O vislumbre de Nietzsche de que “a eliminação do suprassensível elimina também o meramente sensível, e, portanto, a diferença entre eles” (Heidegger) [“Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”, in Holzwege, Frankfurt, 1962, p. 193] é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datá-la historicamente; qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si. Assim, todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito, o órgão do suprassensível, e os sentidos. As percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito; elas mudam segundo as condições de nosso CORPO; doce, amargo, cor, e assim por diante, existem somente nomo, por convenção entre os homens, e não physei, segundo a verdadeira natureza das aparências. Ao que os sentidos respondem: “Espírito infeliz! Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência [pisteis, tudo em que se pode confiar]? Nossa derrota será a tua ruína.” [B125 e B9] Em outras palavras, uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido, não importa se o “verdadeiro mundo” aboliu o “mundo aparente”, ou se foi o contrário; rompe-se todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a orientar-se. Nesses termos, nada mais parece fazer muito sentido. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
A primazia da aparência, para todas as criaturas vivas perante as quais o mundo aparece sob a forma de um parece-me, é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidar — as atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais. Pois, embora haja grandes diferenças entre essas atividades, todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece, e um movimento para trás em direção ao eu. Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores, criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele, dele tirar proveito e com ele nos entreter, mas tendo ainda alguma outra região como hábitat natural. Contudo, somos do mundo, e não apenas estamos nele; também somos aparências, pela circunstância de que chegamos e partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo. Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do CORPO, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas, mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais. Como certa vez Merleau-Ponty formulou, “só posso escapar do ser para o ser” [Thomas Langan, Merleau-Ponty’s Critique of Reason, New Haven, Londres, 1966, p. 93], e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Coisa bastante semelhante parece ser verdade para a ciência, especialmente para a ciência moderna que — de acordo com uma antiga observação de Marx — está de tal modo fundada na cisão entre Ser e Aparência, que não é mais necessário o esforço individual e particular do filósofo para chegar a alguma “verdade” por sob as aparências. O cientista também está sujeito às aparências, já que para descobrir o que está por trás da superfície deve abrir o CORPO visível e espreitar o seu interior, ou surpreender objetos ocultos com a ajuda de todo tipo de equipamento sofisticado que os possa desnudar das propriedades exteriores pelas quais eles se apresentam aos nossos sentidos naturais. A noção que orienta esses esforços científicos e filosóficos é sempre a mesma: as Aparências, como disse Kant, “devem ter um fundamento que não seja ele próprio uma aparência” [Critique of Pure Reason, B565]. Essa seria realmente uma generalização óbvia da maneira como as coisas naturais crescem e “aparecem” à luz do dia, vindas de um fundo de escuridão, caso agora não se estivesse pressupondo que esse fundo tem um grau mais alto de realidade do que aquilo que simplesmente aparece e logo depois volta a desaparecer. E assim como os “esforços conceituais” dos filósofos para encontrar algo além das aparências sempre terminaram com violentas invectivas contra as “meras aparências”, também as notáveis conquistas práticas dos cientistas para pôr a nu o que as aparências por si mesmas jamais revelam sem que haja alguma interferência foram realizadas à custa das aparências. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 2]
As dificuldades são, contudo, muito mais do que meramente terminológicas. Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre CORPO e alma. De fato, inclinamo-nos a concordar em que nenhuma parte do interior de nosso CORPO jamais aparece autenticamente, por si mesma; mas, se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores, referimo-nos à vida da alma; a relação interior-exterior, verdadeira para nossos corpos, não é verdadeira para nossas almas, mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização “interna” a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais. Além do mais, o mesmo emprego de metáforas caracteriza nossa linguagem conceitual, própria para tornar manifesta a vida do espírito. As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos, de cuja experiência elas são, então, como registrou Locke, “transferidas” — metapherein, transportadas — “para significações mais abstrusas, passando a representar ideias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos”. Só por meio de tal transferência poderiam os homens “conceber aquelas operações que experimentaram em si mesmos e que não aparecem externamente aos sentidos” [Of Human Understanding, livro III, cap. 1, nº 5]. Locke apoia-se aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõem-se ao CORPO em virtude da invisibilidade que os caracteriza. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Nossas atividades espirituais, ao contrário, são concebidas em palavras antes mesmo de ser comunicadas, mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para ser compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar, assim como uma criatura dotada do sentido da visão é própria para ver e ser vista. É inconcebível pensamento sem discurso, “pensamento e discurso antecipam um ao outro. Continuamente um toma o lugar do outro” [Merleau-Ponty, Signs, introdução, p. 17]; realmente contam um com o outro. E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções — amor e ódio, vergonha e inveja —, seu locus não é um “órgão” e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida. É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do mundo das aparências, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da alma. O pensamento, e a linguagem conceitual que o acompanha, necessita — à medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências — de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio em que tais apreensões imediatas de evidência não podem existir. Mas as nossas experiências de alma são de tal modo corporalmente limitadas, que falar de uma “vida interna” da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores. É óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal; ela está completamente à mercê de seu processo vital interno, de seus humores e emoções, cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais. Toda emoção é uma experiência somática; meu coração dói quando estou magoado, aquece quando sinto simpatia, abre-se nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam, e sensações físicas similares apoderam-se de mim junto com a raiva, o ódio, a inveja e outros afetos. A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu “o espírito como o outro lado do CORPO”, já que “há um CORPO do espírito e um espírito do CORPO e um quiasma entre eles” [The Visible and the Invisible, p. 259]. Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais, e o próprio Merleau-Ponty, em outro contexto, reconheceu essa ausência com bastante clareza. O pensamento, escreve ele, “é ‘fundamental’ porque não está fundado em nada, mas não fundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer. Por princípio, o pensamento fundamental não tem fundo. Ele é, se se quiser, um abismo” [Signs, p. 21]. Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma, e vice-versa. A alma, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do CORPO; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele” [The Visible and the Invisible, p. 259]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
A propósito, essas ideias sobre o sempre difícil problema das relações corpo-alma são muito antigas. O De Anima de Aristóteles está repleto de tantalizadoras referências a fenômenos psíquicos e às suas estritas interconexões com o CORPO, em contraste com a relação, ou melhor, a não-relação entre CORPO e espírito. Discutindo tais temas de um modo incerto e peculiar, Aristóteles declara: “[…] parece que não há caso em que a alma possa atuar ou ser atuada sem o CORPO; verifiquem-se os exemplos de cólera, coragem, apetite e sensação em geral. [Estar ativo sem envolver o CORPO] parece ser antes uma propriedade do espírito [noein]. Mas se o espírito [noein] é também uma espécie de imaginação [phantasia], ou não é possível sem a imaginação, ele [noein] também não poderá ser sem o CORPO.” [De Anima, 403a5-10] E, mais adiante, resumindo: “Nada é evidente sobre o espírito [nous] e a faculdade teórica, mas ele parece ser um tipo diferente de alma, e só esse tipo pode ser separado [do CORPO], como o eterno é separável do perecível.” [Ibidem, 413b24ss] E em um dos tratados biológicos, sugere que a alma — sua parte vegetativa, bem como suas partes nutritiva e sensitiva — “veio a ser no embrião, não existindo previamente fora dele, mas o nous entrou na alma vindo de fora, garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do CORPO” [De generatione animalium, II, 3, 736b5-29, citado em Lobkowicz, op. cit., p. 24]. Em outras palavras, não há sensações que correspondam às atividades espirituais; e as sensações da psique, da alma, são realmente sentimentos que experimentamos como nossos órgãos corporais. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia — em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública — dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do CORPO humano. As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao CORPO, mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos, com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizá-los. Sem o impulso sexual, que se origina em nossos órgãos reprodutivos, o amor não seria possível; mas enquanto o impulso é sempre o mesmo, como é grande a variedade das aparências reais do amor! Decerto é possível compreender o amor como a sublimação do sexo; mas isso apenas quando se pensa que não há nada a ser compreendido como sexo sem amor; e que nem mesmo a seleção de um parceiro sexual seria possível sem a intervenção do espírito, ou seja, sem uma escolha deliberada entre o que apraz e o que não apraz. De forma similar, o medo é uma emoção indispensável à sobrevivência; ele indica perigo e sem esse sentido de advertência nenhuma coisa viva poderia durar muito tempo. O homem corajoso não é aquele cuja alma carece dessa emoção, ou que a pode superar de uma vez por todas; mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar. A coragem pode tornar-se então uma segunda natureza ou um hábito, mas não no sentido do destemor substituir o medo, como se também ela pudesse tornar-se uma emoção. Tais escolhas são determinadas por vários fatores; muitas delas são determinadas pela cultura em que nascemos — são feitas porque queremos agradar aos outros. Mas há também escolhas que não estão inspiradas em nosso ambiente; podemos fazê-las porque queremos agradar a nós mesmos ou porque queremos estabelecer um exemplo, isto é, persuadir os demais a ter prazer com o que nos dá prazer. Quaisquer que sejam os motivos, o sucesso e o fracasso da iniciativa de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem assim apresentada ao mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. Nesse contexto, ele distingue a “noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito [Geist], por meio de uma intuição imaterial, e a consciência por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. É sempre, portanto, o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível, mas não a mesma pessoa, já que […] o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e, ao contrário, meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito”. E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu CORPO”. E não recordamos nada dessas ideias quando despertamos. Os sonhos são algo ainda diferente; eles “não são daqui. Pois, nesse caso, o homem não adormece completamente […], e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores” [A última e supostamente a melhor tradução para o inglês, feita por John Manolesco, apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer, and Other Writings, Nova York, 1969. Eu mesma traduzi a passagem do alemão, in Werke, vol. I. pp. 946-951.]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Tais ideias de Kant, se compreendidas como constituintes de uma teoria dos sonhos, são evidentemente absurdas. Mas são interessantes como tentativa um tanto desajeitada de dar conta das experiências espirituais de retirada do mundo real. Pois é preciso que se dê alguma explicação sobre uma atividade que, ao contrário de qualquer outra atividade ou ação, nunca encontra resistência por parte da matéria. Ela não é sequer atravancada ou retardada quando se manifesta em palavras formadas por órgãos sensoriais. A experiência da atividade do pensamento é provavelmente a fonte original de nossa própria noção de espiritualidade, independentemente das formas que ela tenha assumido. Em termos psicológicos, uma das mais notáveis características do pensamento é sua incomparável rapidez — “rápido como o pensamento”, disse Homero; e Kant, em seus primeiros escritos, mencionou inúmeras vezes a Hurtigkeit des Gedankens [“Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels”, Werke, vol. I, p. 384. Tradução para o inglês: Universal Natural History and Theory of the Heavens, por W. Hastie, Ann Arbor, 1969]. Naturalmente o pensamento é veloz porque é imaterial; e isso, por sua vez, acaba por explicar a hostilidade que tantos dos grandes metafísicos tinham em relação a seus próprios corpos. Do ponto de vista do ego pensante, o CORPO é apenas um obstáculo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Descartes, fiel ao subjetivismo radical, primeira reação dos filósofos às novas glórias da ciência, já não atribuía as satisfações dessa forma de vida aos objetos do pensamento — a eternidade do kosmos que nem passa a ser nem deixa de ser e que, desse modo, confere uma parcela de imortalidade àqueles poucos que decidiram passar a vida contemplando-a. A bem moderna suspeita cartesiana com relação ao aparelho sensorial e cognitivo do homem fez com que ele definisse — com maior clareza do que qualquer outro filósofo anterior — como propriedades da res cogitans certas características que, não sendo desconhecidas dos antigos, assumiram agora, talvez pela primeira vez, uma importância suprema. Entre essas características destacavam-se a autossuficiência, ou seja, o fato de que esse ego “não tem necessidade de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”, e, também, a não-mundanidade, isto é, que na autoinspeção, “examinant avec attention ce que j’étais”, seria possível facilmente “feindre que je n’avais aucun corps et qu’il n’y avait aucun monde ni aucun lieu où je fusse” [fingir que não tinha CORPO e que não havia nenhum mundo nem lugar algum aonde eu fosse] [Le Discours de la Méthode, 4ª parte, in Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 114; The Philosophical Works. vol. I, p. 101]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
De fato, nenhuma dessas descobertas, ou melhor, redescobertas, foi em si mesma de grande relevância para Descartes. Seu interesse principal era encontrar algo — o ego pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à alma — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma consciência que abandonou toda a experiência sensível. Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão, o sonhador, quando concorda em não exigir realidade do sonho, deve ser real. Assim, “Je pense, donc je suis”, “Penso, logo existo”. Por um lado, era tão forte a experiência da própria atividade de pensar, e, por outro, tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu “la terre mouvante” (a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual nos pomos de pé), que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitatio e nenhum cogito me cogitare — nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais — poderia convencê-lo de sua própria realidade, de que ele teria realmente nascido em um deserto, sem um CORPO e sem os sentidos necessários para perceber coisas “materiais”; e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas. A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem CORPO, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. O que Merleau-Ponty tinha a dizer contra Descartes, disse-o de modo brilhante e correto: “Reduzir a percepção ao pensamento de perceber […] é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar; pois é […] passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o ‘há’ do mundo.” [The Visible and the Invisible, pp. 36-37] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
A simples invisibilidade, o fato de que algo possa ser sem ser manifesto aos olhos, deve ter sido sempre surpreendente. Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre alma, espírito e consciência, elementos frequentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos. Desse modo, Platão concluiu que a alma é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis. E mesmo Kant, o mais crítico dos filósofos em relação aos preconceitos metafísicos tradicionais, enumera ocasionalmente dois tipos de objetos: ‘‘‘Eu’, como pensamento, sou um objeto de sentido interno, e me chamam ‘alma’. O objeto dos sentidos externos é chamado ‘CORPO’.” [Critique of Pure Reason, B400] Isso, evidentemente, é apenas uma variante da velha teoria metafísica dos dois mundos. Faz-se uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos — de modo que um “sentido interno”, a saber, a intuição da introspecção, é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra “internamente” com a mesma segurança dos nossos sentidos externos ao lidarem com o mundo exterior. No que diz respeito à alma, a analogia não é totalmente ilusória. Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados, mas são “paixões” provocadas por eventos externos que afetam a alma e produzem certas reações, a saber, as pathemata da alma — seus humores e estados passivos —, essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis, como observou Kant, “somente com base na suposição da experiência externa” [Ibidem, B275]. Ademais, a sua própria passividade, o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada, resulta em uma impressionante semblância de estabilidade. Essa semblância produz, então, certas ilusões da introspecção, que, por sua vez, levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades, como também pode governar as paixões da alma — como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma. Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estoicas do controle da dor e do prazer pelo espírito; sua falácia — de que é possível sentir-se feliz ao ser assado no Touro de Falera — repousa, em última instância, sobre a equação da alma com o espírito, isto é, reside em atribuir à alma e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A melhor descrição que conheço desse processo de preparação é dada por Agostinho. A percepção sensível, diz ele, “a visão, que era externa quando o sentido era formado por um CORPO sensível, é seguida por uma visão similar interna”, a imagem que o re-presenta [The Trinity, livro XI, cap. 3. Trad. ingl.: série Fathers of the Church, Washington, D.C., 1963, vol. 45]. Essa imagem é então guardada na memória, pronta para tornar-se uma “visão em pensamento”, no momento em que o espírito a agarra; o decisivo é que “o que fica na memória” — a mera imagem daquilo que era real — é diferente da “visão em pensamento” — o objeto deliberadamente relembrado. “O que fica na memória […] é uma coisa e […] algo diferente surge quando lembramos” [Ibidem], pois “o que é ocultado e mantido na memória é uma coisa, e o que é impresso por ela no pensamento daquele que relembra é outra” [Ibidem, cap. 8]. Portanto, o objeto do pensamento é diferente da imagem, assim como a imagem é diferente do objeto sensível e visível, do qual é uma simples representação. É por causa dessa dupla transformação que o pensamento “de fato vai mais longe ainda”, para além da esfera de toda imaginação possível, “onde nossa razão proclama a infinidade numérica que nenhuma visão no pensamento de coisas corpóreas jamais alcançou”, ou “nos ensina que até mesmo os corpos mais minúsculos podem ser infinitamente divididos” [Ibidem, cap. 10]. A imaginação, portanto, que transforma um objeto visível em uma imagem invisível, apta a ser guardada no espírito, é a condição sine qua non para fornecer ao espírito objetos-de-pensamento adequados; mas estes só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente relembra, recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha a atrair o seu interesse a ponto de induzir a concentração; nessas operações, o espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para “ir mais além”, em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes, e que não podem ser lembradas, porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Essas observações podem indicar por que o pensar, a busca de significado — oposta à sede de conhecimento, e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento — foi tão frequentemente considerada antinatural, como se os homens, sempre que refletissem sem propósito específico, ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estar-aí do mundo e pela sua própria existência, estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana. O pensar enquanto tal, e não apenas como o levantamento das “questões últimas” irrespondíveis, mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos, está, como observou Heidegger, “fora de ordem” (grifos nossos) [An Introduction to Methaphysics, trad. Ralph Manhein, New Haven, 1959, p. 12]. Ela interrompe qualquer fazer, qualquer atividade comum, seja ela qual for. Todo pensar exige um pare-e-pense. As teorias dos dois mundos, quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos, surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante. E uma vez que qualquer coisa que impeça o pensar pertença ao mundo das aparências e às experiências do senso comum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade [realness] que tenho do meu próprio ser, é como se de fato o pensar me paralisasse, do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais, “l’accomplissement d’un acte qui doit être réflexe ou ne peut être”, como sentenciou Valéry. Identificando o estado de consciência com o estado de pensar, ele acrescenta: “on en pourrait tirer toute une philosophie que je résumerais ainsi: tantôt je pense et tantôt je suis” (“ora penso e ora sou”) [“Discours aux chirurgiens”, in Variété, Paris, 1957, vol. I, p. 916]. Essa observação extraordinária, totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias — a saber, que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos —, insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão: que somente o CORPO do filósofo — isto é, o que o faz aparecer entre as outras aparências — ainda habita a cidade dos homens, como se, pensando, os homens se retirassem do mundo dos vivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
“Tome a cor dos mortos” — deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento, monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas, aparecem para o senso comum dos homens, já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer. O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante. É muito mais o próprio senso comum do filósofo — o fato de ser ele “um homem como você e eu” — que o torna consciente de estar “fora de ordem” quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião comum, pois, afinal, compartilha a “qualidade do ser comum” [commonness] a todos os homens; e é seu próprio senso de realidade [realness] que o faz suspeitar da atividade de pensar. Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do senso comum e contra a insistência na “falta de sentido” de sua busca por significado, o filósofo sente-se inclinado a responder nos termos do senso comum, termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo. Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre alma e CORPO) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e CORPO” [Phaedo, 64-67]. Desse modo, ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades, da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente [Cf. Valéry, op. cit., loc. cit]. Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Foi assim que Platão descreveu a situação no Fedon: da perspectiva da multidão, os filósofos só fazem buscar a morte. A multidão poderia concluir, caso os filósofos não se preocupassem com isso, que o melhor para eles seria morrer [Phaedo, 64]. E Platão não está muito seguro de que a multidão não esteja certa, a não ser pelo fato de que eles não sabem em que sentido isso se deve realizar. O “verdadeiro filósofo”, o que passa a vida inteira imerso em pensamentos, tem dois desejos. O primeiro é que possa estar livre de todo tipo de ocupação, especialmente livre de seu CORPO, que sempre exige cuidados e “se interpõe em nosso caminho a cada passo […] e que provoca confusão, gera problemas e pânico” [Ibidem, 66]. O segundo é que ele possa vir a viver em um além onde essas coisas com que o pensamento está envolvido, tais como a verdade, a justiça e a beleza, não estarão menos acessíveis nem serão menos reais do que tudo o que agora podemos perceber com os sentidos corporais [Ibidem, 65]. Mesmo Aristóteles, em um de seus escritos mais populares, lembra aos seus leitores aquelas “ilhas dos bem-aventurados”; que são bem-aventurados porque lá “os homens não necessitariam de nada, e nada teria utilidade para eles, de tal modo que só restariam pensamento e contemplação (theorein), ou seja, o que agora mesmo chamávamos de uma vida livre” [Protreptikos, B43, Ingemar Düring Ed., Frankfurt, 1969]. Em resumo, a reviravolta inerente ao pensamento não é, de modo algum, uma empreitada inofensiva. No Fedon, ela inverte todas as relações: os homens, que naturalmente se esquivam da morte como o maior de todos os males, voltam-se agora para ela como o maior de todos os bens. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia — ou, mais academicamente, está posto em linguagem metafórica. Os filósofos não são famosos por seus suicídios, nem mesmo quando afirmam, com Aristóteles (em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikos) [Ibidem, B110], que os que querem divertir-se deveriam filosofar ou deixar a vida, pois tudo o mais parece tolo e sem sentido. Mas a metáfora da morte, ou melhor, a inversão metafórica da vida e da morte — o que usualmente chamamos vida é morte; o que habitualmente chamamos morte é vida —, não é arbitrária, embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático. Se o pensamento estabelece suas próprias condições, se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado, quando remove tudo o que está à mão, isso acontece para que o distante se torne manifesto. Formulando de maneira simples: no alheamento proverbial do filósofo, todo o presente está ausente, porque algo realmente ausente está presente em seu espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio CORPO. Tanto a hostilidade do filósofo em relação à política, “os pequenos assuntos humanos” [Republic, 500c], quanto sua hostilidade diante do CORPO têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais. Elas são inerentes à própria experiência. Enquanto pensa, a pessoa não tem consciência de sua corporalidade. Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do CORPO; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a alma pode pensar sem o CORPO, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao CORPO, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais” [Cartas de março de 1638. Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 780]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
A busca de significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como também, ao mesmo tempo, seus resultados permanecem incertos e não verificáveis. O pensamento é, de alguma forma, autodestrutivo. Na privacidade das notas postumamente publicadas, Kant escreveu: “Não concordo com a regra segundo a qual algo que ficou provado pelo uso da razão pura não está mais sujeito à dúvida, como se isso fosse um sólido axioma”; ou ainda: “Não compartilho a opinião segundo a qual […], depois que se está convencido de alguma coisa, não se pode duvidar dela. Na filosofia pura isso é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isso” (grifos nossos) [Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 5019 e 5036]. Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior [Platão, em Phaedo, 84a, menciona a teia de Penélope, mas no sentido oposto. A “alma do filósofo”, liberada do cativeiro do prazer e da dor, não deve agir como Penélope, desmanchando sua própria teia. Uma vez desembaraçada (por meio de logismos) do prazer e da dor que “cravam” a alma no CORPO, a alma (o ego pensante de Platão) muda sua natureza e até mesmo suas razões (logizesthai), mas estima (theasthai) “a verdade e o divino”, e aí permanece para sempre.]. Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de “homens sábios”. Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento, e os pensamentos que tive ontem irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensá-los novamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Todos os termos filosóficos são metáforas, analogias congeladas, por assim dizer, cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original, que estava muito nítido no espírito do primeiro filósofo a utilizá-lo. Quando Platão introduziu as palavras cotidianas “alma” e “ideia” na linguagem filosófica — conectando um órgão invisível no homem, a alma, com algo invisível no mundo dos invisíveis, as ideias —, ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e pré-filosófica; Psyche é o “sopro da vida” que os moribundos expiram, e ideia, ou eidos, é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho — uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado, adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das ideias. A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve-se da seguinte maneira: assim como o sopro de vida está relacionado com o CORPO que ele abandona, isto é, ao cadáver, a alma, daí em diante, está em princípio relacionada com o CORPO que vive. A analogia subjacente à sua doutrina das ideias pode ser reconstruída de maneira semelhante; assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto, também a totalidade dos dados sensíveis e materiais no mundo das aparências relaciona-se com um padrão invisível situado no céu das ideias e é avaliada de acordo com ele. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Tentando agora examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o mundo das aparências, podemos oferecer, provisoriamente, a seguinte descrição geral: da sugestiva definição aristotélica da linguagem como “emissão sonora e significativa” de palavras que já em si são “sons com significado” que “se assemelham a pensamentos”, pode-se concluir que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem, sem qualquer esforço especial, já encontrou uma morada adequada, ainda que provisória, no mundo audível. Se falar e pensar nascem da mesma fonte, então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova, ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma “aparência”. A “terra do pensamento” de Kant — Land des Denkens — pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do CORPO; manifesta-se, com todo tipo de distorção, não só para nosso espírito, mas também para os ouvidos do CORPO. E é nesse contexto que a linguagem do espírito, através da metáfora, retorna ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto, mas que pode ser dito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Analogias, metáforas e emblemas são fios com que o espírito se prende ao mundo, mesmo nos momentos em que, desatento, perde o contato direto com ele; são eles também que garantem a unidade da experiência humana. Além disso, servem como modelos no próprio processo de pensamento, dando-nos orientação quando tememos cambalear às cegas entre experiências nas quais nossos sentidos corporais, com sua relativa certeza de conhecimento, não nos podem guiar. O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias — que o mundo das aparências nos lembra coisas não-aparentes — pode ser visto como uma espécie de “prova” de que CORPO e espírito, pensamento e experiência sensível, visível e invisível se pertencem, são, por assim dizer, “feitos” um para o outro. Em outras palavras, se a rocha no mar, que “resiste à rota veloz dos ventos que silvam, às ondas que se elevam e nela rebentam”, pode tornar-se uma metáfora para resistência em combate, então “não é […] correto dizer que a rocha é vista antropomorficamente, a não ser que acrescentemos que nossa compreensão da rocha é antropomórfica pela mesma razão que essa compreensão pode permitir que nos vejamos petromorficamente” [Bruno Snell, “From Myth to Logic: The Role of The Comparison”, in The Discovery of the Mind, Harper Torchbooks, Nova York, Evanston, 1960, p. 201]. Há finalmente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora; ela indica, à sua maneira, a absoluta primazia do mundo das aparências, fornecendo, assim, mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Esse último ponto é de especial importância. Se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, o mundo das aparências insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso CORPO e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências. A teoria dos dois mundos, como já disse, é uma falácia metafísica, mas não é absolutamente arbitrária ou acidental. É a falácia mais razoável a atormentar a experiência do pensamento. A linguagem, prestando-se ao uso metafórico, torna-nos capazes de pensar, isto é, de ter trânsito em assuntos não sensíveis, pois permite uma transferência, metapherein, de nossas experiências sensíveis. Não há dois mundos, pois a metáfora os une. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Isso é muito diferente do que se lê nos diálogos platônicos (em embora não seja motivo para considerar a Sétima carta espúria). Lê-se Político, portanto, algo sobre semelhanças entre o visível e o invisível: Semelhanças que os sentidos podem apreender estão disponíveis na natureza para aqueles seres reais […] de modo que, quando alguém reivindica uma explicação sobre esses seres, não há qualquer problema — é só indicar as semelhanças sensíveis e dispensar qualquer indicação com palavras. Mas para a maior e mais importante classe de seres não há semelhanças correspondentes visíveis […]. Nesses casos, nada de visível pode ser apontado que satisfaça o espírito interrogador […]. Portanto, devemos nos treinar para dar […] uma explicação em palavras para cada coisa existente. Porque os seres que não possuem um CORPO visível, os seres que têm o maior valor e a importância principal são demonstráveis somente pela fala (logos) e não devem ser apreendidos por qualquer outro meio [286a, b]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Na Sétima carta, Platão nos diz brevemente como essa dupla transformação pode chegar a acontecer, como é que se pode falar sobre nossa percepção sensível e como esse falar sobre (dialegesthai) é, em seguida, transformado em uma imagem visível somente para a alma. Temos nomes para o que vemos, como, por exemplo, o nome “círculo” para algo redondo; esse nome pode ser explicado em discurso (logos), em sentenças “compostas de substantivos e verbos”, e dizemos que o círculo é “uma coisa cujas distâncias entre o centro e as extremidades são sempre iguais”. Tais frases podem levar à confecção de círculos, de imagens (eidólon) que podem ser “desenhadas e apagadas, viradas e destruídas”, processos que obviamente não afetam o círculo em si, que é diferente de todos esses círculos. O conhecimento e o espírito (nous) apreendem o círculo essencial, isto é, aquilo que todos os círculos têm em comum, algo que “não reside nem nos sons [da fala] nem nas formas dos corpos, mas na alma”, e tal círculo é claramente “diferente do círculo real”, percebido primeiramente na natureza pelos olhos do CORPO, e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal. Esse círculo na alma é percebido pelo espírito (nous), que está mais próximo dele por afinidade e semelhança. E essa intuição interna pode em si ser chamada de verdade [342]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
À verdade do tipo da evidência, construída conforme o princípio das coisas percebidas pelos nossos olhos do CORPO, pode-se chegar através da orientação (diagógé) de palavras na dialegesthai, o fio discursivo de pensamento que pode ser silencioso ou falado entre mestre e discípulo, “movendo-se para cima e para baixo”, interrogando sobre “o que é verdadeiro e o que é falso”. Mas o resultado, que se supõe ser uma intuição, e não uma conclusão, virá de súbito, depois de uma longa série de perguntas e respostas: “quando um instante de insight (phronésis) geral fulgura, e o espírito […] é inundado de luz” [Ibidem, 344b]. Essa própria verdade está além das palavras; os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis — “nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas, e as retas, de redondas” [Ibidem, 343b] —, e as palavras, o discurso argumentado da fala que busca explicar, são “débeis”: não oferecem mais do que uma “pequena orientação” para reavivar a luz na alma, como a de uma centelha tremulante, a qual, uma vez gerada, se torna autossustentável [Ibidem, 341e]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Desde Bergson, o uso da metáfora da visão na filosofia vem, não sem surpresa, diminuindo, à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala, de nous para logos. Com essa mudança, o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto — a adequatio rei et intellectus, entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto — à simples forma do pensamento, cuja regra básica é o axioma da não-contradição, da consistência interna, isto é, passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples “pedra de toque negativa da verdade”. “Além da esfera do conhecimento analítico, ela não tem qualquer autoridade ou campo de aplicação. como um critério suficiente de verdade.” [Critique of Pure Reason, B84 e B189-B191] Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais — por mais tênues e duvidosas que sejam —, para Heidegger e para Walter Benjamin, a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo, mas, por assim dizer, encolheu: em Benjamin, a verdade “passa despercebida” (huscht vorüber); em Heidegger, o momento de iluminação é concebido como “relâmpago” (Blitz), e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente, das Gelaüt der Stille, “o som ressonante do silêncio”. Em matéria de tradição, esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva. Pois, embora a metáfora seja agora, no fim e no ápice do processo de pensamento, extraída do sentido da audição, ela não corresponde em nada à escuta de uma sequência articulada de sons, como uma melodia, mas, novamente, a um estado mental imóvel de pura receptividade. E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do CORPO — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão. (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta.) [An Introduction to Metaphysics, p. 45] E Aristóteles fala de “energeia filosófica” como a atividade “perfeita e desembaraçada que [justamente por essa razão] abriga em si o mais doce de todos os prazeres” [Alla men he ge teleia energeia kai akolytos en heaute echei to chairein, hoste an eie he theoretike energeia pason hediste] [Protreptikos, Düring ed., B87]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
O pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim. Em outras palavras, o prazer de que fala Aristóteles, apesar de manifesto para o ego pensante, é inefável por definição. A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo. Sem o sopro de vida, o CORPO humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto. De fato, é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica: “A atividade do pensamento [energeia, que tem seu fim em si mesma] é vida.” [1072b27] A lei a ela inerente, que somente um deus pode tolerar para sempre — e o homem só vez por outra, nos momentos em que ele se diviniza —, “é um movimento incessante, que é um movimento circular” [1072a21], o único movimento, ou seja, o movimento que não tem fim ou que nunca resulta em produto final. Surpreende que essa estranhíssima noção do autêntico processo de pensamento, isto é, a noesis noeseos, como um girar em círculos — a mais gloriosa justificativa para o argumento circular na filosofia — jamais tenha preocupado nem aos filósofos nem aos intérpretes de Aristóteles — em parte, talvez, por causa das frequentes más traduções de nous e theoria por “conhecimento”, ou seja, o que sempre alcança um fim e o que sempre produz um resultado final [Essa má tradução estraga o Aristotle, de W. D. Ross. Meridian Books. Nova York, 1959, mas está misericordiosamente ausente de sua tradução de Metaphysics, em The Basic Works of Aristotle, de Richard McKeon.]. Se o pensar fosse um empreendimento cognitivo, ele teria que seguir um movimento retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição. O movimento circular aristotélico, tomado em conjunto com a metáfora da vida, sugere uma busca do significado que, para o homem, enquanto ser pensante, acompanha a vida e termina somente com a morte. O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital, o qual, embora indo do nascimento à morte, também gira em círculos enquanto o homem vive. A simples experiência do ego pensante mostrou-se impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores, ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar, de que existe algo como a “cognição especulativa” de Hegel [Philosophy of History, Introdução, p. 9]. Vemos Hegel dizer, sem qualquer referência a Aristóteles: “A filosofia forma um círculo […] [ela] é uma sequência que não está solta no ar; ela não é algo que comece a partir de absolutamente nada; pelo contrário, ela retorna a si mesma em círculos” (grifos nossos) [Hegel’s Philosophy of Right, trad. T. M. Knox. Londres. Oxford. Nova York, 1967, acréscimo ao parágrafo 2, p. 225]. Encontramos a mesma noção no final de “O que é a Metafísica?” de Heidegger, onde ele define a “questão básica da metafísica” como: “Por que existe algo, e não o nada?” — de certo modo, a primeira questão do pensar, mas, ao mesmo tempo, o pensamento no qual ela “sempre volta a mergulhar” [Wegmarken, p. 19]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Assim, Aristóteles atribuiu aos gregos a faculdade do logos, da fala racional, como traço distintivo em relação aos bárbaros. Mas atribuiu o desejo de ver a todos os homens. Desse modo, os habitantes da caverna de Platão se contentaram em olhar para os eidola que estavam diante deles, na tela, sem proferir uma única palavra, sem poder nem mesmo dirigir-se uns aos outros e comunicar-se, já que estavam em seus lugares, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço. A multidão compartilha a divina paixão de ver. Era algo de divino o que estava implicado na posição do espectador pitagórico, divorciado de qualquer coisa humana. Quanto menos tempo um homem precisasse para cuidar de seu CORPO, quanto mais tempo dedicasse à ocupação divina, mais ele se aproximaria do modo de vida dos deuses. Além disso, já que deuses e homens eram do mesmo gênero, mesmo a imortalidade divina não pareceria totalmente fora do alcance dos mortais. Embora seja constante fonte de inveja, o grande nome, a recompensa preciosa por “grandes feitos e grandes palavras” (Homero) conferia uma imortalidade potencial — um substituto inferior, é bem verdade. Por outro lado, cabia ao espectador conceder essa recompensa ao ator. Pois os poetas e os historiadores se ocupavam com o que aparece e desaparece da visibilidade do mundo no decurso do tempo antes que os filósofos se ocupassem com o que permanecerá para sempre invisível e com o que é não apenas imortal, mas de fato eterno, ageneton, com o que não apenas não tem fim, mas tampouco começo, isto é, é sem nascimento — os deuses gregos, como sabemos a partir da Teogonia de Hesíodo, eram imortais, mas não sem nascimento. O que estava em jogo, portanto, na ideia de uma posição externa ao âmbito dos assuntos humanos, antes mesmo do surgimento da filosofia, pode ser melhor esclarecido quando examinamos brevemente a noção que os gregos tinham da função poética e da posição do bardo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]
Até aqui abordei duas fontes das quais o pensamento, tal como o conhecemos, historicamente surgiu. Uma fonte é grega, a outra, romana, e elas são diferentes a ponto de serem opostas. De um lado, o espanto admirativo diante do espetáculo em meio a que o homem nasceu e para cuja apreciação ele está tão bem equipado de CORPO e espírito. Do outro lado, o extremo terrível de ter sido jogado em um mundo cuja hostilidade é arrasadora, onde o medo predomina e de onde o homem tenta escapar ao máximo. Há numerosas indicações de que essa última experiência não era completamente estranha para os gregos. A frase de Sófocles — “não ter nascido é superior a todo logos; o segundo maior bem, sem dúvida, é voltar o mais rápido possível para o lugar de onde viemos” [Oedipus at Colunnus] — parece ter sido a variante poética de um dito proverbial. O fato notável é que, dentro do meu conhecimento, essa disposição de ânimo não é mencionada em lugar algum como uma fonte grega de pensamento. O mais impressionante, talvez, é que ela nunca produziu nenhuma grande filosofia — a menos que queiramos incluir Schopenhauer entre os grandes pensadores. Mas embora as mentalidades grega e romana constituíssem mundos separados, e embora a maior falha da história da filosofia, tal como ela se encontra nos manuais, seja a de aplainar distinções tão agudas — até parecer que todo mundo disse vagamente a mesma coisa —, também é verdade que as duas mentalidades têm coisas em comum. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
Em ambos os casos, o pensamento deixa o mundo das aparências. Apenas porque o pensamento implica retirada é que ele pode ser usado como um instrumento para escapar. Além disso, como já foi enfatizado, o pensamento implica uma inconsciência do CORPO e do eu e põe em seu lugar a experiência da pura atividade, mais gratificante, segundo Aristóteles, do que a satisfação de qualquer outro desejo, já que dependemos de algo ou de alguém para obter todos os outros prazeres [Politics, 1267a12]. O pensamento é a única atividade que não precisa de nada além de si mesmo para seu exercício. “Um homem generoso precisa de dinheiro para praticar atos generosos […] e um homem moderado precisa da oportunidade da tentação.” [Nicomachean Ethics, 1178a29-30] Qualquer outra atividade, de nível baixo ou elevado, tem que vencer algo fora de si. Isso aplica-se até mesmo às artes performativas, como tocar flauta, cujo fim e propósito residem na própria realização — e mais ainda ao trabalho de produzir coisas, que é feito tendo como objetivo seus resultados, e não por si mesmo, e onde a alegria e a satisfação por uma obra bem-feita vêm depois que a própria atividade chegou ao fim. A frugalidade dos filósofos sempre foi proverbial, e Aristóteles a menciona: “Um homem engajado na atividade teórica não tem nenhuma necessidade… e muitas coisas são apenas obstáculos àquela atividade. Apenas pelo simples fato de que é um humano…, ele vai precisar dessas coisas que estão implicadas na própria condição de ser humano [anthrópeuesthai]” — ter um CORPO, viver junto com outros homens etc. No mesmo sentido, Demócrito recomenda abstinência ao pensamento: ele ensina como o logos deriva o seu prazer de si mesmo (auton ex heautou) [Frag. 146]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
A inconsciência do CORPO durante a experiência do pensamento, combinada com o simples prazer da atividade, é o que melhor explica não apenas os efeitos sedativos e consoladores que tais linhas de pensamento tiveram sobre os homens da Antiguidade tardia; mas explica também suas teorias curiosamente radicais a respeito do poder do espírito sobre o CORPO — teorias claramente refutadas pela experiência comum. Gibbon escreve em seu comentário sobre Boécio: “Tais tópicos sobre consolação, tão óbvios, tão vagos ou tão abstrusos, são impotentes para subjugar os sentimentos da natureza humana”; e a vitória final do cristianismo, que oferecia esses “tópicos” da filosofia como fatos reais e promessas seguras, prova como Gibbon tinha razão. [The Decline and Fall of the Roman Empire, Modern Library, Nova York, s/d, vol. II, p. 471.] E acrescentou: “De qualquer modo, o sentimento de infortúnio pode ser distraído pelo labor do pensamento”, e ao menos indica o que de fato ocorre, isto é, o temor pelo CORPO desaparece enquanto dura o “labor do pensamento”, não porque os conteúdos do pensamento possam vencer o medo, mas porque a atividade de pensar torna-nos inconscientes do CORPO, e pode até superar as sensações de pequenos desconfortos. A força excessiva dessa experiência pode elucidar o estranho fato histórico de que a antiga dicotomia entre CORPO e espírito, acentuadamente hostil com relação ao CORPO, possa ter sido adotada, quase inalterada, pelo credo cristão. Afinal de contas, este credo baseava-se no dogma da encarnação (o Verbo feito Carne) e na crença na ressurreição do CORPO, ou seja, doutrinas que deveriam ter representado o fim da dicotomia corpo-espírito e de seus enigmas insolúveis. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
Mas Sólon dá uma espécie de resposta positiva, que, quando corretamente compreendida em suas implicações, contém até mesmo o que se chamaria hoje de uma filosofia total, no sentido de uma Weltanschauung: a incerteza do futuro torna a vida humana miserável, “o perigo é inerente a todos os atos e feitos, ninguém sabe como vai terminar aquilo que começou, aquele que se conduz bem não pode prever a má sorte que sobre ele pode se abater, enquanto um deus em tudo favorece o perverso” [Ibidem, frag. 13, linhas 63-70]. Portanto, a frase “nenhum homem pode ser considerado feliz enquanto vive” de fato significa: “Nenhum homem é feliz; todos os mortais iluminados pelo Sol são miseráveis.” [Ibidem, frag. 14] Isso já é mais do que uma reflexão; é uma espécie de doutrina; e, como tal, não-socrática. Pois Sócrates, confrontado com tais questões, conclui quase todo diálogo estritamente socrático dizendo: “Fracassei completamente em descobrir o que é.” [Charmides, 175b] E esse caráter aporético do pensamento socrático significa que o assombro admirativo diante de atos justos ou corajosos vistos pelos olhos do CORPO dá origem a perguntas do tipo “o que é a coragem?” ou “o que é a justiça?”. A existência da coragem ou da justiça foi indicada aos meus sentidos pelo que vi, embora elas mesmas não façam parte da percepção sensorial, e, portanto, não sejam dadas como realidade autoevidente. A pergunta básica de Sócrates surge dessa experiência — o que temos em mente quando usamos essa classe de palavras, mais tarde chamadas “conceitos”? Mas não apenas o espanto original não é resolvido por tais perguntas — uma vez que elas continuam sem resposta —, como ainda por cima é reforçado. O que começa como espanto termina com perplexidade e, portanto, leva de volta ao espanto. Não é maravilhoso que os homens possam executar atos corajosos ou justos mesmo que não conheçam e não possam explicar o que são coragem e justiça? [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
Hoje isso já não é tão certo. Nosso conhecimento das línguas ditas primitivas mostra que o procedimento que agrupa diversos particulares sob um nome comum a todos não é de modo algum evidente ou natural. Essas línguas, cujo vocabulário é muitas vezes impressionantemente rico, carecem daqueles substantivos abstratos, mesmo em relação a objetos claramente visíveis. Para simplificar a questão, tomemos um substantivo que já não nos parece mais abstrato. Podemos usar a palavra “casa” para um grande número de objetos — para a cabana de barro de uma tribo, para o palácio de um rei, para a casa de campo de um citadino, para o chalé na aldeia, para o apartamento na cidade —, mas dificilmente a empregamos para as tendas de alguns nômades. A casa em si e por si, auto kath’auto, que nos faz usar a palavra para todos esses edifícios particulares e muito diferentes entre si, nunca é vista, seja pelos olhos do CORPO, seja pelos olhos do espírito. Toda casa imaginada, por mais abstrata que seja e por mínimos que sejam os traços que a tornam reconhecível, já é uma casa particular. Essa outra casa, invisível, da qual já precisamos ter uma noção para reconhecer edifícios particulares como casas, foi explicada de diferentes modos e chamada por diferentes nomes na história da filosofia; isso não nos interessa aqui, embora possamos achar a casa menos difícil de definir do que palavras como “felicidade” ou “justiça”. A questão aqui é que casa implica algo consideravelmente menos tangível do que a estrutura percebida por nossos olhos. Ela significa que alguém é por ela “abrigado” e que nela alguém “habita”, como não poderia fazer em nenhuma tenda, montada hoje e desmontada amanhã. A palavra “casa” é a “medida oculta” que “circunscreve os limites de todas as coisas” relacionadas ao habitar. É uma palavra que não existiria sem o pressuposto do que se pensa sobre ser abrigado, habitar, ter um lar. Como palavra, “casa” é uma abreviatura para todas essas coisas, o tipo de abreviatura sem a qual o pensamento e sua rapidez característica seriam absolutamente impossíveis. A palavra casa é como um pensamento congelado que o ato de pensar tem que degelar sempre que pretende encontrar o seu significado original. Na filosofia medieval, esse tipo de pensamento era chamado “meditação”, e a palavra era entendida como diferente e até mesmo oposta à contemplação. Em todo caso, esse tipo de reflexão ponderativa não produz definições e, neste sentido, não produz nenhum resultado, embora alguém que tivesse ponderado sobre o significado de “casa” pudesse ter tornado sua própria casa mais agradável. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]
O conto de Kafka está evidentemente redigido em linguagem metafórica. E suas imagens, tiradas da vida cotidiana, são tomadas como analogias sem as quais, como foi dito, os fenômenos do espírito não podem de modo algum ser descritos. E isso sempre apresenta dificuldades para a interpretação. A dificuldade específica aqui é que o leitor tem que estar consciente de que o ego pensante não é o eu que aparece e se move no mundo, recordando o próprio passado biográfico como se “ele” estivesse à la recherche du temps perdu ou planejando o futuro. Porque o ego pensante não tem idade nem localização, o passado e o futuro podem tornar-se, como tais, manifestos para ele, esvaziados, por assim dizer, de seu conteúdo concreto e liberados de todas as categorias espaciais. O que o ego pensante vê como os “seus” dois antagonistas são o próprio tempo e a mudança constante que ele implica, o movimento inexorável que transforma todo Ser em Devir, em vez de deixá-lo ser, destruindo assim, incessantemente, seu estar presente. Como tal, o tempo é o maior inimigo do ego pensante, porque o tempo — pela encarnação do espírito em um CORPO cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados — regula e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo, sem nada fazer. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una CORPO, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da consciência” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
As faculdades humanas não são, ao contrário das condições e circunstâncias da vida humana, contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra? Se não fosse esse o caso, como poderíamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados? Há, decerto, uma “história das ideias”, e seria bem fácil traçar a história da ideia de Liberdade: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político — aquele do cidadão livre e não o do escravo — e de uma circunstância física factual — aquela de um homem saudável, cujo CORPO não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito — e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover seus membros. As ideias são artefatos do espírito, e sua história pressupõe a identidade imutável do homem, o artífice. Voltaremos mais adiante a esse problema. De qualquer forma, o fato é que, antes do surgimento do cristianismo, jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à “ideia” de Liberdade, assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade, e a faculdade da Razão, a coisas que estão além do conhecimento humano ou, como dissemos aqui, ao Significado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Formulada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um CORPO que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio CORPO e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. Segue-se daí que nossa pergunta — “onde estamos quando pensamos?” — foi feita de fora da experiência de pensamento e foi, portanto, imprópria. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Uma das dificuldades de nosso tópico, portanto, é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua “origem histórica” na teologia, mais do que em uma tradição contínua de pensamento filosófico. [Ver o artigo sobre a Vontade na Encyclopedia Britannica, mencionado anteriormente na nota 16.] Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pós-antigos sobre a localização da liberdade humana no “eu-quero”, claro está que no esquema do pensamento pré-cristão a liberdade localizava-se no “eu-posso”; liberdade era um estado objetivo do CORPO, não um dado da consciência ou do espírito. Liberdade significava poder fazer o que se quer, sem ser forçado pela ordem de um senhor, nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o CORPO, nem por algum defeito somático, tal como má saúde ou paralisia de um dos membros. Segundo a etimologia grega, isto é, segundo a autointerpretação grega, a raiz da palavra liberdade, eleutheria, é eleuthein hopós eró, ir conforme eu queira; [Ver Dieter Nestle, Eleutheria. Teil I: Studien zum Wesen der Freiheit bei den Griechen und im Neuen Testament. Tübingen, 1967, pp. 6 e ss. Parece digno de nota que a etimologia moderna se incline a derivar a palavra eleutheria de uma raiz indo-germânica significando Volk ou Stamm, que tem como resultado apresentar aqueles que pertencem à mesma unidade étnica como sendo reconhecidos “livres” por seus companheiros de etnia. Este exemplo de erudição não soa desconfortavelmente próximo das noções de cultura alemã dos anos 1930, que vinham à tona, na época, pela primeira vez?] e não resta dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento. Uma pessoa era livre se pudesse locomover-se como quisesse; o “eu-posso”, não o “eu-quero”, era o critério. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições, religiosas ou seculares, é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo, de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que o foram para chegar a uma avaliação razoável do CORPO. Mas a hostilidade dos filósofos contra o CORPO é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão. Ela não é primordialmente motivada pela falibilidade da experiência sensorial — pois esses erros podem ser corrigidos —, ou pela notória ingovernabilidade das paixões — pois estas podem ser domadas pela razão —, mas sim pela simples e incorrigível natureza de nossas necessidades e desejos corporais. O CORPO, como enfatiza corretamente Platão, sempre “quer ser cuidado”; e até mesmo nas melhores condições — saúde e prazer, por um lado, e uma comunidade equilibrada, por outro —, ele interromperá, com suas repetidas exigências, as atividades do ego pensante; nos termos da alegoria da Caverna, o CORPO forçará o filósofo a retornar do céu das ideias para a Caverna dos assuntos humanos. (É comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão em relação à carne. Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga, como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais, a ressurreição da carne, diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da alma, manteve-se em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
À medida que o eu se identifica com o ego volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de [seu próprio] futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir [le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir], quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” [Koyré, op. cit., p. 177]. Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” [Platão, Republic, 329b-c] — libertação do estado de sujeição não só às paixões do CORPO como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
O fracasso final de Hegel em conciliar as duas atividades do espírito, pensar e querer, com os seus conceitos de tempo opostos, parece-me evidente, mas ele próprio teria discordado: o pensamento especulativo é precisamente “a unidade de pensamento e tempo” [The Phenomenology of Mind, trad. J. B. Baillie (1910), Nova York, 1964, p. 803]; não lida com o Ser, mas com o Devir, e “o objeto do espírito pensante não é o Ser mas um Devir intuído” [Koyré, op. cit., p. 164, citando Encyclopedia, n° 258]. O único movimento que pode ser intuído é um movimento que gira em um círculo que forma “um ciclo que retorna sobre si mesmo […], que pressupõe o seu começo e chega ao seu começo somente no fim”. Este conceito cíclico de tempo, como vimos, está em perfeita harmonia com a filosofia grega clássica, enquanto a filosofia pós-clássica, seguida da descoberta da Vontade como a fonte principal do espírito para a ação, exige um tempo retilíneo, sem o qual o Progresso seria impensável. Hegel encontra a solução para esse problema, isto é, descobre como transformar os círculos em uma linha progressiva, admitindo que existe algo por trás de todos os membros individuais da espécie humana, e que este algo chamado Humanidade é na verdade uma espécie de alguém, que ele chamou de “Espírito do Mundo”, para ele não uma simples coisa-pensamento, mas uma presença corporificada (encarnada) na Humanidade, assim como o espírito de um homem está encarnado em seu CORPO. Esse “Espírito do Mundo” corporificado na Humanidade, em contraposição a diferentes indivíduos e a nações particulares, leva a cabo um movimento retilíneo inerente à sucessão de gerações. Cada geração nova forma uma “nova fase de existência, um novo mundo”, e, assim, “tem que começar tudo outra vez”, mas “começa em um nível mais alto” porque, sendo humana e dotada de espírito, ou seja, de Lembrança, “conservou a experiência [anterior]” (grifos nossos). [Hegel, The Phenomenology of Mind, pp. 801, 807-808. Grifos nossos.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
A investigação da história de uma faculdade pode facilmente ser confundida com um esforço para acompanhar a história de uma ideia — como se nós, aqui, por exemplo, estivéssemos interessados na história da Liberdade, ou confundíssemos a Vontade com uma mera “ideia”, que poderia, então, ser tomada como um “conceito artificial” (Ryle), inventado para resolver problemas artificiais [Concept of Mind, pp. 62 e ss]. As ideias são coisas-pensamento, artefatos do espírito que pressupõem a identidade de um artífice; e supor que exista uma história das faculdades do espírito distintas dos produtos do espírito parece o mesmo que supor que o CORPO humano, que é um CORPO que fabrica e usa ferramentas — sendo a ferramenta primordial a mão humana —, está tão sujeito a mudanças produzidas pela invenção de novas ferramentas e utensílios quanto o ambiente que nossas mãos não param de remodelar. Sabemos que não é esse o caso. Poderia ser diferente com nossas faculdades do espírito? Poderia o espírito adquirir novas faculdades no curso da história? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
A falácia que subjaz a essas questões reside em uma identificação quase automática do espírito com o cérebro. É o espírito que determina a existência tanto dos objetos de uso quanto das coisas-pensamento; e assim como o espírito daquele que faz objetos de uso é um espírito de ferramenteiro — isto é, o espírito de um CORPO dotado de mãos —, também o espírito que origina pensamentos e os reifica em coisas-pensamento ou ideias é o espírito de uma criatura dotada de um cérebro humano e de potência cerebral. O cérebro, a ferramenta do espírito, não está mais sujeito a mudanças operadas pelo desenvolvimento de novas faculdades espirituais do que a mão humana, pela invenção de novas ferramentas, ou pela mudança enorme e tangível que realizam em nosso meio ambiente. Mas o espírito do homem — seus interesses e suas faculdades — é afetado tanto pelas mudanças no mundo, cuja significação ele examina, quanto, e talvez de forma até mais decisiva, por suas próprias atividades. Todas estas têm natureza reflexiva — maior, como veremos, no caso das atividades do ego volitivo — e, contudo, jamais poderiam funcionar bem sem a ferramenta imutável da potência cerebral, o mais precioso talento de que o CORPO dotou o animal humano. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
O problema que está diante de nós é bastante conhecido em história da arte, em que ele é chamado de “enigma do estilo”, isto é, o simples fato de “que diferentes épocas e diferentes nações tenham representado o mundo visível de modos tão diferentes”. É surpreendente que isso possa ter acontecido na ausência de quaisquer diferenças físicas; e é talvez ainda mais surpreendente que não tenhamos a menor dificuldade em reconhecer as realidades para as quais apontam, mesmo quando as “convenções” de representação que adotamos são completamente diferentes [Ver o estudo incrivelmente esclarecedor de E. H. Gombrich, Art and Illusion, Nova York, 1960]. Em outras palavras, o que muda através dos séculos é o espírito humano; e, embora essas mudanças sejam muito acentuadas — tanto que podemos datar os produtos de acordo com o estilo e a origem nacional com grande precisão —, elas também se limitam rigorosamente pela natureza imutável dos instrumentos de que o CORPO humano é dotado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Mas essa faculdade tem uma natureza curiosamente paradoxal. Realiza-se por um imperativo que não diz simplesmente “tu deves” — como no caso em que o espírito fala ao CORPO, conforme colocou Agostinho mais tarde, e o CORPO imediata e, por assim dizer, impensadamente obedece —, mas diz também “tu deves querer”, o que já implica que, seja o que for que eu acabe fazendo de fato, eu posso responder: quero ou não quero. O próprio mandamento, o “tu deves”, coloca-me diante de uma escolha entre o “eu quero” e o “eu não quero”, ou seja, em termos teológicos, entre a obediência e a desobediência. (A desobediência, lembramos, vem a tornar-se, mais tarde, o pecado mortal par excellence; e a obediência, a própria base da ética cristã, a “virtude das virtudes” [Ekhart]. A propósito, uma virtude que, diferentemente da pobreza e da castidade, dificilmente pode ser tirada dos ensinamentos e das pregações de Jesus de Nazaré.) Se a vontade não tivesse a opção de dizer “Não”, ela não seria mais uma vontade; e se não houvesse uma contravontade em mim, despertada pelo próprio conteúdo do mandamento do “tu deves”, se, para usar os termos de Paulo, “o pecado” não habitasse “em mim” (Romanos 7:20), eu não precisaria absolutamente de uma vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Em suma, a vontade é impotente não por causa de algo externo que a impeça de ter êxito, mas porque se torna um obstáculo para si mesma. E onde não é um obstáculo, como em Jesus, ela ainda não existe. Para Paulo, a explicação é relativamente simples: o conflito se dá entre carne e espírito, e o problema é que o homem é tanto carnal quanto espiritual. A carne vai morrer, e, portanto, viver de acordo com a carne significa uma espécie de morte. A tarefa principal do espírito não é só governar os desejos e fazer com que a carne obedeça, mas também causar sua mortificação — crucificá-la “com suas paixões e desejos” (Gálatas 5:24), coisa que, na verdade, está além do poder humano. Vimos que, do ponto de vista do ego pensante, era bastante natural uma certa suspeita em relação ao CORPO. A carnalidade do homem, embora não necessariamente origem do pecado, interrompe a atividade pensante do espírito e oferece uma resistência ao diálogo sem som e veloz que o espírito mantém consigo mesmo, um intercâmbio cuja própria “doçura” está em uma espiritualidade na qual nenhum fator material interfere. Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao CORPO que encontramos em Paulo, uma hostilidade que, além disso, sem falar nos preconceitos contra a carne, surge da própria essência da Vontade. A despeito de sua origem espiritual, a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência; e a “carne”, no raciocínio de Paulo (mesmo posteriormente, quando é disfarçada em “inclinação”), torna-se a metáfora para a resistência interna. Assim, até mesmo nesse esquema simplista, a descoberta da Vontade já terá aberto a autêntica caixa de Pandora das questões irrespondíveis, que o próprio Paulo de modo algum ignorava e que a partir daí viriam a infestar de absurdos qualquer filosofia rigorosamente cristã. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Os dois eram quase contemporâneos, oriundos mais ou menos da mesma região do Oriente Próximo, viveram no Império Romano helenizado e falavam a mesma língua (koine), embora um fosse cidadão romano e o outro fosse homem alforriado, um ex-escravo, e um fosse judeu, e o outro, estoico. Têm também em comum uma certa rigidez moral que os distinguia em seus ambientes. Ambos declaram que cobiçar a mulher do próximo é cometer adultério. Atacam quase com as mesmas palavras o establishment intelectual de sua época — os fariseus, no caso de Paulo, e os filósofos (os estoicos e os acadêmicos) no de Epiteto — acusando-o de hipócrita que não se comporta conforme seus próprios ensinamentos. “Mostra-me um estoico se fores capaz!”, exclama Epiteto. “Mostra-me alguém que está doente e que ainda assim seja feliz, que está em perigo e ainda assim feliz, morrendo, e ainda feliz, no exílio e feliz, em desgraça e feliz […]. Pelos deuses, de bom grado eu enxergaria aí um estoico.” [Ver Discourses, Livro II, cap. xix] Esse menosprezo é mais declarado e desempenha papel ainda mais importante em Epiteto do que em Paulo. Finalmente, eles têm em comum um desprezo quase instintivo pelo CORPO — este “saco”, nas palavras de Epiteto, que, dia após dia, eu preencho para em seguida esvaziar: “Poderia haver algo mais cansativo?” [Fragments, 23] — e a insistência na distinção entre um eu interno e as “coisas exteriores” [The Mannual, 23 e 33]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
Essa faculdade de afastamento do que é exterior em direção a um interior invencível obviamente requer “treino” (gymnazein) e constante discussão, já que não só o homem vive sua vida diária no mundo como ele é, mas também seu eu interior, enquanto vive, localiza-se dentro de algo externo, um CORPO que não está em seu poder, mas pertence às “coisas exteriores”. A questão constante é se sua vontade é suficientemente forte não simplesmente para desviar sua atenção do exterior, ameaçando as coisas, mas sim para concentrar sua imaginação em “impressões” diferentes na presença real de dor e infortúnio. A recusa do consentimento, ou colocar a realidade entre parênteses, não é de modo algum um exercício de puro pensamento; tem que dar provas de si. “Tenho que morrer. Tenho que ser aprisionado. Tenho que sofrer um exílio. Mas: tenho que morrer gemendo? Tenho também que me lastimar? Alguém pode impedir-me de ir para o exílio com um sorriso?” O senhor ameaça acorrentar-me: “Que dizes? Acorrentar-me? Vais acorrentar minha perna sim; mas não a minha vontade; não, nem mesmo Zeus pode conquistá-la.” [Discourses, livro I, cap. i] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
Como a maioria dos estoicos, Epiteto reconhecia que a vulnerabilidade do CORPO impõe certos limites a essa liberdade interior. Incapazes de negar que não são as simples aspirações ou os desejos que nos impedem de ser livres, mas “os grilhões a nós presos na forma de um CORPO” [Ibidem, livro I, cap. ix], eles tinham que provar, portanto, que os grilhões não eram indestrutíveis. Uma resposta para a pergunta “O que nos impede de cometer o suicídio?” passa a ser um tópico necessário nos escritos dessa escola. Epiteto, de qualquer forma, parece claramente ter-se dado conta de que esse tipo de liberdade interna ilimitada pressupõe, na verdade, que “é preciso lembrar e fixar a ideia de que a porta está aberta” [Ibidem, livro I, cap. xxv. Grifo nosso]. Para uma filosofia de total alienação do mundo, há muita verdade na frase extraordinária com que Camus começou seu primeiro livro: “Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide.” [Le Mythe de Sisyphe, Paris, 1942] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
À primeira vista, essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença (apatheia) — como se proteger da realidade, como perder sua habilidade de ser por ela afetado, para o bem ou para o mal, na alegria ou na tristeza — parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental. Encontramos em Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível. Os estoicos, diz ele, descobriram o truque de como fingir que estão felizes: “Não podendo ter o que quer, o homem quer o que pode ter” [“Ideo igitur id vult quod potest, quoniam quod vult nom potest”] [De Trinitate, livro XIII, vii, 10]. Além disso, prossegue, os estoicos pressupõem que “todo homem deseja, por natureza, ser feliz”, sem contudo acreditar em imortalidade, pelo menos não em ressurreição do CORPO, isto é, em uma vida futura sem morte, e aí temos uma contradição em termos. Pois “se todo homem deseja de fato ser feliz, deve necessariamente também querer ser imortal. […] Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo” [Cum ergo beati esse omnes homines velint, si vere volunt, profecto et esse immortales volunt. […] Ut enim homo beate vivat, oportet ut vivat] [Ibidem, viii, 11]. Em outras palavras, os mortais não podem ser felizes, e a insistência dos estoicos no medo da morte como a maior fonte de infelicidade atesta isso; o máximo que podem conseguir é ficar “indiferentes”, deixar de ser afetados pela vida ou pela morte. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
Não há dúvida de que Agostinho está entre os maiores e mais originais pensadores; não era, porém, um “pensador sistemático”; e é verdade que o CORPO principal de sua obra está “repleto de linhas de pensamento que não vão até as últimas consequências e de empreitadas literárias abandonadas” [Peter Brown, Augustine of Hippo, Berkeley e Los Angeles, 1967, p. 123] — além de estar cheio de repetições. Nessas condições, cumpre notar a continuidade dos tópicos principais que ele no fim da vida submeteu a um exame minucioso intitulado Retractationes, ou “Retratações” — como se o Bispo e Príncipe da Igreja fosse o seu próprio Inquisidor. Talvez o mais fundamental desses tópicos sempre recorrentes tenha sido o “livre-arbítrio da vontade” (o Liberum arbitrium voluntatis) como faculdade distinta do desejo e da razão, embora Agostinho tenha dedicado a ele apenas um tratado inteiro com esse título. Foi um trabalho dos primeiros tempos, cuja parte inicial está ainda totalmente no estilo de suas outras primeiras obras filosóficas, embora tenha sido escrita depois do dramático acontecimento da conversão e do batismo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Essa prova da liberdade da Vontade se funda exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real — a faculdade necessária para executar os comandos da Vontade. A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão, por um lado, e com os desejos, por outro; e não é possível, para nenhum dos dois, dizer-se livre. (Vimos que Aristóteles introduziu sua proairesis para evitar o dilema de dizer que o “homem bom” obriga-se a desviar-se de seus apetites, ou que o “homem vil” obriga-se a desviar-se de sua razão.) Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão. Posso ser capaz de dizer “Não” para uma verdade a mim revelada, mas não posso de modo algum fazê-lo em termos racionais. Os apetites surgem automaticamente em meu CORPO, e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim; posso dizer “Não” a eles, aconselhado pela razão ou pela lei de Deus, mas a razão em si não me leva à resistência. (Duns Scotus, muito influenciado por Agostinho, elabora mais tarde esse argumento. Sem dúvida o homem carnal, no sentido em que Paulo o entendia, não pode ser livre; mas o homem espiritual tampouco é livre. Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar; o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitar-se a ele, mas deve também querer fazê-lo.) [Ver Étienne Gilson, Jean Duns Scot: introduction à ses positions fondamentales, Paris, 1952, p. 657.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A faculdade da Escolha, tão decisiva para o liberum arbitrium, aplica-se aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim, mas principalmente — e, em Agostinho, exclusivamente —, à escolha entre velle e nolle, entre querer e não-querer. Este nolle nada tem a ver com o querer-não-querer e não pode ser traduzido como “eu-deixo-de-querer”, porque isso sugere ausência de vontade. Nolle não é menos ativamente transitivo do que velle, e não é menos uma faculdade de vontade: se quero o que não desejo, trata-se de não-querer meus desejos; e posso do mesmo jeito não-querer o que a razão me diz estar certo. Em todo ato de vontade há um “eu-quero” e um “não-quero” envolvidos. São essas as duas vontades cuja discórdia Agostinho disse que “[lhe] dilacerou a alma”. Seguramente “aquele que quer, quer alguma coisa”, e este algo lhe é apresentado “exteriormente, através dos sentidos do CORPO, ou vem ao espírito por meios ocultos”; mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade [On Free Choice of the Will, livro III, cap. xxv]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Voltamos à questão da Vontade nas Confissões, que são quase totalmente não argumentativas e ricas no que hoje chamamos de descrições “fenomenológicas”. Pois embora Agostinho comece por conceituar a posição de Paulo, ele vai muito além, além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais — de que “querer e estar apto a executar não são a mesma coisa”, de que “a lei não poderia mandar se não houvesse vontade, nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente”, de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos, o dia tornando-se noite e a noite tornando-se dia, e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça, sobre a coragem somente por meio da covardia, e assim por diante. Refletindo sobre o que de fato acontecera durante o “combate ardoroso que travara consigo mesmo” antes de sua conversão, Agostinho descobriu que a interpretação que Paulo fazia de uma luta entre carne e espírito estava errada. Pois “meu CORPO obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma, movendo seus membros a um mínimo sinal, do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada” [Confessions, livro VIII, cap. viii]. Assim, o problema não estava na natureza dual do homem, metade carne e metade espírito: encontrava-se na própria faculdade da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
“De onde vem tal monstruosidade? E por que motivo? […] O espírito ordena ao CORPO e este imediatamente lhe obedece; o espírito dá uma ordem a si mesmo, ele resiste? […].” (“Unde hoc monstrum, et quare istud? Imperat ainimus corpori, et paretur statin; imperate animus sibi et resistitur?”) O CORPO não tem vontade própria e obedece ao espírito, embora ele seja diferente do CORPO. Mas quando “o espírito ordena ao espírito que ele queira”, ainda que seja “o mesmo espírito, ele não obedece. De onde provém esta monstruosidade? Qual a razão? Repito: o espírito ordena a si que queira algo — e se não quisesse, não ordenaria — e não executa o que lhe manda!” Talvez, prossegue Agostinho, isso possa ser explicado por uma certa fraqueza da vontade, uma falta de compromisso: talvez o espírito não queira “totalmente; portanto, tampouco ordena terminantemente […] e, portanto, não é o que manda”. Mas quem manda aqui, o espírito ou a vontade? Porventura o espírito (animus) ordena à vontade, e então hesita, de modo que a vontade não receba uma ordem clara? A resposta é não, pois é “a vontade [que] ordena que haja vontade; não uma outra vontade [como ocorreria se o espírito se dividisse entre vontades conflitantes], mas exatamente a mesma vontade” [Ibidem, cap. ix]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Devemos reter o seguinte: primeiro, a cisão dentro da Vontade é um conflito, não um diálogo, e independe do conteúdo daquilo que se quer. Uma vontade ruim não é menos dividida do que uma boa, e vice-versa. Segundo, a vontade, comandando o CORPO, não passa de um órgão executivo do espírito, e, como tal, não apresenta maiores problemas. O CORPO obedece ao espírito porque não possui qualquer órgão que torne possível a desobediência. A vontade, ao dirigir-se a si mesma, desperta a contravontade, porque o intercâmbio se dá completamente no espírito; uma competição só é possível entre iguais. Uma vontade que fosse “plena”, sem uma contravontade, já não poderia ser adequadamente chamada de vontade. Terceiro, uma vez que está na natureza da vontade ordenar e exigir obediência, está também na natureza da vontade resistir a si mesma. Finalmente, no quadro das Confissões, não se dá qualquer solução ao enigma dessa faculdade “monstruosa”; permanece um mistério a explicação de como a vontade, dividida contra si mesma, chega finalmente ao momento em que se torna “plena”. Se é esse o modo como a vontade funciona, como é que ela pode chegar a nos fazer agir — a preferir, por exemplo, o roubo ao adultério? Pois as “flutuações da alma” de Agostinho, flutuações entre muitos fins igualmente desejáveis, são muito diferentes das deliberações de Aristóteles, que envolvem não os fins, mas os meios para um fim que é dado pela natureza humana. Nas principais análises de Agostinho, semelhante árbitro final nunca aparece, a não ser no término das Confissões, quando ele subitamente começa a falar da Vontade como uma espécie de Amor, “o peso de nossa alma”, sem dar, entretanto, qualquer explicação para essa estranha identificação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O insight que mais se destaca no tratado Sobre a Trindade provém do mistério da trindade cristã. Pai, Filho e Espírito Santo, três substâncias quando cada uma está em relação consigo mesma, podem ao mesmo tempo formar uma Unidade, assegurando, assim, que o dogma não significa uma quebra do monoteísmo. A unidade se dá porque todas as três substâncias são “mutuamente predicadas em relação” umas com as outras, sem que com isso percam a existência “em sua própria substância” (não é esse o caso, por exemplo, quando uma cor e um objeto colorido são “mutuamente predicados” na relação que mantêm, pois “a cor não tem substância própria, uma vez que o CORPO colorido é uma substância, mas a cor está em uma substância” [Ibidem, livro IX, cap. iv]). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre “iguais”; portanto, não se pode aplicá-la à relação entre o CORPO e a alma, entre o homem carnal e o espiritual, embora eles sempre apareçam juntos — porque aqui a alma é obviamente o princípio governante. Para Agostinho, no entanto, o misterioso três-em-um tem que ser encontrado em algum lugar na natureza humana, uma vez que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança; e uma vez que é precisamente o espírito humano que distingue o homem de todas as outras criaturas, o três-em-um será provavelmente encontrado na estrutura do espírito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A força unificadora da Vontade não funciona só na atividade puramente espiritual; manifesta-se também na percepção sensorial. É esse elemento do espírito que dá significado à sensação. Em todo ato de visão, diz Agostinho, temos que “distinguir as três seguintes coisas […] o objeto que vemos […], e esse pode naturalmente existir antes de ser visto: em segundo lugar, a visão que não estava lá antes de percebermos o objeto […], e, em terceiro lugar, a força que fixa o sentido da visão no objeto, […] a saber, a atenção do espírito”. Sem esta última, uma função da Vontade, temos apenas “impressões” sensoriais, sem que realmente as percebamos; um objeto é visto somente quando concentramos nosso espírito na percepção. Podemos ver sem perceber e ouvir sem escutar, como acontece amiúde quando estamos distraídos. A “atenção do espírito” é necessária para transformar a sensação em percepção; a Vontade que “fixa o sentido na coisa vista, estabelecendo um nexo entre os dois, é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto visível; é espírito, e não CORPO”. [Ibidem, cap. ii, 2] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Além disso, ao fixarmos nosso espírito no que vemos ou ouvimos, estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado, e ao nosso intelecto, o que é para ser entendido, que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento. A memória e o intelecto retiraram-se das aparências exteriores, e não é com essas aparências em si (a árvore real) que lidam, mas com imagens (a árvore vista) que estão claramente dentro de nós. Em outras palavras, a Vontade, por meio da atenção, primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa; e então arrasta esse mundo exterior para dentro de nós, preparando-o para operações posteriores do espírito: para ser lembrado, para ser entendido, para ser afirmado ou negado. Pois as imagens internas não são absolutamente meras ilusões. “Ao nos concentrarmos com exclusividade nas imaginações internas, e ao voltarmos por completo o olho do espírito para longe dos corpos que cercam os nossos sentidos”, deparamos “com uma semelhança tão surpreendente das espécies corpóreas expressadas pela memória”, que é difícil dizer se estamos vendo ou simplesmente imaginando. “Tão grande é o poder do espírito sobre o seu CORPO” que a pura imaginação “pode despertar os órgãos genitais” [Ibidem, cap. iv, 7]. Esse poder do espírito deve-se não ao Intelecto, tampouco à Memória, mas somente à Vontade, que une a interioridade do espírito ao mundo exterior. A posição privilegiada do homem dentro da Criação, no mundo exterior, se deve ao espírito, que “imagina de dentro, e ainda assim imagina coisas que são de fora. Pois ninguém poderia usar tais coisas [do mundo exterior] […], a não ser que as imagens das coisas sensíveis ficassem retidas na memória, e a não ser […] que a mesma vontade [fosse] adaptada tanto aos corpos de fora quanto às suas imagens de dentro” [Ibidem, cap. v, 8]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Em Agostinho, assim como mais tarde em Duns Scotus, a solução do conflito interno da Vontade surge por uma transformação na própria Vontade, por sua transformação em Amor. A Vontade — vista em seu aspecto operatório e funcional como um agente de união, de ligação — pode também ser definida como Amor (voluntas: amor seu dilectio) [On the Trinity, livro XV, cap. xxi, 41], pois o Amor é obviamente o agente de ligação de maior êxito. No Amor, há novamente “três coisas: aquele que ama, aquilo que é amado e o Amor […]. [O Amor] é uma certa vida que liga […] duas coisas, aquele que ama e aquilo que é amado” [Ibidem, livro VIII, cap. x]. Do mesmo modo, a Vontade como atenção era necessária para efetuar a percepção, ligando aquele que tem olhos para ver aquilo que é visível; só que a força unificadora do Amor é mais forte. Pois aquilo que o Amor liga “está maravilhosamente unido”, de forma que haja uma coesão entre o que ama e o que é amado — “cohaerunt enim mirabiliter glutino amoris” [Ibidem, livro X, cap. viii, 11]. A grande vantagem da transformação é não só a maior força do Amor na unificação do que está separado — quando a Vontade, ligando “a forma do CORPO que se vê e a imagem que aparece ao sentido, isto é, ao sentido da visão […], é tão violenta que [mantém o sentido fixo na visão, uma vez que ela tenha se formado], esta vontade pode também ser chamada de amor, ou desejo, ou paixão” [Ibidem, livro XI, cap. ii. 5] —, mas vem também do fato de que o amor, ao contrário da vontade e do desejo, não se extingue quando alcança seu objetivo, mas sim possibilita ao espírito “permanecer imóvel para poder desfrutá-lo”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Os argumentos filosóficos, não para a predestinação, mas para a coexistência da vontade livre do homem e da onisciência de Deus, ocorrem em uma discussão do Timeu, de Platão. O conhecimento humano é de “vários tipos”; os homens conhecem de maneiras diferentes coisas que ainda não são, coisas que são e coisas que foram. [Mas] não é do nosso modo que Ele olha à frente para o que é futuro, nem para o que é presente ou, para trás, para o que é passado; é de uma maneira completa e profundamente diferente do nosso modo de pensar. Pois Ele não passa disso àquilo [seguindo em pensamento aquilo que se modificou do passado para o presente, para o futuro], mas vê na totalidade de maneira imutável; de modo que todas as coisas que [para nós] se erguem temporalmente — o futuro que ainda não é, bem como o presente que já é e o passado que não é mais — são por Ele compreendidas em presença estável e perpétua; tampouco Ele enxerga de modo diverso com os olhos do CORPO e com os olhos do espírito, pois Ele não é composto de espírito e CORPO: nem [Ele vê] de modo diferente o agora, o antes e o depois. pois seu conhecimento, ao contrário do nosso, não é um conhecimento de três tempos, presente, passado e futuro, através de cuja variação nosso conhecimento é afetado […]. Nem há qualquer intenção que passe de pensamento em pensamento em cuja intuição incorpórea todas as coisas que Ele conhece estão presentes de uma só vez. Pois Ele conhece todos os tempos sem noções temporais, exatamente como Ele move todas as coisas temporais sem movimentos temporais. [The City of God, livro XI, cap. xxi] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
É o caráter de individualidade do Homem que explica o fato de Agostinho dizer que não havia “ninguém” antes dele, isto é, ninguém que se pudesse chamar de “pessoa”; esta individualidade manifesta-se na Vontade. Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos, ambos “com temperamentos semelhantes do CORPO e da alma”. Como podemos distingui-los? O único dom que permite a distinção entre os dois é sua vontade — “se ambos são igualmente tentados e um cai na tentação enquanto o outro permanece impassível […] o que mais pode causar isso senão suas próprias vontades, nos casos […] em que o temperamento é idêntico?” [Ibidem, cap. vi] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Situando-se no momento decisivo — o início do século XIV — em que a Idade Média transformava-se em Renascimento, ele poderia ter dito o que Pico della Mirandola disse no final do século XV, em plena Renascença: “Sem compromisso com qualquer doutrina, percorri a filosofia de todos os mestres, investiguei todos os livros, conheci todas as escolas.” [Citado de Kristeller, op. cit., p. 58.] Só que Scotus não teria partilhado com os filósofos posteriores a confiança ingênua no poder persuasivo da razão. No centro de sua reflexão e no centro de sua misericórdia está a firme convicção de que, no que tange às questões que “dizem respeito a nosso fim e à nossa perpetuidade sempiterna, o homem mais culto e mais genial nada poderia conhecer pela razão natural” [Citado de Wolter, op. cit., p. 162. Tradução da autora.]. Pois “àqueles que não têm fé, a razão correta, como parece a si mesma, mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em CORPO quanto em alma” [Ibidem, p. 161. Trad. da autora]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Essa evidente fraqueza da razão natural jamais pode ser usada como argumento para a superioridade de faculdades irracionais no pensamento amadurecido do próprio Scotus; ele não era nenhum místico, e a noção de que “o homem é irracional” era para ele “impensável” (“incogitabile”) [Ibidem, p. 73]. Trata-se, aqui, segundo ele, da fronteira natural de uma criatura essencialmente limitada, cuja finitude é absoluta, “anterior a qualquer referência que venha a fazer a outra essência”. “Pois assim como um CORPO limita-se primeiramente em si mesmo por suas próprias extremidades, antes de ser limitado em relação a qualquer outra coisa […] também a forma finita é primeiro limitada em si mesma, antes de ser limitada em relação à matéria.” [Ibidem, p. 75] Essa finitude do intelecto humano — bastante semelhante àquela do homo temporalis de Agostinho — deve-se ao simples fato de que o homem enquanto homem não criou a si mesmo, embora seja capaz de multiplicar-se como outras espécies de animais. Logo, para Scotus, a questão nunca é como derivar (extrair, deduzir) a finitude da infinitude divina ou como ascender da finitude humana à infinitude divina, mas sim como explicar que um ser absolutamente finito possa conceber algo infinito e chamá-lo de “Deus”. “Por que motivo ao intelecto […] não repugna a noção de algo infinito?” [Ibidem, p. 72. Gilson sustenta que a própria noção de infinito é de origem cristã. “Os gregos, antes da Era Cristã, nunca conceberam a infinitude a não ser como uma imperfeição.” Ver The Spirit of Medieval Philosophy, p. 55.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Uma dúvida radical que rejeite o testemunho dos que presenciaram e que confie apenas na razão é impossível para o homem; trata-se de um simples artifício retórico do solipsismo, constantemente refutado pela própria existência daquele que duvida. Todos os homens vivem juntos na base sólida de uma fides acquisita, uma fé adquirida que têm em comum. O teste para os incontáveis fatos cuja fidedignidade sempre tomamos como certa é que façam sentido para os homens ao se constituírem. E, neste aspecto, o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma: uma criatura dotada de um CORPO e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece. As “provas” dos filósofos para a imortalidade da alma, mesmo quando logicamente corretas, seriam irrelevantes. Para que seja existencialmente relevante para o viator, o viajante ou peregrino na terra, a vida eterna deve ser uma “segunda vida”, e não um modo totalmente diferente de ser como uma entidade incorpórea. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Se, nesta vida, o milagre do espírito humano é que o homem possa, ao menos espiritual e provisoriamente, transcender suas condições terrenas e desfrutar da realidade pura de um exercício cujo fim está em si mesmo, então o milagre que se espera em uma vida eterna é o de que o homem seja, em toda a sua existência, espiritualizado. Scotus fala de um “CORPO glorificado” [Bettoni, Duns Scotus, p. 40], não mais dependente de “faculdades” cujas atividades são interrompidas ou pelo factivum, o fazer e o moldar objetos, ou pelos desejos de uma criatura necessitada — que conferem ambos um caráter transitório a toda atividade nesta vida, inclusive as atividades do espírito. Transformada em amor, a inquietação da vontade é abrandada mas não extinta; o poder duradouro do amor não é sentido como interrupção no movimento — assim como o fim da fúria de uma guerra é sentido como a calma da paz —, mas sim como a serenidade de um movimento que se autocontém, que se autorrealiza e é perene. Não aparecem aqui a calma e o prazer que se seguem a uma operação perfeita, mas sim a quietude de um ato repousado em seu fim. Nesta vida, sabemos de tais atos em nossa experientia interna, e, segundo Scotus, deveríamos ser capazes de compreendê-los como indicações de um futuro incerto em que eles durariam para sempre. A “faculdade de atuar se verá acalmada em seu objeto através do ato perfeito [o Amor] pelo qual ela o obtém”. [Utilizei, para minha interpretação, o seguinte texto latino, tirado da Opus Oxoniense IV, díst. 49, questão 4, números 5-9: “Si enim accipiatur” […] quietatio pro… consequente operationem perfectam, concedo quod illam quietationem praecedit perfecta consecutio finis; si autem accipiatur quietatio pro actu quietativo in fine, dico quod actus amandi, qui naturaliter praecedit delectationem, quietat illo modo, quia potentia operativa non quietatur in obiecto, nisi per operationem perfectam, per quam attingit obiectum.” [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Essa descrição, que toma o dois-em-um da Vontade, o “Eu” resistente e o “Eu” triunfante, como a fonte do poder da Vontade, deve sua plausibilidade à introdução inesperada do princípio de dor e de prazer na discussão: “Colocar prazer e desprazer como fatos principais.” [The Will to Power, n° 693, p. 369] Assim como a simples ausência de dor jamais pode causar o prazer, também a Vontade, se não tivesse que superar a resistência, jamais poderia alcançar poder. Aqui, seguindo involuntariamente as antigas filosofias hedonistas em vez do cálculo contemporâneo do prazer-dor, Nietzsche baseia-se, em sua descrição, na experiência de alívio da dor — não na mera ausência de dor ou na mera presença de prazer. A intensidade da sensação de alívio só se compara à intensidade da sensação de dor, e é sempre maior do que qualquer prazer desligado da dor. O prazer de beber o vinho mais delicioso não pode se comparar em intensidade ao prazer que um homem com uma sede desesperada sente ao tomar seu primeiro gole de água. Nesse sentido, há uma clara distinção entre o júbilo, independente e desligado das necessidades e dos desejos, e o prazer, a ânsia sensual de uma criatura cujo CORPO está vivo a ponto de necessitar de algo que não tem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
A Morte, por outro lado, que originalmente era real para o homem somente como a possibilidade mais extrema — “se fosse realizada [por exemplo, no suicídio], o homem obviamente perderia a possibilidade que tem de existir em face da morte” [Ibidem, n° 53, p. 261] —, transforma-se agora na “redoma” que “reúne”, “protege” e “salva” a essência dos mortais, que são mortais não porque sua vida tenha um fim, mas porque estar morto pertence ainda ao seu ser mais íntimo [Vorträge und Aufsätze, pp. 177 e 256]. (Essas descrições, que soam estranhas, referem-se a experiências bem conhecidas, atestadas, por exemplo, pela antiga máxima de mortuis nil nisi bonum. Não é a dignidade da morte enquanto tal que nos faz temê-la e respeitá-la, mas sim a curiosa mudança de vida para morte que acomete a personalidade dos mortos. Na lembrança — o modo como os mortais vivos pensam sobre seus mortos —, é como se todas as qualidades não essenciais perecessem com o desaparecimento do CORPO em que estavam encarnadas. Os mortos são postos na “redoma” da lembrança como relíquias preciosas deles mesmos.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]