclinado a responder nos termos do senso comum, termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo. Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “MORTE é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a MORTE era compreendida como a separação entre alma e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a MORTE é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo” (Phaedo, 64-67). Desse modo, ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades, da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente (Cf. Valéry, op. cit., loc. cit). Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10)
Sob o pressuposto de que o filósofo não necessita da “ralé” para informá-lo sobre sua “tolice” — o senso comum que ele compartilha com todos os homens deve alertá-lo a tempo de prever o riso de que será objeto —, em resumo, sob o pressuposto de que aquilo com o que estamos lidando é uma luta interna entre o raciocínio do senso comum e o pensamento especulativo, luta que se passa no próprio espírito do filósofo, examinemos mais de perto a afinidade entre a MORTE e a filosofia. Do ponto de vista do mundo das aparências — o mundo comum no qual aparecemos pelo nascimento e do qual desaparecemos pela MORTE —, é natural o desejo de conhecer nosso hábitat comum e de reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito. Em função da necessidade que o pensamento tem de transcender o mundo, dele nos afastamos. Metaforicamente, desaparecemos deste mundo; e isso pode ser compreendido — do ponto de vista do que é natural e do nosso raciocínio de senso comum — como a antecipação de nossa partida final, ou seja, de nossa MORTE. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10)
Foi assim que Platão descreveu a situação no Fedon: da perspectiva da multidão, os filósofos só fazem buscar a MORTE. A multidão poderia concluir, caso os filósofos não se preocupassem com isso, que o melhor para eles seria morrer (Phaedo, 64). E Platão não está muito seguro de que a multidão não esteja certa, a não ser pelo fato de que eles não sabem em que sentido isso se deve realizar. O “verdadeiro filósofo”, o que passa a vida inteira imerso em pensamentos, tem dois desejos. O primeiro é que possa estar livre de todo tipo de ocupação, especialmente livre de seu corpo, que sempre exige cuidados e “se interpõe em nosso caminho a cada passo (…) e que provoca confusão, gera problemas e pânico” (Ibidem, 66). O segundo é que ele possa vir a viver em um além onde essas coisas com que o pensamento está envolvido, tais como a verdade, a justiça e a beleza, não estarão menos acessíveis nem serão menos reais do que tudo o que agora podemos perceber com os sentidos corporais (Ibidem, 65). Mesmo Aristóteles, em um de seus escritos mais populares, lembra aos seus leitores aquelas “ilhas dos bem-aventurados”; que são bem-aventurados porque lá “os homens não necessitariam de nada, e nada teria utilidade para eles, de tal modo que só restariam pensamento e contemplação (theorein), ou seja, o que agora mesmo chamávamos de uma vida livre” (Protreptikos, B43, Ingemar Düring Ed., Frankfurt, 1969). Em resumo, a reviravolta inerente ao pensamento não é, de modo algum, uma empreitada inofensiva. No Fedon, ela inverte todas as relações: os homens, que naturalmente se esquivam da MORTE como o maior de todos os males, voltam-se agora para ela como o maior de todos os bens. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10)
Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia — ou, mais academicamente, está posto em linguagem metafórica. Os filósofos não são famosos por seus suicídios, nem mesmo quando afirmam, com Aristóteles (em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikos) (Ibidem, B110), que os que querem divertir-se deveriam filosofar ou deixar a vida, pois tudo o mais parece tolo e sem sentido. Mas a metáfora da MORTE, ou melhor, a inversão metafórica da vida e da MORTE — o que usualmente chamamos vida é MORTE; o que habitualmente chamamos MORTE é vida —, não é arbitrária, embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático. Se o pensamento estabelece suas próprias condições, se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado, quando remove tudo o que está à mão, isso acontece para que o distante se torne manifesto. Formulando de maneira simples: no alheamento proverbial do filósofo, todo o presente está ausente, porque algo realmente ausente está presente em seu espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo. Tanto a hostilidade do filósofo em relação à política, “os pequenos assuntos humanos” (Republic, 500c), quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais. Elas são inerentes à própria experiência. Enquanto pensa, a pessoa não tem consciência de sua corporalidade. Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a alma pode pensar sem o corpo, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao corpo, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais” (Cartas de março de 1638. Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 780). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10)
Em outras palavras: todo pensamento deriva da experiência, mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento. Do ponto de vista do pensamento, a vida em seu puro estar-aí é sem sentido. Do ponto de vista da natureza imediata da vida e do mundo dado aos sentidos, o pensamento é, como Platão indicou, uma MORTE em vida. O filósofo que vive na “terra do pensamento” (Kant) (Nota da editora: não fomos capazes de encontrar esta referência) será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante, para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de MORTE em vida. Como não é idêntico ao eu real, o ego pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências. Visto de sua perspectiva, é como se o invisível viesse primeiro, como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências — que por sua própria presença distraem o espírito e impedem sua atividade — estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito. Dito de outra maneira, o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito em relação ao mundo, aparece, na perspectiva do próprio espírito, como uma “retirada do Ser” ou um “esquecimento do Ser” — Seinsentzug e Seinsvergessenheit (Heidegger). E é verdade que a vida cotidiana, a vida dos “Eles”, é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é “visível” para o espírito. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10)
O pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim. Em outras palavras, o prazer de que fala Aristóteles, apesar de manifesto para o ego pensante, é inefável por definição. A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo. Sem o sopro de vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto. De fato, é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica: “A atividade do pensamento (energeia, que tem seu fim em si mesma) é vida.” (1072b27) A lei a ela inerente, que somente um deus pode tolerar para sempre — e o homem só vez por outra, nos momentos em que ele se diviniza —, “é um movimento incessante, que é um movimento circular” (1072a21), o único movimento, ou seja, o movimento que não tem fim ou que nunca resulta em produto final. Surpreende que essa estranhíssima noção do autêntico processo de pensamento, isto é, a noesis noeseos, como um girar em círculos — a mais gloriosa justificativa para o argumento circular na filosofia — jamais tenha preocupado nem aos filósofos nem aos intérpretes de Aristóteles — em parte, talvez, por causa das frequentes más traduções de nous e theoria por “conhecimento”, ou seja, o que sempre alcança um fim e o que sempre produz um resultado final (Essa má tradução estraga o Aristotle, de W. D. Ross. Meridian Books. Nova York, 1959, mas está misericordiosamente ausente de sua tradução de Metaphysics, em The Basic Works of Aristotle, de Richard McKeon.). Se o pensar fosse um empreendimento cognitivo, ele teria que seguir um movimento retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição. O movimento circular aristotélico, tomado em conjunto com a metáfora da vida, sugere uma busca do significado que, para o homem, enquanto ser pensante, acompanha a vida e termina somente com a MORTE. O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital, o qual, embora indo do nascimento à MORTE, também gira em círculos enquanto o homem vive. A simples experiência do ego pensante mostrou-se impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores, ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar, de que existe algo como a “cognição especulativa” de Hegel (Philosophy of History, Introdução, p. 9). Vemos Hegel dizer, sem qualquer referência a Aristóteles: “A filosofia forma um círculo (…) (ela) é uma sequência que não está solta no ar; ela não é algo que comece a partir de absolutamente nada; pelo contrário, ela retorna a si mesma em círculos” (grifos nossos) (Hegel’s Philosophy of Right, trad. T. M. Knox. Londres. Oxford. Nova York, 1967, acréscimo ao parágrafo 2, p. 225). Encontramos a mesma noção no final de “O que é a Metafísica?” de Heidegger, onde ele define a “questão básica da metafísica” como: “Por que existe algo, e não o nada?” — de certo modo, a primeira questão do pensar, mas, ao mesmo tempo, o pensamento no qual ela “sempre volta a mergulhar” (Wegmarken, p. 19). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13)
Não sei quem foi o primeiro grego a tornar-se consciente da falha decisiva dessa louvada e invejada imortalidade divina. Os deuses eram imortais (a-thanatoi, aqueles que eram para sempre, aien eontes), mas não eram eternos. “Como a Teogonia nos informa com alguma riqueza de detalhes, todos eles tiveram um nascimento, sua duração vital tinha um começo temporal. São os filósofos que introduzem uma arche absoluta, ou começo, ele mesmo sem começo, uma fonte não gerada de geração permanente. O iniciador aqui é, provavelmente, Anaximandro (Anaximandro parece ter sido o primeiro a equacionar o divino como o apeiron, o não-limitado, cuja natureza deveria ser eterna, atemporal, imortal e imperecível). Podemos ver o resultado mais claramente, no entanto, no poema de Parmênides (Frag. 8). O seu ser é para sempre, em sentido forte; ele é tanto não-gerado (ageneton) quanto imperecível (anolethron). Não limitada nem pelo nascimento nem pela MORTE, a duração do que é substitui e transcende a sobrevivência infinita que caracterizava os deuses olímpicos.” (Charles H. Kahn, em seu fascinante estudo “The Greek Verb ‘to be’ and the Concept of Being”, examina “o uso pré-filosófico do verbo que (…) serve para expressar o conceito de Ser em grego” (p. 245). In Foundations of Language, vol. 2, 1966, p. 255.) Em outras palavras, para os filósofos, o Ser, sem nascimento e sem MORTE, substitui a mera imortalidade dos deuses olímpicos. O ser tornou-se a verdadeira divindade da filosofia porque, nas famosas palavras de Heráclito, ele não foi “feito por nenhum dos deuses ou homens, mas sempre foi e sempre é e sempre será: um fogo sempre vivo, com medidas permanentes, reavivando-se e apagando-se” (B30). A imortalidade dos deuses não era confiável; o que tinha vindo a ser poderia muito bem deixar de ser — os deuses pré-olímpicos não tinham morrido e desaparecido? Essa falha (a meu ver, muito mais do que a sua conduta frequentemente imoral) é que tornou os deuses olímpicos vulneráveis aos ferozes ataques de Platão. A religião homérica nunca foi um credo que pudesse ser trocado por um outro credo; “os deuses olímpicos foram derrubados pela filosofia” (Snell, op. cit., p. 40). A nova e eterna divindade que Heráclito, no fragmento acima citado, ainda chama de kosmos (não o mundo ou o universo, mas sua ordem e harmonia), finalmente recebeu de Parmênides o nome de “Ser”. Como sugere Charles Kahn, isso parece dever-se às conotações de durabilidade que a palavra teve desde o início. Sem dúvida é verdade, embora não seja nem um pouco óbvio, que “o aspecto de durabilidade do verbo, inseparável da raiz, tinge qualquer uso que dele se faça, inclusive o uso filosófico” (Kahn, op. cit., p. 260). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14)
Admite-se em geral que a filosofia — que a partir de Aristóteles é a área de investigações sobre as coisas que ultrapassavam os objetos físicos e os transcendiam (tón meta ta physika, “sobre o que vem depois do físico”) — tem uma origem grega. E tendo origem grega, ela coloca para si mesma o objetivo original grego, a imortalidade, que parecia até mesmo linguisticamente o propósito mais natural para homens que se compreendiam como mortais, thnétoi ou brotoi. Os mortais, para quem, segundo Aristóteles, a MORTE era “o maior dos males”, eram parentes de sangue, pertenciam ao mesmo clã que os deuses imortais, como se diz: “devendo a vida à mesma mãe”. A filosofia nada fez para mudar esse objeto natural, apenas propôs um novo caminho para alcançá-lo. Dito de uma maneira sucinta, esse objetivo desapareceu com o declínio e a queda do povo grego; e desapareceu totalmente da filosofia com o advento do cristianismo, que anunciou a “boa-nova”, dizendo aos homens que eles não eram mortais. Ao contrário das crenças pagãs, o mundo estaria condenado ao fim, mas os homens ressuscitariam encarnados após a MORTE. O último traço da busca grega de eternidade pode ser visto no nunc stans, o “agora permanente” da contemplação dos místicos medievais. Essa fórmula é impressionante, e veremos, mais adiante, que ela sem dúvida corresponde a uma experiência altamente característica do ego pensante. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14)
Como Sêneca, Epiteto viveu sob o regime de Nero, isto é, sob condições de muito desespero, embora ele, ao contrário de Sêneca, não tenha sido muito perseguido. Mais de cem anos antes, contudo, durante o último século da República, Cícero tinha descoberto as linhas de pensamento pelas quais era possível encontrar o caminho para fora deste mundo. Bastante versado em filosofia grega, descobriu que tais pensamentos, de modo algum tão extrema e cuidadosamente elaborados como em Epiteto, provavelmente ofereceriam conforto e ajuda neste mundo, tal como ele era então (e que, evidentemente, é mais ou menos o que sempre é). Os homens que ensinavam esse modo de pensar eram altamente estimados nos círculos literários romanos. Lucrécio diz que Epicuro — que mais de dois séculos depois de sua MORTE finalmente encontrou um discípulo digno de si — é “um deus”, porque “foi o primeiro a inventar um modo de vida que hoje é chamado sabedoria; e (porque), através de sua arte, resgatou a vida de tais tormentas e de tamanha escuridão” (Op. cit., V, 7 ss. Tradução da autora). Para os nossos propósitos, no entanto, Lucrécio não é o melhor exemplo; ele não insiste no pensamento, mas apenas no conhecimento. O conhecimento adquirido pela razão pode dissipar a ignorância e, assim, destruir o maior dos males — o medo, cuja fonte é a superstição. Um exemplo mais apropriado seria o famoso “Sonho de Cipião”, de Cícero. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Para compreender quão extraordinário é sem dúvida esse capítulo exclusivo da República, de Cícero, e quão estranhos os pensamentos aí expressos devem ter parecido aos romanos, temos que lembrar, em poucas palavras, o pano de fundo sobre o qual ele foi escrito. A filosofia tinha encontrado, na Roma do último século antes de Cristo, uma espécie de lar adotivo. Naquela sociedade totalmente política, ela tinha que provar, antes de mais nada, que era útil. Nas Tusculan Disputationes encontramos a primeira resposta de Cícero: tratava-se de tornar Roma mais bonita e civilizada. A filosofia era uma ocupação própria de homens bem-educados que se haviam retirado da vida pública e não tinham nada de mais importante com o que se preocupar. Filosofar não se relacionava com nada que fosse de suma importância. Tampouco tinha algo a ver com o divino; para os romanos, fundar e conservar comunidades políticas eram as atividades que mais se pareciam com as dos deuses. A filosofia tampouco tinha conexão com a imortalidade. A imortalidade era concedida tanto aos deuses como aos homens, mas nunca era propriedade de homens individuais, “para os quais a MORTE não era apenas necessária, mas muitas vezes desejável”. Em contrapartida, ela era decididamente a propriedade potencial das comunidades humanas: “Se um estado (civitas) é destruído e extingue-se, é como se — comparando coisas pequenas com coisas grandes — todo o mundo se arruinasse e perecesse.” (De Republica, I, 7) Para as comunidades, a MORTE não é nem necessária nem desejável. Ela sobrevém apenas como uma punição, “pois uma comunidade deve ser constituída de tal modo que dure para sempre” (Ibidem, III, 23). Toda essa citação foi tirada do tratado que termina com o Sonho de Cipião. Cícero, embora velho e desapontado, não tinha, portanto, mudado de opinião. Na verdade, nada, nem mesmo na própria República, preparamos para o Sonho de Cipião, no final — exceto as lamentações do livro 5: “Apenas em palavras e por causa de nossos vícios, e por nenhum outro motivo, ainda mantemos a coisa pública (a res publica, o tema do tratado); a própria coisa foi há muito tempo perdida.” (Ibidem, V, 1) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Transcrevi extensamente o ponto principal da passagem para deixar claro o quanto essas linhas de pensamento estão em franca contradição com aquilo em que Cícero, como outros romanos bem-educados, sempre acreditou e que expressou até naquele mesmo livro. No nosso contexto, quis dar um exemplo (um exemplo famoso, talvez o primeiro registrado em nossa história intelectual) de como certas linhas de pensamento realmente pretendem levar uma pessoa a pensar-se fora do mundo por meio de uma relativização. Em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à MORTE, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além — e a vida após a MORTE, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral —, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. Aqui, pensar significa seguir uma sequência de raciocínio que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida. A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Esse é apenas o começo de uma tradição que culminou filosoficamente em Epiteto e que atingiu o clímax de intensidade aproximadamente cinco séculos mais tarde, no final do Império Romano. Sobre a consolação da filosofia, de Boécio, um dos livros mais populares de toda a Idade Média, e hoje praticamente ignorado, foi escrito em condições tão extremas que Cícero jamais poderia ter dele alguma premonição. Boécio, um nobre romano de alta posição caído em desgraça, encontrava-se na prisão aguardando a execução. Em vista da situação, o livro foi comparado ao Fedon — uma analogia bastante estranha: de um lado, Sócrates cercado de amigos, depois de um julgamento em que teve permissão para falar longamente em sua defesa, aguardando uma MORTE tranquila e indolor; do outro lado, Boécio, encarcerado sem ser ouvido, absolutamente só, depois que a sentença de MORTE foi pronunciada em uma farsa de julgamento, no qual ele não esteve presente e em que muito menos teve oportunidade de se defender, e que agora aguardava a execução por meio de lentas e abomináveis torturas. Embora cristão, foi a Filosofia que veio consolá-lo, e não Deus ou o Cristo. E embora seu “lazer secreto”, na época em que desempenhava altas funções, fosse a leitura e tradução de Platão e Aristóteles, Boécio consolou-se com raciocínios tipicamente ciceronianos e também estoicos. A diferença é que o que era no “Sonho de Cipião” uma mera relativização agora irá tornar-se violenta aniquilação. Os “imensos espaços de eternidade”, para onde o espírito, quando coagido, deve se dirigir, aniquilam a realidade tal como ela existe para os mortais; o caráter instável da Fortuna aniquila todos os prazeres, pois embora tudo o que ela nos dá (riqueza, honra, fama) seja fonte de prazer, vivemos sempre com medo de perdê-lo. O medo aniquila toda felicidade. Tudo em que você acredita impensadamente desaparece assim que você começa a pensar — isso é o que a Filosofia, a deusa da consolação, diz a ele. E aqui surge a questão do mal, em que Cícero pouco havia tocado. A linha geral de pensamento sobre o mal, ainda bastante primitiva em Boécio, já contém todos os elementos que iremos encontrar mais tarde, em uma forma muito mais sofisticada e complexa, ao longo de toda a Idade Média. É a seguinte: Deus é a causa final de tudo o que é; Deus, como “bem supremo”, não pode ser a causa do mal; tudo o que é tem que ter uma causa; uma vez que há apenas causas aparentes do mal, mas não uma causa última, o mal não existe. Os maus, diz a Filosofia, não apenas são impotentes, eles não são. O que você impensadamente considera mau tem seu lugar na ordem do universo. E, nessa medida, é necessariamente bom. Seus aspectos maus são uma ilusão dos sentidos, da qual você pode livrar-se pelo pensamento. É um antigo conselho estoico: o que negamos pelo pensamento — e o pensamento está em nosso poder — não pode nos afetar. O pensamento torna irreal. É claro que, imediatamente, lembramo-nos da glorificação que Epiteto faz daquilo que hoje chamamos de força de vontade. Há inegavelmente um elemento de vontade nesse tipo de pensamento. Pensar assim significa agir sobre si mesmo — a única ação que resta em um mundo onde todo agir tornou-se fútil. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
O que mais impressiona nesse modo de pensar da Antiguidade tardia é que ele é centrado exclusivamente no eu. Para isso, John Adams, vivendo em um mundo ainda não completamente fora dos trilhos, tinha uma resposta: “Um leito de MORTE, dizem, mostra a vacuidade de todas as honrarias. Pode ser. (No entanto) (…) as leis e o governo que regulam as coisas sublunares deveriam ser negligenciados por parecerem quinquilharias na hora da MORTE?” (“Discourses on Davila”, The Works of John Adams, ed. Charles Francis Adams, Boston, 1850-1856, vol. VI, p. 242.) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Antes de voltar a Sócrates, quero mencionar brevemente o curioso contexto em que o termo “filosofar” (não o substantivo, mas o verbo) apareceu pela primeira vez. Heródoto conta que Sólon, após ter promulgado as leis de Atenas, partiu em viagem durante dez anos, em parte por razões políticas, mas também para ver o mundo — theórein. Chegou à Sárdia, onde Creso estava no auge do seu poder. Creso, depois de mostrar a Sólon todas as suas riquezas, pergunta-lhe: “Estrangeiro, as notícias sobre sua sabedoria e suas andanças chegaram até nós, dizendo que você percorreu muitos países da Terra filosofando sobre os espetáculos que viu. Daí me ocorreu perguntar se você conheceu um homem que se considerasse o mais feliz do mundo.” (I, 30. Tradução da autora para “hos philosopheon gen pollen theories heineken epelelythas”.) (O resto da história é conhecido: Creso, que esperava ser considerado o homem mais feliz do mundo, ouve de Sólon que de nenhum homem, por mais afortunado que seja, pode-se dizer que seja feliz antes da sua MORTE.) Creso consulta Sólon não porque ele viu tantos países, mas porque ele é famoso por filosofar, por refletir sobre o que vê; e a resposta de Sólon, embora baseada na experiência, encontra-se claramente além da experiência. Ele substituiu a pergunta “quem é o mais feliz dos mortais?” pela pergunta “o que é a felicidade para os mortais?”. E a resposta à pergunta foi um philosophoumenon, uma reflexão sobre os assuntos humanos (anthrópeión pragmatón) e sobre a duração da vida humana, na qual nenhum dia “é igual ao outro”, de tal modo que “o homem é pura sorte”. Sob tais condições, é prudente “esperar e prestar atenção ao fim”, pois a vida humana é uma história em que apenas o fim da história, quando tudo está completo, pode dizer o que ela foi (I, 32). Como a vida humana tem começo e fim, como ela compõe um todo, um ente em si pode ser julgado quando a vida termina, na MORTE. A MORTE não é apenas o fim da vida, mas também concede a ela, em silêncio, uma completude que é assim subtraída do arriscado fluxo a que todas as coisas humanas estão sujeitas. Este é o ápice do que mais tarde se tornou um topos proverbial da Antiguidade grega e latina — nemo ante mortem beatus dici potest. (O conteúdo de pensamento desse dito foi totalmente explicado apenas nas análises heideggerianas da MORTE em Ser e tempo, que se orientam metodologicamente pelo fato de que a vida humana — distinta das coisas que só começam sua existência quando estão completas e terminadas — só se completa quando não é mais. Portanto, é apenas na antecipação da própria MORTE que ela “aparece” completa e pode ser submetida à análise.) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Se tivesse havido uma tradição socrática no pensamento ocidental, se, nas palavras de Whitehead, a história da filosofia fosse uma coleção de notas de pé de página, não para Platão, mas para Sócrates (o que, sem dúvida, teria sido impossível), não encontraríamos nela nenhuma resposta para nossa pergunta, mas sem dúvida muitas variantes da própria pergunta. Sócrates mesmo, consciente de que estava lidando com invisíveis em sua investigação, usou uma metáfora para explicar a atividade de pensar — a metáfora do vento: “Os ventos são eles mesmos invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e, de certa maneira, sentimos quando eles se aproximam.” (Xenofonte, Memorabilia, IV, iii. 14) Encontramos a mesma metáfora em Sófocles, que (na Antígona) relaciona o “pensamento rápido como o vento” dentre as coisas dúbias, “assombrosas” (deina) com que os homens são abençoados ou amaldiçoados (Antigone, 353). Em nossos dias, Heidegger às vezes fala do “tufão do pensamento” e usa explicitamente a metáfora no único lugar de sua obra em que fala diretamente de Sócrates: Durante toda a sua vida e até a hora da MORTE, Sócrates não fez mais do que se colocar no meio desta correnteza, desta ventania (do pensamento), e nela manter-se. Eis por que ele é o pensador mais puro do Ocidente. Eis por que ele não escreveu nada. Pois quem sai do pensamento e começa a escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam, em um abrigo, de um vento muito forte para elas (…). Todos os pensadores posteriores a Sócrates, apesar de sua grandeza, são como estes refugiados. O pensamento tornou-se literatura. Em uma nota explicativa posterior ele acrescenta que ser o pensador “mais puro” não significa ser o maior. (O texto alemão, de Was Heisst Denken?, Tübingen, 1954, p. 52, diz o seguinte: “Sokrates hat zeit seines Lebens, bis in seinen Tod hinein, nichts anderes getan, als sich in den Zugwind dieses Zuges zu stellen und darin sich zu halten. Darum ist er der reinste Denker des Abendlandes. Deshalb hat er nichts geschrieben. Denn wer aus dem Denken zu schreiben beginnt, muss unweigerlich den Menschen gleichen, die vor allzu starkem Zugwind in den Windschatten flüchten. Es bleibt das Geheimnis einer noch verborgenen Geschichte, dass alle Denker des Abendlandes nach Sokrates, unbeschadet ihrer Grösse, solche Flüchtlinge sein mussten. Das Denken ging in die Literatur ein.”) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17)
Essa expressão foi cunhada por Jaspers para designar a condição humana geral e imutável — “não posso viver sem ter que lutar e sofrer; não posso evitar a culpa; tenho que morrer um dia” — para indicar a experiência de “algo imanente que já oferece um vislumbre de transcendência”, e que, quando a ela correspondemos, “tornarmo-nos a Existenz que potencialmente somos” (Philosophy (1932), trad. E. B. Ashton, Chicago, Londres, 1970, vol. 2, pp. 178179). Em Jaspers, a expressão ganha plausibilidade sugestiva menos das experiências específicas do que do simples fato de que a própria vida, limitada pelo nascimento e pela MORTE, é um caso-limite, no sentido de que a minha existência mundana sempre força a que eu me dê conta do passado, quando eu ainda não era, e de um futuro, quando não mais serei. O ponto é que, sempre que transcendo os limites do próprio tempo de vida e começo a refletir sobre esse passado, julgando-o, e sobre esse futuro, formando projetos da vontade, o pensamento deixa de ser uma atividade politicamente marginal. E tais reflexões surgem inevitavelmente em emergências políticas. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18)
Em outras palavras, o continuum, a mudança incessante, é partida nos tempos passado, presente e futuro, de modo que o passado e o futuro só se antagonizam sob a forma do não-mais e do ainda-não em virtude da presença do homem que tem, ele mesmo, uma “origem”, seu nascimento, e um fim, sua MORTE; e, portanto, encontra-se, em todos os momentos, entre o passado e o futuro; esse intervalo chama-se presente. É a inserção do homem, com seu limitado período de vida, que transforma em tempo, tal como o conhecemos, o fluxo contínuo da pura mudança — um fluxo que podemos conceber tanto ciclicamente quanto como movimento linear, sem jamais poder conceber um começo ou um fim absolutos. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20)
Para voltar a Kafka, é preciso lembrar que nenhum desses exemplos tematiza uma doutrina ou teoria, mas pensamentos ligados às experiências do ego pensante. Vista da perspectiva de um fluxo eterno e constante, a inserção do homem, lutando em ambas as direções, produz uma ruptura que, por ser defendida em duas direções, abre uma lacuna, o presente definido como um campo de batalha. Esse campo de batalha é, para Kafka, uma metáfora do lar do homem sobre a Terra. Visto da perspectiva do homem, a cada momento capturado e encerrado entre seu passado e seu futuro, em que passado e futuro dirigem-se àquele que está criando o seu presente, o campo de batalha é um intervalo, um Agora prolongado em que ele passa sua vida. O presente, que na vida cotidiana é o mais fútil e escorregadio dos tempos modais — quando eu digo “agora” e o aponto, ele já não é mais —, é apenas o choque entre o “passado”, que não é mais, e o “futuro”, que vem se aproximando e, no entanto, ainda não é. O homem vive nesse intervalo, e o que ele chama de “presente” é uma luta que dura toda a vida contra o peso morto do passado, que o impulsiona com a esperança, e contra o medo do futuro (cuja única certeza é a MORTE), que o empurra para trás, para “a serenidade do passado”, com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20)
Esse significado final da parábola fica claro na sentença conclusiva, quando “ele”, situado na lacuna temporal, no presente imóvel que é um nunc stans, sonha com um movimento de desatenção, quando o tempo tenha exaurido as suas forças. A calmaria então desceria sobre o mundo. Não uma eterna calmaria, mas apenas o tempo necessário para dar a “ele” a chance de pular para fora da linha de combate e ser promovido à posição de árbitro, juiz e espectador de fora do jogo da vida, para quem o significado deste lapso de tempo entre o nascimento e a MORTE pode ser endereçado, porque “ele” não está envolvido nisso. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20)
Formulada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela MORTE, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. Segue-se daí que nossa pergunta — “onde estamos quando pensamos?” — foi feita de fora da experiência de pensamento e foi, portanto, imprópria. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro, não estamos mais preocupados com “objetos”, mas sim com projetos, e não importa se eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras. E assim como o passado apresenta-se ao espírito sempre com o aspecto de certeza, a característica principal do futuro é sua incerteza básica, por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão. Em outras palavras, estamos lidando com coisas que nunca foram, que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser. Nosso Testamento, nossa Última Vontade, preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão, a saber, nossa própria MORTE, mostra que a necessidade da Vontade de querer não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar; em ambos os casos, o espírito transcende suas próprias limitações naturais, seja por fazer perguntas irrespondíveis, seja por projetar-se em um futuro que, para o sujeito volitivo, jamais será. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega — “o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado (volições) em suas frequentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta” (Gilbert Ryle, The Concept of Mind, Nova York, 1949, p. 65) e, portanto, de que não é possível “sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tornado objeto de debate na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles” (Henry Herbert Williams, artigo sobre a Vontade in Encyclopaedia Britannica, 11ª edição) — está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antiguidade, que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra: a recorrente transformação de dia e noite, verão e inverno, a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da MORTE. Quando Aristóteles sustenta que “vir-a-ser” necessariamente implica a preexistência de algo que é “em potência, mas não em ato” (De Generatione, Livro I, cap. 3, 317b16-18), ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive — em que de fato todo fim é um começo, e todo começo, um fim, de maneira que “o vir-a-ser continue, embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas”. (Ibidem, 318a25-27 e 319a23-29; The Basic Works of Aristotle, Richard McKeon, Nova York, 1941, p. 483.) Isso a ponto de poder dizer que não só eventos, mas até mesmo opiniões (doxai), “ocorrendo entre os homens, repetem-se não só uma ou poucas vezes, mas com infinita frequência” (Meteorologica, 339b27). Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica. A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktéma es aei — um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história — baseava-se implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
Para nós, que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo, com sua ênfase na unicidade do “momento histórico”, a exaltação grega pré-filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida — “seja para o mal ou para o bem” (Tucídides), para além de todas as considerações morais, ele merece ser salvo do esquecimento, primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores — parecem incompatíveis com o conceito cíclico de tempo dos antigos. Mas até que os filósofos descobrissem a perenidade do Ser, que não tem nascimento e MORTE, o tempo e a mudança no tempo não constituíam problema. Os “anos circulares” de Homero forneciam apenas o pano de fundo em que a notável história aparecera e era narrada. Pode-se encontrar indícios dessa visão não especulativa mais antiga em toda a literatura grega; assim, o próprio Aristóteles, em sua discussão sobre a eudaimonia (na Ética a Nicômaco), está pensando em termos homéricos quando aponta os altos e baixos, as circunstâncias acidentais (tychai) que “voltam muitas vezes na vida de uma pessoa”, ao passo que sua eudaimonia é mais durável, porque reside em certas atividades (energeiai kat’ aretén) que vale a pena lembrar por sua excelência e em torno das quais, portanto, “o esquecimento não cresce” (genesthai) (Livro I 1100a33-1100b18). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
Quaisquer que sejam as origens e as influências históricas que possamos atribuir ao conceito cíclico de tempo — babilônicas, persas, egípcias —, seu aparecimento foi, do ponto de vista lógico, quase inevitável, uma vez que os filósofos tinham descoberto um Ser perene, sem nascimento e sem MORTE, dentro de cuja estrutura eles precisavam explicar o movimento, a mudança, o constante ir e vir dos seres vivos. Aristóteles foi bastante explícito em relação à primazia do pressuposto de “que o todo celestial não foi gerado e não pode ser destruído, como alegam alguns, mas é único e eterno, não tendo começo ou fim em sua existência total, contendo e abrangendo em si tempo infinito” (De Caelo, 283b26-31). “Que tudo retorna” é, de fato, como observou Nietzsche, “a maior aproximação (possível) entre um mundo de Devir e um mundo de Ser” (The Will to Power, Walter Kaufmann ed., Vintage Books, Nova York, 1968, n° 617). Não é portanto de estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade, nosso órgão espiritual para o futuro, em princípio indeterminado, sendo, portanto, um possível anunciador de novidade. Estranho mesmo é verificar que uma tendência tão forte para denunciar a Vontade como uma ilusão ou como uma hipótese inteiramente supérflua depois da crença hebraico-cristã em um início divino — “No princípio Deus criou os céus e a terra” — tenha se tornado um pressuposto dogmático em filosofia. Especialmente quando esse novo credo também estabelecia que o homem era a única criatura feita à imagem do próprio Deus, dotada, portanto, de uma faculdade semelhante de começar. Ainda assim, de todos os pensadores cristãos, somente Agostinho, ao que parece, tirou a conclusão: “(Initium) ut esset, creatus est homo” (“Para que um começo fosse feito, o homem foi criado”) (De Civitate Dei, Livro XII, cap. 20). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta, autônoma, esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã, que iremos examinar adiante em mais detalhe. Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega, em especial para com Aristóteles, ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antiguidade e sua noção de eterna recorrência. A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a MORTE e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos, que não se podem repetir: “Cristo um dia morreu por nossos pecados; e, levantando-se dos mortos, Ele não mais morreu.” (Ibidem, cap. 13) A sequência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo; tem um início definido, um ponto decisivo — o ano Um de nosso calendário (Nosso atual calendário, que toma o nascimento de Cristo como o ponto decisivo a partir do qual contamos o tempo para a frente e para trás, foi introduzido no final do século XVIII. Os manuais alegam que a reforma era necessária por razões acadêmicas, para facilitar a datação dos eventos da Antiguidade sem precisar fazer referência ao emaranhado de diferentes contagens de tempo. Hegel, ao que eu saiba o único filósofo a ponderar sobre a mudança abrupta e notável, viu nela um claro sinal de cronologia verdadeiramente cristã, uma vez que o nascimento de Cristo tornava-se então o ponto decisivo da história do mundo. Parece mais significativo que, no novo esquema, possamos contar o tempo para a frente e para trás, de modo que o passado estenda-se para um infinito passado e que o futuro, do mesmo modo, estenda-se para um futuro infinito. A dupla infinitude elimina todas as noções de começo e de tempo, estabelecendo a humanidade, por assim dizer, em uma realidade potencialmente sempiterna na Terra. Nem é preciso acrescentar que nada poderia ser mais estranho ao pensamento cristão do que uma imortalidade terrena da humanidade e de seu mundo.) — e um fim definido. E foi uma história da máxima importância para os cristãos, embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares: ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem, como no passado. Além do mais, a vida após a MORTE do cristão era decidida enquanto ele ainda era um “peregrino na terra”; ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida — e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua Liberdade necessária foram, em toda a sua complexidade, descobertas primeiramente por Paulo. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1)
Nossa terceira dificuldade está ligada a esse dilema. Aos olhos dos filósofos que advogaram o ego pensante, foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica. Mas antes da Era Moderna existiram — não muitas, mas algumas — vias de escape bastante trilhadas pelo menos pelos filósofos. Na Antiguidade havia o bios theoretikos: o pensador habitava a vizinhança das coisas necessárias e perenes, tomando parte em seu Ser até o ponto em que isso é possível para os mortais. Na era da filosofia cristã, havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades, mas também o pensamento consolador da divina Providência, conjugado à expectativa de uma vida após a MORTE, quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro, a alma vendo “cara a cara”, em vez de “por espelho, obscuramente”, não mais conhecendo só “em parte” — pois ela “conhecerá tanto quanto (é) conhecida”. Sem tal esperança de um Além, até mesmo Kant julgava a vida infeliz demais, por demais destituída de sentido para ser suportada. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3)
À medida que o eu se identifica com o ego volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de (seu próprio) futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir (le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir), quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” (Koyré, op. cit., p. 177). Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a MORTE do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” (Platão, Republic, 329b-c) — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6)
Em outras palavras, o passado começa com o desaparecimento do futuro; em tal tranquilidade, o ego pensante afirma-se. Mas isso só acontece quando tudo chega ao seu final, quando o Devir, em cujo processo o Ser se desdobra e desenvolve, é interrompido. Pois a “inexorabilidade é a base do Ser” (Koyré, op. cit., p. 166), é o preço pago pela Vida, assim como a MORTE, ou melhor, a antecipação da MORTE é o preço pago pela tranquilidade. E a inexorabilidade daquilo que vive não vem da contemplação do cosmo ou da história; não é o efeito de movimento externo — o movimento incessante das coisas naturais ou os altos e baixos incessantes dos destinos humanos; está localizada e é engendrada no espírito do homem. Aquilo que, em um pensamento existencial posterior, transformou-se na noção de autoprodução do espírito humano pode ser encontrado em Hegel como a “autoconstituição do Tempo” (Ibidem, p. 174): o homem não é só temporal; ele é o Tempo. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6)
Mas em Hegel o espírito produz o tempo somente em virtude da Vontade, seu órgão para o futuro; e o futuro, “nessa perspectiva, é também a fonte do passado, já que o futuro é engendrado espiritualmente pela antecipação feita pelo espírito de um segundo futuro, em que o “eu-serei” imediato terá se transformado em “eu-terei-sido”. Nesse esquema, o passado é produzido pelo futuro e o pensamento, que contempla o passado, é o resultado da Vontade. Porque a vontade, em última instância, antecipa a frustração final dos projetos da vontade, que é a MORTE; tais projetos também um dia terão sido. (Pode ser interessante notar que Heidegger também diz “Die Gewesenheit entspringt in gewisser Weise der Zukunft” — o passado, o “ter-sido”, em um certo sentido tem sua origem no futuro.) (Martin Heidegger, Sein und Zeit, n° 65, p. 326) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6)
Em Hegel, o homem não se distingue das outras espécies animais por ser um animal rationale, mas por ser a única criatura viva que sabe de sua própria MORTE. É nesse ponto máximo da antecipação feita pelo ego volitivo que o ego pensante se constitui. Na antecipação da MORTE, os projetos da vontade tomam a aparência de um passado antecipado e, sendo assim, podem tornar-se objeto de reflexão; e é neste sentido que Hegel sustenta que somente o espírito que “não ignora a MORTE” capacita o homem para “dominar a MORTE”, “resistir a ela e preservar-se dentro dela” (Koyré, op. cit., p. 188, citando Phänomenologie des Geistes). Para usar as palavras de Koyré: no momento em que o espírito se depara com o próprio fim, “o movimento incessante da dialética temporal é interrompido e o tempo ‘se preenche’; este tempo ‘preenchido’ cai natural e inteiramente no passado”, o que significa que o “futuro perdeu seu poder sobre ele” e ficou pronto para o presente permanente do ego pensante. Assim, ocorre que “o verdadeiro Ser (do futuro) deve ser o Agora” (Koyré, op. cit., p. 183, citando Jenenser Realphilosophie). Mas em Hegel este nunc stans não é mais temporal; é um nunc aeternitatis, já que a eternidade, para Hegel, é também a natureza quintessencial do Tempo, a “imagem de eternidade” platônica vista como “o eterno movimento do espírito” (Koyré, “Hegel à Iéna”, in op. cit., p. 188). O próprio tempo é eterno na “união entre Presente, Futuro e Passado” (Koyré, op. cit., p. 185, citando Jenenser Realphilosophie). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6)
Para simplificar ao máximo: se existe algo como a vida do espírito, isso se deve ao órgão do espírito próprio para o futuro e à “inquietude” daí resultante; se existe algo como a vida do espírito, isso se deve à MORTE que, prevista como um fim absoluto, paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado; os projetos da vontade em objetos de pensamento; a expectativa da alma em uma lembrança antecipada. Assim resumida e supersimplificada, a doutrina de Hegel soa bem moderna; o primado do futuro, em suas especulações sobre o tempo, parece estar tão bem sintonizado com a fé dogmática que seu século tinha no Progresso; sua mudança do pensamento para a vontade, e depois de volta para o pensamento parece uma solução tão engenhosa para o problema que os filósofos modernos tinham para entrar em acordo com a tradição de uma maneira aceitável para a Idade Moderna, que é tentador encerrar as considerações sobre o constructo hegeliano encarando-o como contribuição autêntica aos problemas do ego volitivo. Apesar disso, em suas especulações sobre o tempo, Hegel tem um predecessor estranho, para quem nada poderia ser mais alheio do que a noção de progresso; para quem nada poderia apresentar menos interesse do que descobrir uma lei que governasse os acontecimentos históricos. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6)
A função da lei é ambígua: é “boa para que o pecado se mostrasse pecado” (7:13); mas já que fala no tom de uma ordem, “desperta as paixões” e “revive o pecado”. “O próprio mandamento que prometia a vida foi para mim a MORTE” (7:9-10). O resultado é que “não entendo minhas próprias ações (‘Tornei-me uma questão para mim mesmo’). Pois não faço o que quero, mas o que odeio, isso é o que faço” (7:15). E o ponto central do problema é que esse conflito interno jamais pode ser solucionado, seja em favor da obediência à lei, seja da submissão ao pecado; essa “miséria” interna, segundo São Paulo, pode ser curada somente através da graça, gratuitamente. Foi essa a percepção que veio como um “lampejo” para o homem de Tarso chamado Saulo, que fora, como ele disse, um fariseu “extremamente zeloso” (Gálatas 1:14), conforme “a mais severa seita de nossa religião” (Atos 26:4). O que ele queria era a “justiça” (dikaiosyne); mas a justiça, isto é, “permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las” (Gálatas 3:10), é impossível; tal é a “maldição da lei”; e “se a justiça vem da lei, Cristo morreu em vão” (Gálatas 2:21). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8)
É a preocupação com a vida eterna, onipresente no Império Romano na época, que separa tão nitidamente a Nova Era da Antiguidade, e que se torna o laço comum que uniu sincreticamente os vários cultos orientais novos. Não é que a preocupação de Paulo com a ressurreição individual tivesse origem judaica; para os hebreus, a imortalidade era tida como necessária somente para o povo como um todo, e somente para ele era garantida; o indivíduo satisfazia-se em sobreviver em sua prole, contentando-se também em morrer velho e “farto dos anos”. E no mundo antigo, romano ou grego, a única imortalidade que se desejava ou se buscava era o não-esquecimento do grande nome ou do grande feito, e, portanto, das instituições — a polis ou civitas —, que podiam assegurar uma continuidade de lembrança. (Quando Paulo disse “o salário do pecado é a MORTE” (Romanos 6:23), poderia estar lembrando as palavras de Cícero, que dissera que, embora os homens devam morrer, as comunidades (civitae) devem ser eternas e perecer somente em consequência de seus pecados.) Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a experiência comum de um mundo em declínio, talvez moribundo; e a “boa nova” do cristianismo, em seus aspectos escatológicos, era suficientemente clara: a você, que acreditou que os homens morrem mas o mundo é perene, basta converter-se à fé de que o mundo chega a um fim, mas você mesmo terá vida eterna. Assim, é claro, a questão da “justiça”, isto é, de merecer essa vida eterna, ganha uma importância pessoal completamente nova. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8)
De relevância talvez ainda maior são as pregações de Jesus contra a hipocrisia como o pecado dos fariseus e sua suspeita das aparências: “Por que olhas para o argueiro que está no olho de teu irmão e não descobres a trave que está no teu?” (Lucas 6:41). E eles “gostam de andar com ricos mantos, de ser cumprimentados nas praças” (Lucas 20:46), o que coloca um problema que deve ter sido familiar para homens da Lei. A questão é que tudo o que se faça de bom, justamente pelo fato de aparecer, para os outros ou para si, fica sujeito ao autoquestionamento (Hans Jonas, Augustin und das paulinische Freiheitsproblem, 2ª ed., Göttingen, 1965; ver especialmente apêndice. III, publicado como “Philosophical Meditation on the Seventh Chapter of Pauls Epistle to the Romans”, in The Future of our Religious Past, ed. James M. Robinson, Londres, Nova York, 1971, pp. 333-350.). Jesus sabia disso: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mateus 6:3), isto é, vive à sombra, até mesmo à sombra de ti mesmo, e não te preocupes em ser bom — “Ninguém há de bom, senão um que é Deus” (Lucas 18:19). A despeito disso, esse adorável descuidar-se dificilmente poderia ser mantido em um tempo em que fazer o bem e ser bom tinham se transformado em um requisito para superar a MORTE e herdar a vida eterna. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8)
Em suma, a vontade é impotente não por causa de algo externo que a impeça de ter êxito, mas porque se torna um obstáculo para si mesma. E onde não é um obstáculo, como em Jesus, ela ainda não existe. Para Paulo, a explicação é relativamente simples: o conflito se dá entre carne e espírito, e o problema é que o homem é tanto carnal quanto espiritual. A carne vai morrer, e, portanto, viver de acordo com a carne significa uma espécie de MORTE. A tarefa principal do espírito não é só governar os desejos e fazer com que a carne obedeça, mas também causar sua mortificação — crucificá-la “com suas paixões e desejos” (Gálatas 5:24), coisa que, na verdade, está além do poder humano. Vimos que, do ponto de vista do ego pensante, era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo. A carnalidade do homem, embora não necessariamente origem do pecado, interrompe a atividade pensante do espírito e oferece uma resistência ao diálogo sem som e veloz que o espírito mantém consigo mesmo, um intercâmbio cuja própria “doçura” está em uma espiritualidade na qual nenhum fator material interfere. Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao corpo que encontramos em Paulo, uma hostilidade que, além disso, sem falar nos preconceitos contra a carne, surge da própria essência da Vontade. A despeito de sua origem espiritual, a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência; e a “carne”, no raciocínio de Paulo (mesmo posteriormente, quando é disfarçada em “inclinação”), torna-se a metáfora para a resistência interna. Assim, até mesmo nesse esquema simplista, a descoberta da Vontade já terá aberto a autêntica caixa de Pandora das questões irrespondíveis, que o próprio Paulo de modo algum ignorava e que a partir daí viriam a infestar de absurdos qualquer filosofia rigorosamente cristã. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8)
Epiteto foi fundamentalmente um professor. E, uma vez que ensinava e não escrevia, (Todos os trabalhos que temos, inclusive os Discourses, são “aparentemente quase um registro estenográfico de suas conferências e discussões informais, anotadas e compiladas por um de seus alunos, Arriano”. Ver Whitney J. Oates, Introdução Geral para seu The Stoic and Epicurean Philosophers, Modern Library, Nova York, 1940, cuja tradução sigo frequentemente.) considerava-se aparentemente um seguidor de Sócrates, esquecendo-se, como a maioria dos chamados seguidores de Sócrates, de que Sócrates nada tinha a ensinar. De qualquer forma, Epiteto considerava-se um filósofo e definia o assunto da filosofia como “a arte de viver a própria vida” (Discourses, livro II, cap. xv). Essa arte consistia principalmente em ter um argumento pronto para qualquer emergência, para cada situação de sofrimento agudo. Seu ponto de partida era o omnes homines beati esse volunt da Antiguidade: todos os homens desejam ser felizes, e a única questão para a filosofia era descobrir como alcançar esse objetivo patente. Só que Epiteto, de acordo com a inclinação da época e em contraste com a da Era précristã, estava convencido de que a vida — assim como ela é dada na Terra, tendo a MORTE como fim inevitável, e sendo, portanto, acossada por medos e temores — era incapaz de trazer a verdadeira felicidade sem que houvesse um esforço especial da vontade do homem. Assim, “felicidade” muda de significado; não é mais entendida como eudaimonia, a atividade de eu zén, viver bem, mas como euroia biou, uma metáfora estoica indicativa de uma vida que flui livremente, sem perturbar-se com os vendavais, as tempestades ou os obstáculos. As características dessa felicidade eram serenidade, galéné, a bonança depois da tempestade, e tranquilidade, eudia, o tempo bom (Ibidem, livro II, cap. xviii) — metáforas que a Antiguidade clássica desconhecia. Todas elas relacionam-se com uma disposição da alma que é melhor descrita em termos negativos (como ataraxia) e que consiste em algo totalmente negativo: ser “feliz” agora significava fundamentalmente “não ser desgraçado”. A filosofia podia ensinar “o processo da razão”, os argumentos, “como armas brilhantes e prontas para o uso” (Ibidem, livro I, cap. xxvii), a serem dirigidos contra o infortúnio da vida real. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9)
A razão descobre que o que traz a desgraça não é a ameaça externa da MORTE, mas o medo interior da MORTE; não a dor, mas sim o medo da dor — “não é a MORTE ou a dor que aterroriza, mas o medo da dor ou da MORTE” (Ibidem, livro II, cap. i). A única coisa certa a se temer é, portanto, o próprio medo; e se os homens não podem escapar à dor ou à MORTE, podem por outro lado dissuadir-se do medo dentro de si, eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos: “Se guardamos nosso medo, não para a MORTE ou para o exílio, mas para o próprio medo, então deveríamos treinar para evitar o que pensamos de mal.” (Ibidem, livro II, cap. xvi) (Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado, na morada da alma, por um medo avassalador de ter medo; ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança — a “impressão” de Epiteto; basta isso para compreendermos o valor psicológico terra-a-terra dessas teorias aparentemente improváveis.) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9)
À primeira vista, essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença (apatheia) — como se proteger da realidade, como perder sua habilidade de ser por ela afetado, para o bem ou para o mal, na alegria ou na tristeza — parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental. Encontramos em Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível. Os estoicos, diz ele, descobriram o truque de como fingir que estão felizes: “Não podendo ter o que quer, o homem quer o que pode ter” (“Ideo igitur id vult quod potest, quoniam quod vult nom potest”) (De Trinitate, livro XIII, vii, 10). Além disso, prossegue, os estoicos pressupõem que “todo homem deseja, por natureza, ser feliz”, sem contudo acreditar em imortalidade, pelo menos não em ressurreição do corpo, isto é, em uma vida futura sem MORTE, e aí temos uma contradição em termos. Pois “se todo homem deseja de fato ser feliz, deve necessariamente também querer ser imortal. (…) Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo” (Cum ergo beati esse omnes homines velint, si vere volunt, profecto et esse immortales volunt. (…) Ut enim homo beate vivat, oportet ut vivat) (Ibidem, viii, 11). Em outras palavras, os mortais não podem ser felizes, e a insistência dos estoicos no medo da MORTE como a maior fonte de infelicidade atesta isso; o máximo que podem conseguir é ficar “indiferentes”, deixar de ser afetados pela vida ou pela MORTE. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9)
Muito relacionado com o que foi dito anteriormente, e ainda mais enigmático, é o fato de que Epiteto não fica absolutamente satisfeito com o poder da vontade de deixar de querer. Ele não prega simplesmente a indiferença a tudo o que não está em nosso poder; ele exige com insistência que o homem queira o que de qualquer maneira acontece. Já citei a parábola do jogo na qual o homem cujo único interesse é o bem-estar do eu é exortado a querer “que aconteça somente o que acontece e que ganhe somente quem ganha”. Em um outro contexto, Epiteto vai muito além e exalta (sem citar nomes) “filósofos” que disseram “que ‘se o homem bom soubesse de antemão dos acontecimentos vindouros, ele ajudaria a natureza, mesmo que isso significasse lidar com a doença, com a MORTE, com a mutilação’” (Discourses, livro II, cap. x). Certamente ele recai, em seu argumento, na velha noção estoica de heimarmene, a doutrina do destino segundo a qual tudo acontece em harmonia com a natureza do universo e cada coisa particular, homem ou animal, planta ou pedra, tem sua tarefa designada pelo todo, sendo por ele justificada. Mas não só Epiteto demonstra explicitamente não estar interessado em qualquer questão relativa à natureza ou ao universo, como também não há nada na antiga doutrina que indique que a vontade do homem, totalmente infrutífera por definição, tenha algum valor na “ordenação do universo”. Epiteto se interessa pelo que acontece a ele: “Quero uma coisa e ela não acontece; quem é mais desgraçado do que eu? Não a quero e ela acontece; quem é mais desgraçado do que eu?” (Ibidem, livro II, cap. xvii Em resumo, para “viver bem”, não é suficiente “deixar de pedir para que os eventos aconteçam como se quer”; deve-se “deixar a vontade ser tal que os eventos devam acontecer como acontecem” (The Manual, 8). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9)
Encontramos esse interesse pragmático na felicidade privada durante toda a Idade Média; ele subjaz à esperança da salvação eterna e ao medo da danação eterna e esclarece muitas especulações que de outra forma seriam incompreensíveis, e cujas origens romanas fica difícil detectar. O fato de que a Igreja Católica Romana, a despeito da influência decisiva da filosofia grega, tenha permanecido tão profundamente romana deveu-se muito à estranha coincidência de que seu primeiro e mais influente filósofo tenha sido também o primeiro pensador a ir buscar inspiração mais profunda em fontes e experiências latinas. Em Agostinho a luta pela vida eterna como o summum bonum e a interpretação da MORTE eterna como o summum malum alcançaram o mais alto grau de articulação porque ele as combinou com a descoberta da nova era da vida interior. Entendia que o interesse exclusivo por esse eu interior significava que “tornei-me uma questão para mim mesmo” (“quaestio mihi factus sum”) — uma questão que a filosofia, assim como era ensinada e aprendida então, nem levantava nem respondia (Para a importância e profundidade desta questão, ver especialmente On the Trinity, livro XIX, caps. iii e viii: “Como o espírito pode buscar a si mesmo e encontrar-se é uma questão singular: aonde vai para procurar, e donde vem para encontrar?”). As famosas análises do conceito de Tempo, no livro XI das Confissões, constituem um exemplo paradigmático do desafio do que era novo e problemático: o tempo é algo bastante familiar e comum até que alguém pergunte “O que é o Tempo?” — momento em que se transforma em um “enigma intrincado” cujo desafio é ser tanto inteiramente comum quanto inteiramente “misterioso” (Confessions, livro XI, especialmente caps. xiv e xxii). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10)
Não obstante, isso só pode acontecer porque estar vivo sempre implica um desejo de continuar vivendo: por essa razão, a maior parte das pessoas prefere “ser infeliz a não ser absolutamente nada”. Mas e quanto àqueles que dizem “se eu tivesse sido consultado antes de existir teria preferido não existir a ser infeliz”? Esses não levaram em conta que até mesmo essa proposição é feita com base firme no Ser; se considerassem devidamente o assunto veriam que sua própria infelicidade faz com que eles existam menos do que desejam; ela lhes toma um pouco da existência. “O grau de sua infelicidade é proporcional à distância que mantêm daquilo que existe no grau supremo (quod summe est)” e, portanto, fora da ordem temporal, que está cheia de não-existência — “pois as coisas temporais, antes de existir, não têm existência; enquanto existem, passam; tendo passado, jamais existirão novamente”. Todos os homens temem a MORTE, e esse sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião que nos leve a “pensar que deveríamos querer não existir”, pois o fato é que “começar a existir é o mesmo que caminhar para a não-existência”. Em suma, “todas as coisas, pelo simples fato de que são, são boas”, inclusive o mal e o pecado; e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus-Criador, mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a não-existência absoluta. Nesse contexto, é importante observar que Agostinho (embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis) em nenhum lugar exige, como Eckhart fez mais tarde, que “um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina, de modo a querer aquilo que Deus quer: portanto, se Deus quis que eu pecasse, não devo querer não ter cometido meu pecado; é este o meu verdadeiro arrependimento”. (On Free Choice of the Will, livro III, caps. vi-viii; Lehmann, op. cit., sentença 14. p. 16.) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10)
Em outras palavras e elaborando um pouco essas especulações, temos o seguinte: o Homem é posto em um mundo de mudança e de movimento como um novo começo porque sabe que tem um começo e que terá um fim; sabe até mesmo que este começo é o começo de seu fim — “toda a nossa vida nada mais é do que uma corrida em direção à MORTE”. (Ibidem, livro XIII, cap. x) Nenhum animal, de nenhuma espécie, tem, neste sentido, um começo ou um fim. Com o homem criado à imagem do próprio Deus veio ao mundo um ser que, por ser um começo correndo para um fim, pôde ser dotado da capacidade de querer ou não querer. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10)
É óbvio que o Ser, o primeiro princípio de Tomás, é simplesmente uma conceituação da Vida e do instinto vital — do fato de que todas as coisas vivas, por instinto, preservam a vida e evitam a MORTE. Isto também é uma elaboração dos pensamentos que encontramos em estado mais provisório em Agostinho, mas cuja consequência intrínseca, um equacionamento entre a Vontade e o instinto de vida — sem qualquer relação com a vida eterna —, é extraída comumente só no século XIX. Em Schopenhauer, ela é enunciada de forma explícita: e na vontade de potência de Nietzsche, a própria verdade é entendida como uma função do processo vital: o que nós chamamos verdade são aquelas proposições sem as quais não poderíamos continuar vivendo. Não é a razão, mas a nossa vontade de viver o que torna forçosa a verdade. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11)
Uma dúvida radical que rejeite o testemunho dos que presenciaram e que confie apenas na razão é impossível para o homem; trata-se de um simples artifício retórico do solipsismo, constantemente refutado pela própria existência daquele que duvida. Todos os homens vivem juntos na base sólida de uma fides acquisita, uma fé adquirida que têm em comum. O teste para os incontáveis fatos cuja fidedignidade sempre tomamos como certa é que façam sentido para os homens ao se constituírem. E, neste aspecto, o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma: uma criatura dotada de um corpo e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da MORTE do jeito como é e se conhece. As “provas” dos filósofos para a imortalidade da alma, mesmo quando logicamente corretas, seriam irrelevantes. Para que seja existencialmente relevante para o viator, o viajante ou peregrino na terra, a vida eterna deve ser uma “segunda vida”, e não um modo totalmente diferente de ser como uma entidade incorpórea. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12)
O homem é capaz de transcender o mundo do Ser junto com o qual foi criado e que permanece sendo seu hábitat até a MORTE; ainda assim, mesmo as atividades do seu espírito nunca deixam de relacionar-se ao mundo dado aos sentidos. Assim, o intelecto está “preso aos sentidos”, e “sua função inata é entender os dados sensoriais”; de maneira semelhante, “a Vontade está presa ao apetite sensorial” e sua função inata é “desfrutar de si mesma”. “Voluntas conjunctus appetitui sensitivo nata est condelectari sibi, sicut intellectus conjunctus sensui natus est intelligere sensibilia.” (Citado de Vogt, op. cit., p. 93) As palavras decisivas aqui são condelectari sibi, um prazer inerente à própria atividade da vontade, diferente do prazer do desejo de obter o objeto desejado, que é transitório — a posse extingue o desejo e o prazer. O condelectatio sibi importa seu prazer de sua proximidade do desejo, e Scotus disse explicitamente que não há prazer do espírito que possa competir com o prazer que surge da satisfação do desejo sensual, só que esse prazer é quase tão transitório quanto o próprio desejo (Hoeres, op. cit., p. 197). Assim, ele estabelece uma distinção nítida entre vontade e desejo, porque somente a vontade não é transitória. Um prazer inerente à vontade em si mesma é tão natural para a vontade quanto entender e conhecer o são para o intelecto, e ele pode ser detectado até mesmo no ódio; mas sua perfeição inata, a paz final entre o dois-em-um, pode se dar somente quando a vontade é transformada em amor. Se a vontade fosse mero desejo de possuir, deixaria de existir quando se possui o objeto: não desejo aquilo que tenho. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12)
Quando Scotus especula sobre uma vida após a MORTE — isto é, sobre uma existência “ideal” para o homem como homem —, esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva. A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma: logo, a bem-aventurança futura, a beatitude que se goza na vida eterna, não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação. A contemplação do summum bonum, da “coisa” mais alta, portanto, Deus, seria o ideal do intelecto, que sempre se baseia na intuição, a apreensão de uma coisa em seu “ser-isto” (Thisness), haecceitas, que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado, mas também porque a intuição do “ser-isto” é imperfeita: o “intelecto (…) recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade” (Bettoni, Duns Scotus, p. 122). A noção de “paz eterna”, ou de Descanso, surge da experiência da inquietação, dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendê-los em atividades do espírito, sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles. O que a Vontade em um estado de bem-aventurança, isto é, em uma vida após a MORTE, não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio, mas isso não significa que o homem em estado de bem-aventurança tenha perdido a faculdade de dizer “sim”. A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de “Amor”: “Amo: volo ut sis.” “A beatitude é, portanto, o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama, satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele.” (Bonansea, op. cit., p. 120) Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade, mas não mais como uma atividade do espírito, uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto. Pois a “beatitude (…) consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si, e não simplesmente como está no espírito” (Ibidem, p. 119). O espírito, transcendendo as condições existenciais do “viajante” ou peregrino na terra, tem uma indicação desta bem-aventurança futura em sua experiência de pura atividade, isto é, em uma transformação da vontade em amor. Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui, usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo, Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio, “o amor perfeito a Deus por amor a Deus (…) e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo”. Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma, ainda assim é amor concupiscentiae, amor desejoso (Ibidem, p. 120). Já em Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor, e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de Paulo sobre “o amor que jamais acaba”, nem mesmo “quando vier o que é perfeito” e tudo o mais tiver sido “aniquilado” (I Coríntios 13:8-13). Em Agostinho, a transformação se dá pela força unificadora da vontade; não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam (“maravilhosamente unidos”) (On the Trinity, livro X, cap. viii, 11). Mas, para Scotus, a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado, purificado dos desejos e das necessidades, mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12)
É claro que essa certeza é bastante questionável. Já em Pascal, ele próprio influenciado por Descartes, encontramos a objeção de que esta consciência dificilmente poderia ser suficiente para distinguir entre sonho e realidade: um pobre artesão sonhando durante doze horas toda noite que era rei teria a mesma vida (e desfrutaria da mesma quantidade de “felicidade”) que um rei que sonhasse toda noite que era um pobre artesão. Além disso, já que “frequentemente se sonha estar sonhando”, nada pode assegurar que aquilo a que chamamos nossa vida não seja um completo sonho do qual despertaremos na MORTE. Duvidar de tudo (“de omnibus dubitandum est”) e encontrar certeza na própria atividade de duvidar exigida pela “nova Filosofia (que) de tudo duvida” (Donne) não ajuda, pois não está quem duvida obrigado a duvidar que duvida? Ninguém foi, é verdade, tão longe, mas isso só significa que “nenhum homem, jamais, foi um cético perfeito (pyrrhonien, em Pascal), ainda que não por estar fortalecido pela razão”; ele era impedido pela “natureza, (a qual) ajudava a razão impotente”; e assim o cartesianismo era “algo como a história de Dom Quixote”. (Para Pascal, ver Pensées, n° 81, Ed. Pantheon; n° 438 (257). Ed. Pléiade; e “Sayings Attributed to Pascal”, in Pensée, Ed. Penguin, p. 356. Para Donne, ver “An Anatomy of the World; The First Anniversary”.) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13)
Desde que reinterpreta sua “reviravolta”, Heidegger insiste na continuidade de seu pensamento, no sentido de que Ser e Tempo era uma preparação necessária que já continha de um modo provisório a principal direção de seu trabalho final. E isso é em grande parte verdade, embora possa vir a desradicalizar a reviravolta posterior e as consequências que nela estão obviamente implícitas para o futuro da filosofia. Comecemos com as consequências mais impressionantes, que se encontram no próprio trabalho posterior, a saber, primeiro a noção de que o pensamento solitário em si constitui a única ação relevante no registro factual da história; e, segundo, a ideia de que pensar é o mesmo que agradecer (e não só por razões etimológicas). (A autora se refere à relação etimológica entre think (pensar) e thank (agradecer), em inglês, que correspondem aos termos alemães Denken e Danken. (N. T.)) Uma vez feito isso, tentaremos seguir o desenvolvimento de certos termos-chave em Ser e Tempo, e ver o que acontece com eles. Os três termos-chave que proponho são Cuidado, MORTE e Eu. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
A MORTE, por outro lado, que originalmente era real para o homem somente como a possibilidade mais extrema — “se fosse realizada (por exemplo, no suicídio), o homem obviamente perderia a possibilidade que tem de existir em face da MORTE” (Ibidem, n° 53, p. 261) —, transforma-se agora na “redoma” que “reúne”, “protege” e “salva” a essência dos mortais, que são mortais não porque sua vida tenha um fim, mas porque estar morto pertence ainda ao seu ser mais íntimo (Vorträge und Aufsätze, pp. 177 e 256). (Essas descrições, que soam estranhas, referem-se a experiências bem conhecidas, atestadas, por exemplo, pela antiga máxima de mortuis nil nisi bonum. Não é a dignidade da MORTE enquanto tal que nos faz temê-la e respeitá-la, mas sim a curiosa mudança de vida para MORTE que acomete a personalidade dos mortos. Na lembrança — o modo como os mortais vivos pensam sobre seus mortos —, é como se todas as qualidades não essenciais perecessem com o desaparecimento do corpo em que estavam encarnadas. Os mortos são postos na “redoma” da lembrança como relíquias preciosas deles mesmos.) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
Mencionei de passagem a mudança radical que o conceito de MORTE sofreu nos últimos escritos de Heidegger, em que a MORTE aparece como redentora final da essência do homem, o Gebirg des Seins in dem Spiel der Welt, o “abrigo do Ser no jogo do mundo” (Poema inédito, escrito por volta de 1950). E tentei explicar e de certo modo justificar a estranheza disso com um testemunho bem conhecido de certas experiências familiares que, ao que eu saiba, nunca foram conceitualizadas. No ensaio sobre Anaximandro, a palavra “MORTE” não aparece, mas o conceito tem, é claro, presença bem transparente na ideia de vida entre duas ausências, antes de se chegar pelo nascimento e depois de se desaparecer com a MORTE. E aqui temos de fato um esclarecimento conceitual sobre a MORTE como abrigo para a essência da existência humana, cuja presença temporal e transitória é compreendida como o demorar-se entre duas ausências e como uma estada no reino da errância. Pois a fonte desse “errar” — e aqui podemos, é claro, enxergar até que ponto essa variante continua sendo simples variante das convicções filosóficas básicas e permanentes de Heidegger — é o fato de que, de um ser que “se demora um pouco em presença” entre duas ausências e tem a habilidade de transcender sua própria presença, só se pode dizer que está realmente “presente enquanto se deixa pertencer ao não-presente” (P. 611). (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
Esses enunciados trazem-nos de volta a território familiar, como fica evidente quando lemos aí que a desordem é “trágica” e não uma coisa pela qual se pode responsabilizar o homem. Com certeza, não há mais qualquer “chamado da consciência” convocando o homem de volta ao seu eu autêntico, ao insight de que, não importa o que tenha feito ou se omitido de fazer, era já schuldig (“culpado”), já que sua existência era algo que ele “devia”, depois de ter sido lançado no mundo. Mas, assim como em Ser e Tempo este eu “culpado” podia salvar-se antecipando sua MORTE, aqui também o Dasein “errante”, enquanto “demora-se um pouco” no reino da errância, pode, através da atividade do pensamento, juntar-se ao que está ausente. Há entretanto a diferença de que aqui o ausente (o Ser em sua permanente retirada) não tem história no reino da errância, e de que pensar e agir não coincidem. Agir é errar, perder-se. Deveríamos considerar também de que modo a definição inicial do ser-culpado como traço primordial do Dasein, independentemente de qualquer ato específico, foi substituída por “errar” como a marca decisiva de toda a história humana. (Ambas as formulações, a propósito, lembrarão curiosamente para quem lê alemão o “Der Handelnde wird immer schuldig” e o “Es irrt der Mensch solang er strebt” de Goethe.) (Para evitar equívocos: ambas as citações são tão famosas que já fazem parte da língua alemã. Todo falante de alemão pensa geralmente nesses termos sem necessariamente ter sido influenciado por Goethe.) (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15)
Em resumo, o que temos aqui é um esforço efêmero da parte do governo secular para manter não a fé hebraico-cristã, mas sim instrumentos políticos de governo, que tinham sido tão eficientes na proteção das comunidades medievais contra a criminalidade. Retrospectivamente, isso quase pode parecer um expediente engenhoso dos poucos que eram instruídos para persuadir a maioria a não seguir a trilha escorregadia em direção ao Iluminismo. De qualquer forma, a tentativa fracassou totalmente (no início do nosso século, poucos eram os que ainda acreditavam em “um futuro estado de recompensas e punições”), e estava provavelmente fadada a fracassar. Entretanto a perda da crença e, com ela, de uma boa parte do antigo medo aterrador da MORTE certamente contribuiu para a maciça invasão da criminalidade na vida política de comunidades altamente civilizadas que nosso século testemunhou. Há uma estranha e inerente impotência nos sistemas legais de comunidades inteiramente secularizadas; sua pena máxima, a pena de MORTE, somente data e acelera um destino a que todos os mortais estão sujeitos. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16)
É espantoso, além disso, que a noção do futuro — justamente um futuro prenhe da salvação final —, que traz de volta uma espécie de Idade do Ouro inicial, tenha se tornado popular em um tempo em que o Progresso tornara-se o conceito dominante na explicação do movimento da história. E o mais impressionante exemplo da persistência daquele sonho muito antigo é, obviamente, a fantasia marxista de um “reino de liberdade” sem classes e sem guerras, tal como foi prefigurado no “comunismo original”, um reino que tem mais do que uma semelhança superficial com o reino original de Saturno sobre a Itália, quando nenhuma lei “acorrentava os (homens) à justiça”. Em sua forma original antiga, como o início da história, a Idade do Ouro é um pensamento melancólico. É como se, há milhares de anos, nossos ancestrais houvessem tido um pressentimento da descoberta eventual do princípio da entropia, que surgiria em um século XIX embriagado de progresso — uma descoberta que, se não tivesse sido questionada, teria destituído a ação de qualquer significado. (R. J. E. Clausius (1822-1888), físico e matemático alemão que enunciou a segunda lei da termodinâmica, introduziu o princípio da entropia (energia não disponível para trabalho útil em um sistema termodinâmico, representada pelo símbolo Ø): “Postulando que a entropia do universo está aumentando continuamente, ele previu que o universo se extinguiria pela ‘MORTE do calor’, quando tudo dentro dele chegasse à mesma temperatura.” Columbia Encyclopedia, 3ª ed. (Ed.).) O que fez na verdade o princípio da entropia desaparecer para os homens que realizaram as revoluções dos séculos XIX e XX foi não tanto a refutação “científica” de Engels, mas o retorno de Marx — e obviamente também o de Nietzsche — ao conceito cíclico de tempo, em que a inocência pré-histórica do começo finalmente reapareceria, tão triunfante quanto a segunda vinda de Jesus à Terra. (Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16)
A questão que surge agora é a seguinte: quais são os padrões da operação de reflexão?… Chama-se gosto (o sentido interno) porque, assim como o gosto, ele escolhe. Mas essa escolha sujeita-se ela mesma, mais uma vez, a outra escolha: podemos aprovar ou desaprovar o simples fato de aprazer; ele está sujeito à “aprovação e desaprovação”. Kant dá exemplos: “A alegria de um homem necessitado, mas bem-intencionado, ao tornar-se herdeiro de um pai afetuoso mas avarento”; ou, ao contrário, “uma dor profunda pode satisfazer a pessoa que a experimenta (a angústia de uma viúva na MORTE de seu excelente marido); ou… algo que é gratificante pode também aprazer (como nas ciências que buscamos); ou um pesar (por exemplo, ódio, inveja, vingança) pode ademais desaprazer”. Todas essas aprovações e desaprovações são re-pensamentos; enquanto estamos fazendo pesquisa científica, podemos estar vagamente conscientes de estarmos felizes nesta atividade — mas só quando refletirmos sobre isso mais tarde… é que seremos capazes de ter esse “prazer” adicional; o prazer de aprovar. Neste prazer adicional, não é mais o objeto o que apraz, mas o fato de que o julgamos prazeroso: se relacionamos isto ao todo da natureza ou ao mundo, podemos dizer: nos apraz o fato de o mundo da natureza nos aprazer. O próprio ato de aprovação dá prazer; o próprio ato de desaprovação causa desprazer. Daí a questão: como escolher entre a aprovação e a desaprovação? Um critério podemos arriscar, considerando os exemplos: o critério é a comunicabilidade ou o caráter público. Não ficaremos ultra-ansiosos para anunciar nossa alegria na MORTE de nosso pai ou nossos sentimentos de ódio e inveja; não sentiremos, por outro lado, remorsos ao dizer que gostamos de fazer o trabalho científico e tampouco ocultaremos nossa dor na MORTE de um excelente marido. (Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar )