abandono do ser

Seinsverlassenheit

O encobrimento pode ser ou não uma guarda que se recusa, uma guarda do próprio ser. Nele essencializa-se algo como um retirar-se do próprio ser, de tal modo, em verdade, que o ser permanece ao mesmo tempo sendo visualizado dessa forma – como o ser do ente. A retirada, com a qual o próprio ser se essencializa, não rouba o ser ao ente. Não obstante, o ente se encontra, justamente quando é um tal ente e é apenas assim, na retirada do ser mesmo. Nós dizemos: o ente é abandonado pelo próprio ser. O abandono do ser concerne ao ente na totalidade, não apenas ao ente do tipo do homem, que representa o ente enquanto tal e em cuja representação se lhe subtrai o ser mesmo em sua verdade.

O ser mesmo retira-se. A retirada acontece. O abandono do ser do ente enquanto tal acontece. Quando isso acontece? Agora? Hoje pela primeira vez? Ou há muito tempo? Há quanto tempo já? Desde que o ente enquanto o próprio ente chegou ao desvelamento. Desde que esse desvelamento acontece, a metafísica se dá; pois ela é a história desse desvelamento do ente enquanto tal. Desde que há essa história, há historicamente a retirada do ser mesmo, há o abandono do ser do ente enquanto tal, há a história, segundo a qual nada se dá com o ser mesmo. Desde então e de acordo com isso, o ser mesmo permanece impensado. [GA6T2; GA6MAC:712]


A consumação da metafísica erige o ente no abandono do ser. O abandono do ente por parte do ser é o último reflexo do ser como encobrimento do desencobrimento, no qual todos os entes de todos os tipos conseguem aparecer enquanto tais. O abandono do ser contém o elemento indecidido quanto a se o ente persiste em seu primado. Isso significa a partir de agora saber se o ente soterra e desenraíza toda e qualquer possibilidade de início no ser e, assim, continua impelindo para a frente o ente, conduzindo, porém, a uma desertificação que não destrói, mas sufoca o inicial no erigir e no ordenar. O abandono do ser contém o elemento indeciso quanto a se nele já se ilumina como um momento extremo do encobrimento do ser o desencobrimento desse encobrimento e, com isso, o início mais inicial. Para um tal período da indecisão, no qual a consumação da metafísica se desdobra e requisita a essência do homem para o “além-do-homem”, o homem apodera-se da posição daquilo que é propriamente real. A realidade efetiva do efetivamente real, há muito marcada como existência, atribui essa distinção ao homem. O homem é aquele que propriamente existe, e a existência determina-se a partir do ser homem, um ser homem cuja essência foi decidida no começo da metafísica moderna. [GA6T2; GA6MAC:799]


A tomada de posição correta em relação a estas proposições surge de uma renovada meditação da preleção. Ela deve examinar se o nada, que afina a angústia em sua essência, se esgota em uma vazia negação de tudo o que é ou se aquilo que jamais e em parte alguma é um ente se desvela como aquilo que se distingue de todo ente e que nós chamamos o ser. Qualquer que seja o lugar em que a [318] amplitude com a qual toda pesquisa explora o ente, em parte alguma ela encontra o ser. Ela nunca atinge senão o ente porque, antecipadamente, já na intenção de sua explicação, permanece junto ao ente. O ser, porém, não é uma qualidade ôntica do ente. O ser não se deixa representar e produzir objetivamente à semelhança do ente. O pura e simplesmente outro3 com relação ao ente é o não-ente. Este nada4, porém, não se essencia como ser. Com demasiada pressa renunciamos ao pensamento quando fazemos passar, em uma explicação superficial, o nada pelo puramente nulo e o igualamos ao que é desprovido de essência. Em vez de cedermos a essa pressa própria a uma perspicácia vazia e sacrificarmos a enigmática multivocidade do nada, devemos nos armar com a disposição única de experimentarmos no nada a amplidão daquilo que garante5 a todo ente ser. Isto é o próprio ser. Sem o ser, cuja essência abissal, mas ainda não desenvolvida o nada nos envia na angústia essencial, todo o ente permanecería na ausência de ser. Mas mesmo esta ausência de ser enquanto abandono do ser não é, por sua vez, um nada nulo; se é certo que à verdade do ser pertence o fato de que o ser6 nunca7 se essencia8 sem o ente, de que o ente jamais9 é sem o ser. [GA9; GA9GS:317-318]


Como ficariam as coisas, porém, se esse abandono do ser do ente fosse um acontecimento apropriativo, que provém do ente na totalidade; e isso de tal modo que precisamente esse acontecimento apropriativo se tornaria o que há de menos visível e experimentável, uma vez que ele é o que há de melhor velado e encoberto e que o progresso de toda maquinação e a certeza de si de todo vivenciar se sabem tão próximos da realidade efetiva e da vida que é difícil imaginar uma proximidade maior? Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente fosse o fundamento e a essência mais velados e mais próprios daquilo que Nietzsche reconheceu pela primeira vez como “niilismo”, interpretando-o platônico-schopen­hauerianamente a partir da “moral”, a partir do “ideal”, mas sem ainda concebê-lo metafisicamente? (Isso quer dizer: sem concebê-lo ainda a partir do acontecimento fundamental do questionamento inicial da filosofia ocidental e, com isso, sem partir, ainda, daquilo que aponta antecipadamente para o âmbito da superação propriamente dita do niilismo, uma vez mais iniciante.) Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente, o fato de que o ente ainda “é” e de que o ser e sua verdade permanecem recusados ao ente e, com isso, ao homem (a recusa, porém, ela mesma como essência do seer), se esse acontecimento apropriativo que provém do todo do ente fosse o fundamento velado da tonalidade afetiva fundamental ainda velada, que nos compelirá para o interior de uma outra necessidade de um outro questionamento e de um outro iniciar originários? Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente fosse acompanhado por aquela indigência inerente ao fato de que a essência da verdade e a questão acerca da verdade ainda não são nenhuma necessidade? Como ficariam as coisas se a indigência da falta de indigência e, de acordo com o seu domínio velado, a época da completa ausência de questionamento tivessem o seu fundamento no abandono do ser do ente? [GA45:§40; tr. Casanova]


Nossa indigência – ela tem raízes tão profundas que não se mostra como indigência alguma para ninguém. A ausência de indigência é o caráter mais agudo dessa indigência única, que vem se preparando há muito tempo na história. Uma vez que essa indigência não se mostra como indigência para ninguém, toda referência a ela permanece, de saída, incompreensível ou, de qualquer modo, amplamente passível de ser mal interpretada. Já designamos a indigência com um nome: o abandono do ser. Explicitamos essa denominação e dissemos: o homem histórico empreende, usa e transforma o ente, experimentando a si mesmo aí como um ente – e o seer do ente não o interessa, como se ele fosse o que há de mais indiferente. Pode-se mesmo seguir em frente, como os progressos e os sucessos o mostram, sem o seer, que apenas assombra, por vezes, como o último resíduo de uma sombra, a mera representação voltada para a ação e para a atuação e, por isso, já irreal. Se esse seer é tão nulo diante do ente palpável que nos acomete imediatamente, e se ele permanece de fora da experiência e do cálculo, mas, contudo, é imprescindível, então não se pode denominar isso abandono do ser. Pois só há abandono lá onde o que é pertinente é subtraído de nós.

Quando falamos de abandono do ser, reportamo-nos tacitamente ao fato de o seer pertencer e precisar pertencer ao ente para que o ente seja essente e o homem mais essente em meio ao ente. Por isso, o abandono do ser do ente só é experimentado como indigência quando alvorece a pertinência do seer ao ente e, com isso, se torna questionável o mero empreendimento do ente. Mas então – assim o parece – também já se superou a indigência ou, de qualquer modo, já se deu o primeiro passo para superá-la. Não. Nesse caso, a indigência apenas se desdobra e conquista aquela agudeza que torna uma decisão, sim, que torna a decisão incontornável: ou se rejeita, apesar da aurora da pertinência do ser ao ente, a questão acerca do seer e, em vez disso, se eleva a dimensões gigantescas, por toda parte, o empreendimento do ente, ou ganha poder e espaço aquele pavor que, a partir de então, não deixa mais que a pertinência do seer ao ente caia em esquecimento e que torna questionável todo mero empreendimento do ente. Mas essa justamente é a indigência da falta de indigência, o fato de permanecer indiferente se se chegará um dia a essa decisão. [GA45:Anexo, 6; tr. Casanova]


O seer (como acontecimento apropriador) precisa do ente, para que ele, o seer, se essencie. O ente pode “ser” ainda no abandono do ser, sob cujo domínio a tangibilidade e a utilidade imediata, assim como a funcionalidade de todo e qualquer tipo (tudo precisa servir ao povo, por exemplo) constituem obviamente o que é sendo e o que não é. [GA65:§10; tr. Casanova]


Abandono do ser: o fato de o seer abandonar o ente, entregando-o a si mesmo e deixando-o se transformar no objeto da maquinação. Tudo isso não é simplesmente “decadência”, mas é a primeira história do próprio seer, a história do primeiro início e do que é dele derivado e do que fica assim necessariamente para trás. Mas mesmo esse ficar para trás não é nenhum mero “negativo”. Ao contrário, ele traz à tona em seu fim pela primeira vez o abandono do ser, contanto que seja formulada a partir do outro início a pergunta acerca da verdade do seer e, assim, se inicie o ir ao encontro do primeiro início. [GA65:§52; tr. Casanova]


O abandono do ser é o fundamento e, com isso, ao mesmo tempo a determinação mais originária da essência daquilo que Nietzsche reconheceu pela primeira vez como niilismo. O quão pouco mesmo ele e sua força conseguiram impelir o ser-aí ocidental à meditação sobre o niilismo! Ainda menor, porém, é a esperança de que essa era traga à tona a vontade de saber sobre o fundamento do niilismo. Ou será que deveria emergir desse saber pela primeira vez a clareza quanto ao “fato” do niilismo? [GA65:§57; tr. Casanova]