AS TRADIÇÕES DAS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA
Podemos, tendo presentes as observações do P. Bochenski, tomar como ponto de partida uma observação de Émile Bréhier: estas filosofias são uma união do empirismo metafísico e do sentimento de inquietação humana. Nelas não encontramos uma definição, mas uma caracterização, e é o máximo a que podemos aspirar.
Empirismo, dizem-nos. E, para empregar um termo de Heidegger, o elemento de facticidade no qual insistirão estes filósofos, é o elemento de facto enquanto irredutível a toda a construção, a toda a interpretação metafísica. É uma espécie de empirismo bem diferente do empirismo vulgar, visto que se alia a uma afirmação de uma espécie de contingência metafísica, é num sentido metafísico.
Para estabelecer a tradição deste empirismo, poderíamos remontar a Schelling, que quis constituir, por oposição ao que ele chama filosofias negativas, como considera todas as filosofias racionais, uma filosofia positiva. Ora, sabe-se que Kierkegaard seguiu os cursos de Schelling em Berlim e que ficou entusiasmado durante um curto período pela referência que Schelling fazia à noção de existência nestes cursos.
De Schelling, podemos remontar a Kant. Na crítica do argumento ontológico, Kant insistiu no facto de a existência nunca poder ser deduzida da essência.
E poderíamos mesmo ir muito mais longe, até à polêmica de Aristóteles contra as ideias platônicas. Quando Aristóteles diz que a realidade é o indivíduo, podemos dizer que ele está na origem de uma parte destas tradições que conduzirão à filosofia da existência, principalmente se nos recordarmos de que o mesmo filósofo que diz que o indivíduo é a substância diz, por outro lado, que o indivíduo não pode ser reduzido aos gêneros e às espécies. Notemos, de passo, que Schelling se refere frequentemente a Aristóteles.
Mas esta é apenas uma das tradições da filosofia da existência. Recordemos que, segundo o que diz E. Bréhier, ela é um empirismo metafísico que se alia com um sentimento de inquietação humana. É que é necessário destacar uma outra tradição que seria uma tradição vulgarmente religiosa. Poderíamos filiá-la em certos irracionalistas do século xn, cuja influência se não fez sentir; poderíamos filiá-la em S. Bernardo. Poderíamos ir até St. Agostinho, e mesmo remontar a certos sentimentos expressos no Antigo Testamento. Podemos recordar a importância que Chestov concedia ao Livro de Job; chamava-lhe o pensador privado que medita na sua própria vida, por oposição ao professor de filosofia. Aliás, poderíamos igualmente ver elementos desta mesma tradição de inquietação religiosa num Pascal, no século XVII, num Hamann, no final do século XVIII.
Estas duas tradições, uma insistindo na facticidade, outra na afectividade, juntaram-se já várias vezes na história da filosofia, em Pascal precisamente, no final do século xvm em Jacobi e em Hamann, um pouco mais tarde em Schelling. E vemos já como a junção da categoria de facticidade e da categoria de emotividade ou de afectividade dá lugar a que surja a ideia de existência.
É necessário acrescentar mais alguns elementos aos que acabamos de mencionar para compreender as origens e o desenvolvimento da filosofia da existência.
Falamos do pensamento de Kierkegaard como estando na origem da filosofia da existência, mas é necessário não esquecer o pensamento de Nietzsche. É incontestável que em Heidegger, em Jaspers, e mesmo em Sartre, o pensamento de Nietzsche teve uma grande influência.
Alguns filósofos da existência quereriam igualmente que se fizesse menção à influência de Hegel. Mas, verdadeiramente, veremos principalmente Hegel como o adversário contra o qual se levantou a filosofia da existência, o pensamento da existência, particularmente na fase da sua formação. E não é menos verdade que na Fenomenologia do Espírito há um esforço para acompanhar o desenvolvimento concreto do espírito humano que pode encaminhar-se no sentido da filosofia da existência e estar em parte na sua origem. [O que Sartre e Merleau-Ponty querem dizer, quando falam da influência de Hegel, é que, particularmente na Fenomenologia do Espírito, se verifica um esforço para apreender não as doutrinas num estado abstracto, mas as doutrinas tais como são vividas, as doutrinas tais como são encarnadas nos momentos da História.
A dialéctica do senhor e do escravo, a consciência infeliz e muito? outros passos da Fenomenologia do Espírito estão, no pensamento de Sartre e de Merleau-Ponty, na origem do seu existencialismo. Haverá quem igualmente fale das tendências de juventude de Hegel. Mas é necessário não dar muita importância, pelo menos histórica, a esse jovem Hegel, desconhecido durante tanto tempo; e, por outro lado, os próprios elementos pré-kierkegaardianos, que serão integrados na filosofia hegeliana posterior, nela o foram de tal modo que perderam o seu caracter de protesto subjectivo.]
Antes das filosofias da existência desenvolveram-se na Alemanha, por um lado, as filosofias da vida, por outro lado, a fenomenologia. E seria interessante ver quais as semelhanças e as oposições entre as filosofias da existência e as filosofias da vida. Veremos simultaneamente parentescos e violentas oposições entre estas duas formas de pensamento que são as filosofias da vida e as filosofias da existência. As filosofias da vida, preocupadas principalmente em se oporem aos cortes que faziam na realidade e no ser humano as doutrinas filosóficas, insistiram nas duas ideias de unidade e de continuidade. As filosofias da vida eram demasiado fáceis ou, pelo menos, como tal se apresentavam. Mas as filosofias da existência talvez tenham separado algumas vezes de uma maneira demasiado absoluta e isolado uns dos outros os elementos entre os quais as outras filosofias afirmavam uma continuidade demasiado fácil.
Seria aqui o lugar próprio para falar do personalismo tal como o vemos nos filósofos influenciados por Scheler, particularmente em P. Landsberg e E. Mounier. Scheler, tendo partido da fenomenologia de Husserl, insistia na pessoa como centro de actos; sob a sua influência, Landsberg e Mounier estabelecem uma distinção radical entre a pessoa que está naturalmente em comunicação com outras pessoas e o indivíduo; dado que eles pensam que devemos reservar a palavra «indivíduo» para significar o isolamento e o caracter atômico por oposição à personalidade aberta.
Foi na escola de Husserl que se desenvolveu o pensamento de Heidegger. Seria demasiado longo investigar todos os elementos que, de Husserl, vêm até Heidegger. Seria necessário falar da ideia de intencionalidade, que, segundo Heidegger, só pode explicar-se pela ideia de transcendência tal como ele a compreende.
Há, evidentemente, profundas diferenças entre as filosofias da existência e a fenomenologia. Não é menos verdade que a ideia, essencial em Heidegger, de ser no mundo vem de Husserl. Não há dúvida de que Husserl propôs que se pusesse o mundo entre parêntesis; mas, por outro lado — e é o que Merleau-Ponty sublinha no prefácio da sua tese La Phénomenologie de la Perception (A Fenomenologia da Percepção) —, faz-nos tomar consciência de que finalmente isso é impossível e que todas as nossas ideias se fundamentam no que podemos chamar uma base antepredicativa que é o nosso ser no mundo. Além disso (pela aplicação da ideia de intencionalidade, não só ao pensamento, mas também ao sentimento, Husserl e Scheler preparavam o caminho às filosofias da existência.
Ê necessário, efectivamente, mencionar que entre os discípulos de Husserl houve Scheler, e que o pensamento de Scheler pode ser compreendido como uma espécie de transição entre a fenomenologia e a filosofia da existência.
Se considerarmos os títulos das duas obras principais de Heidegger e de Sartre — Sein und Zeit e L’Etre et le Néant —, vemos que a ideia de ser tem um grande lugar nas duas, e podemos acrescentar que a meditação de Jaspers dá igualmente um lugar de relevo a esta ideia. Diremos portanto que a tudo o que afirmamos é necessário juntar um elemento ontológico, que faz parte essencial, até nova indicação, do desenvolvimento das filosofias da existência.
Mas, relativamente à filosofia da existência, não temos só de considerar as origens puramente filosóficas, há a reflexão sobre grandes personalidades, sobre grandes existências, e poderíamos sublinhar o lugar que a meditação sobre Sócrates tem no pensamento de Kierkegaard, o lugar que a meditação sobre a própria vida de Kierkegaard e de Nietzsche tem no pensamento de Jaspers.
Por outro lado, poderíamos perguntar se as filosofias da existência não fazem parte de um movimento mais vasto característico da nossa época: nós ligamo-nos, mais ainda que às obras ou tanto como às obras, aos homens que as criaram. No final do século xix, a maneira de apreciar as obras de arte esteve muito mais estreitamente ligada que anteriormente a uma espécie de simpatia pelos esforços dos seus criadores. A admiração que temos pela obra de um Van Gogh ou de um Cézanne não pode ser separada do sentimento de que estamos em presença do seu esforço, de que estamos em presença de existentes ao mesmo tempo que de pintores. A subjectividade adquire uma importância crescente.
Como disse Helmut Kuhn, podemos considerar o movimento existencialista como fazendo parte de um movimento geral dos espíritos que se não restringe ao domínio filosófico. A concepção da crise nele inclusa é talvez, segundo a sua opinião, mais clara nos romances e nas novelas de Kafka ou nos dramas de Sartre do que nos tratados propriamente filosóficos; a náusea, diz-nos ele também, é melhor descrita por T. S. Elliot e W. H. Auden do que por Kierkegaard ou Heidegger. Sem perfilhar esta afirmação do autor de iEncounter mth Nothmgness (Encontro com o Nada), podemos pelo menos conservar do que ele nos diz a ideia de que o pensamento existencial excede o domínio propriamente filosófico.
Há um grande número de filósofos, além daqueles que mencionámos, que podemos classificar como filósofos da existência. Há Buber, Berdiaeff [Ouvi Berdiaeff dizer que ele era o verdadeiro existencialista e criticar muito severamente os outros, excepto Gabriel Marcel. Seria necessário um capitulo especial para Berdiaeff, como capítulos especiais para Chestov e para cada um dos outros.], Chestov, Unamuno. Mas, por mais importantes que sejam aqueles que acabamos de citar, limitar-nos-emos a Kierkegaard, Heidegger, Jaspers, Sartre e Gabriel Marcel.
Será necessário notar, em relação a cada um destes filósofos, influências particulares, das quais algumas vezes não demos conta falando das influências gerais. Por exemplo, em Jaspers, em Heidegger, encontra-se uma grande influência do pensamento kantiano. Em Jaspers encontra-se a influência de pensadores panteístas ou místicos, panteístas como Bruno, místicos como Plotino, e igualmente uma muito grande influência de Espinosa e de Schelling.