Seinsverlassenheit, abandon de l’être, abandono do ser, abandono del ser, abandonment of being
Por vezes, aqueles fundadores do abismo precisam ser consumidos no fogo do que se guarda, para que o ser-aí venha a ser possível para o homem e, assim, seja salva a constância em meio ao ente, para que o ente mesmo experimente a restauração no aberto da contenda entre terra e mundo. Consequentemente, o ente é voltado para o interior de sua constância por meio do ocaso dos fundadores da verdade do seer. Tal movimento é exigido pelo próprio seer mesmo. Ele precisa dos que experimentam o ocaso; e, onde quer que um ente apareça, o seer já sempre se a-propriou desses fundadores que perecem em meio ao acontecimento, já sempre os atribuiu a si mesmo. Essa é a essenciação do seer mesmo: nós a denominamos o acontecimento apropriador. A riqueza da ligação volteante do seer com o ser-aí que lhe é entregue apropriadoramente é imensurável. A plenitude do acontecimento da apropriação é incalculável. E somente algo muito diminuto pode ser dito aqui “sobre o acontecimento apropriador” nesse pensar inicial. O que é dito é questionado e pensado em uma “conexão de jogo” do primeiro e do outro início a partir da “ressonância” do seer; ele é questionado e pensado em meio à indigência do ABANDONO DO SER para o “salto” em direção ao interior do seer. Esse “salto” tem por fim promover a “fundação” da verdade do seer como a preparação dos “que estão por vir” e “do último deus”. Esse dizer pensante é uma diretiva. Essa diretiva indica o livre abrigo da verdade do seer em meio ao ente como algo necessário, sem ser, contudo, uma ordem. Tal pensamento jamais pode ser transformado em uma doutrina: ele se subtrai completamente ao acaso da opinião. Além do mais, ele só dá uma diretiva aos poucos e ao seu saber, quando o que importa é o resgate dos homens da barafunda do não-ente, lançando-os para o interior da maleabilidade à junção característica de uma criação reservada dos sítios que são determinados para o passar ao largo do último deus. Mas se o acontecimento apropriador perfaz a essenciação do seer, o quão perto está, então, o perigo de que ele recuse e precise recusar o acontecimento da apropriação porque o homem perdeu a força para o ser-aí, uma vez que a violência desencadeada do desvario em meio ao gigantesco o dominou sob a aparência da “magnitude”. No entanto, se o acontecimento apropriador se tornar recusa e denegação, isso significa apenas a retração do seer e o abandono do ente ao não-ente? Ou será que a denegação (o caráter de não do seer) pode se tornar no mais extremo o mais distante acontecimento da apropriação, posto que o homem conceba esse acontecimento apropriador e o horror do pudor o recoloque na tonalidade afetiva fundamental da retenção e, com isto, já o exponha para o ser-aí? (tr. Casanova; GA65: 2)
O espanto é a viagem de volta do caráter corrente do comportamento no familiar para a abertura do acometimento do que se encobre, em cuja abertura o que há até aqui de corrente se revela ao mesmo tempo como o estranho e como o agrilhoante. O que há de mais corrente, porém, e, por isto, mais desconhecido, é o ABANDONO DO SER. O espantar-se deixa que o homem volte ao fato de que o ente é, enquanto anteriormente o ente para ele era justamente o ente: o fato de que o ente é e de que esse – o seer – abandonou todo “ente” e o que assim se parecia, de que ele se retirou dele. Todavia, esse espanto não é nenhum mero recuo, nem tampouco a abdicação perplexa da “vontade”, mas, como nele precisamente o encobrir-se do seer se abre e o ente mesmo e a referência a ele se veem inclinados a serem conservados, se associa com esse espanto a partir dele mesmo a “vontade” que lhe é mais própria, e essa é aquilo que se denomina aqui a retenção. (tr. Casanova; GA65: 5)
O aceno já frequentemente reiterado, segundo o qual o “cuidado” só pode ser pensado na região inicial da questão do ser e não como uma visão qualquer, pessoalmente casual, marcada pela “visão de mundo” e por uma determinação “antropológica”, também permanecerá no futuro ineficaz, enquanto aqueles que só “escrevem” uma “crítica” da questão do ser não experimentarem e não queiram experimentar nada da necessidade do ABANDONO DO SER. Pois na era de um “otimismo” muito mal exposto, já o teor do termo “cuidado” e do “ABANDONO DO SER” soa por si só como “pessimista”. O fato, então, de precisamente as tonalidades afetivas indicadas por esse nome, juntamente com seu oposto, terem se tornado fundamentalmente impossíveis na região do questionamento inicial, porque elas têm por pressuposto a ideia de valor (agathon ) e as interpretações até aqui do ente tanto quanto a concepção corrente do homem, quem é que poderia levar sua meditação a tal ponto que isso pudesse se tornar ao menos uma questão? (tr. Casanova; GA65: 5)
Ser o que busca, o que vela, o que guarda – isto significa o cuidado enquanto traço fundamental do ser-aí. Em seu nome reúne-se a determinação do homem, na medida em que ele é concebido a partir de seu fundamento, isto é, a partir do ser-aí, o qual se encontra apropriado em meio ao acontecimento e imerso na viragem para o acontecimento apropriador enquanto para a essência do seer e só pode se tornar insistente por força de sua origem como fundação do tempo-espaço (“temporialidade”), a fim de transformar a indigência do ABANDONO DO SER na necessidade da criação como a restituição do ente. E nos juntando à junção do seer, nós nos encontramos à disposição dos deuses. A própria busca é a meta. E isto significa: “metas” estão ainda por demais ligadas ao primeiro plano e sempre continuam se colocando diante do seer – e soterram o necessário. À disposição dos deuses – o que isto significa? E se os deuses forem o indecidido, porque ainda resta em um primeiro momento recusada a abertura da deização? Aquela palavra significa: à disposição para o ser usado no descerramento desse aberto. E aqueles que determinam previamente pela primeira vez a abertura desse aberto e que precisam realizar a afinação sobre eles, na medida em que repensam a essência da verdade e a elevam ao nível de questão, esses são os que são mais duramente usados. À “disposição dos deuses” – isto significa: se encontrar – muito para além e para fora – para fora do caráter corrente do “ente” e de suas interpretações; pertencer aos que se acham mais ao longe, para os quais a fuga dos deuses permanece o mais próximo em sua mais ampla subtração. (tr. Casanova; GA65: 5)
Na essência da verdade do acontecimento apropriador decide-se e funda-se ao mesmo tempo todo verdadeiro, o ente se faz ente, o não ente desliza para o interior da aparência do seer. Essa distância é, sobretudo: a mais ampla e para nós primeira proximidade com deus, mas também a indigência do ABANDONO DO SER, encoberto pela ausência de indigência, que se atesta por meio do desvio em relação à meditação. Na essenciação da verdade do seer, no acontecimento apropriador e como acontecimento apropriador, encobre-se o último deus. (tr. Casanova; GA65: 7)
Ou há a possibilidade de que esse tresloucamento se abata sobre o homem? Com certeza. E esta é a indigência do ABANDONO DO SER. Essa indigência não carece em um primeiro momento de um auxílio, mas precisa se tornar antes por si mesma o elemento auxiliar. Mas essa indigência precisa ser de qualquer forma experimentada. E se o homem tiver se enrijecido contra ela e, como parece, de maneira tão tenaz quanto nunca até aqui? Então, precisam surgir os que despertam, que acham por fim que eles teriam descoberto a indigência, porque eles sabem que eles padecem da indigência. (tr. Casanova; GA65: 7)
A fuga dos deuses precisa ser experimentada e suportada. Essa constância funda a proximidade mais distante possível do acontecimento apropriador. Esse acontecimento apropriador é a verdade do seer. Nessa verdade abre-se pela primeira vez a indigência do ABANDONO DO SER. A partir dessa indigência, a fundação da verdade do ser e a fundação do ser-aí se tornam necessárias. Essa necessidade realiza-se na decisão constante, que atravessa de maneira dominante todo ser humano histórico: quer o homem seja futuramente alguém pertencente à verdade do ser e, assim, alguém que abriga a partir dessa copertinência e para ela a verdade como verdadeiro no ente, ou quer o começo do último homem expulse o homem para o interior da animalidade dissimulada e permaneça recusado para o homem histórico o último deus. O que acontecerá se a luta pelos critérios de medida tiver se extinguido, se o mesmo querer não quiser mais nenhuma grandeza, isto é, não apresentar mais nenhuma vontade da maior diversidade dos caminhos? (tr. Casanova; GA65: 8)
O seer se essencia como acontecimento apropriador. A essenciação tem o meio e a amplitude na viragem. A exportação resolutora de contenda e réplica. A essenciação é garantida e abrigada na verdade. A verdade acontece como o encobrimento clareador. A estrutura fundamental desse acontecimento é o tempo-espaço que emerge dele. O tempo-espaço é o que desponta para as mensurações da abertura do fosso abissal do seer. O tempo-espaço é, enquanto junção da verdade, originariamente o sítio instantâneo do acontecimento apropriador. O sítio instantâneo essencia-se a partir desse acontecimento como a contenda de terra e mundo. A contestação da contenda é o ser-aí. O ser-aí acontece nos modos do abrigo da verdade a partir da garantia do acontecimento apropriador clareado e velado. O abrigo da verdade deixa que o verdadeiro se abra e se dissimule como o ente. O ente se encontra pela primeira vez assim no seer. O ente é. O seer se essencia. O seer (como acontecimento apropriador) precisa do ente, para que ele, o seer, se essencie. O ente pode “ser” ainda no ABANDONO DO SER, sob cujo domínio a tangibilidade e a utilidade imediata, assim como a funcionalidade de todo e qualquer tipo (tudo precisa servir ao povo, por exemplo) constituem obviamente o que é sendo e o que não é. A autonomia aparente do ente em face do seer, como se este fosse apenas um suplemento do pensamento “abstrato” representacional, porém, não é nenhum primado, mas apenas o sinal do privilégio em relação à decadência que cega. Esse ente “real e efetivo” é concebido a partir da verdade do seer como o não-ente sob o domínio da inessência da aparência, cuja origem permanece aí encoberta. O ser-aí como a fundação da contestação da contenda em meio ao que é aberto por ela é cristalizado humanamente e sustentado na insistência que suporta o aí e que pertence ao acontecimento apropriador. O pensar do seer como acontecimento apropriador é o pensar inicial, que prepara como confrontação com o primeiro início o outro início. O primeiro início pensa o seer como presentidade a partir da presentação, que apresenta o primeiro reluzir de uma essenciação do seer. (tr. Casanova; GA65: 10)
1) Acontecimento apropriador: a luz segura da essenciação do seer no campo de visão extremo da mais íntima indigência do homem histórico. 2) O ser-aí: o entre aberto no meio e, assim, velador, entre a chegada e a fuga dos deuses e o homem nele enraizado. 3) O ser-aí tem a origem no acontecimento apropriador e em sua viragem. 4) Por isto, ele só pode ser fundado como a verdade e na verdade do seer. 5) A fundação – não recriação – é um deixar-ser-fundamento por parte do homem, que chega, com isto, pela primeira vez, uma vez mais a si e reconquista o ser-si-mesmo. 6) O fundamento fundado é ao mesmo tempo abismo para a abertura do fosso abissal do seer e não fundamento para o ABANDONO DO SER do ente. 7) A tonalidade afetiva fundamental da fundação é a retenção. 8) A retenção é a referência insigne, instantânea ao acontecimento apropriador no ser chamado por meio de seu conclamar. 9) O ser-aí é o acontecimento fundamental da história por vir. Esse acontecimento emerge do acontecimento apropriador e se torna um sítio instantâneo possível para a decisão sobre o homem – sua história ou não história como sua transição para o ocaso. 10) O acontecimento apropriador e o ser-aí estão em sua essência, isto é, em sua pertinência enquanto fundamento da história, ainda completamente velados e permanecerão por um longo tempo causando estranhamento. Faltam as pontes; os saltos ainda não foram levados a termo. Ainda permanece de fora a profundidade da experiência da verdade que lhes satisfazem e a meditação sobre o seu sentido: a força da decisão elevada. Em contrapartida, numerosas no caminho são apenas as ocasiões e os meios da má interpretação, porque falta mesmo o saber daquilo que aconteceu no primeiro início. (tr. Casanova; GA65: 11)
A questão de saber se somos pertencentes ao ser também é, de acordo com o que foi dito, em si a questão acerca da essência do seer. Essa questão acerca do pertencimento é uma questão decisiva entre o pertencimento a ser primeiro determinado e o ABANDONO DO SER como o enrijecimento com vistas ao não-ente como a aparência do ente. (tr. Casanova; GA65: 16)
A tonalidade afetiva do primeiro início é a ad-miração quanto ao fato de que o ente é, de que o homem mesmo sendo é, como sendo, naquilo que ele não é. A tonalidade afetiva fundamental do outro início é o es-panto. O espanto em meio ao ABANDONO DO SER e a retenção que se funda em tal espanto como algo criador. (tr. Casanova; GA65: 17)
“Pensar” na determinação habitual há muito tempo usual é o re-presentar de algo em sua idea como o koinon, re-presentar de algo no universal. Esse pensar, porém, está por um lado referido ao que se encontra presente à vista, ao que já se acha presente (uma determinada interpretação do ente). Deste modo, porém, ele é sempre ultenor, na medida em que não fornece senão o seu maximamente universal para o já interpretado. Esse pensar impera segundo diversos modos na ciência. A apreensão do “universal” é ambígua, sobretudo a caracterização do pensado como koinon visto não originariamente a partir dele mesmo, mas a partir dos “muitos”, do “ente” (enquanto me ón). O ponto de partida dos muitos e a referência fundamental a ele é decisiva e, de início, mesmo no interior do ponto de vista da consciência, de tal modo que ele é o “em face de que”, sem propriamente ser determinado e fundamentado de antemão propriamente em sua verdade. Essa verdade deve ser primeiro fundamentada pelo “universal”. Assim como essa concepção do pensamento deve ser, então, articulada com o estabelecimento e a conquista de “categorias” e assim como a “forma do pensamento” do enunciado se torna normativa. Esse pensar ainda foi um dia – no primeiro início – criativo junto a Platão e Aristóteles. Mas ele criou justamente o âmbito, no qual o representar do ente enquanto tal futuramente se manteve, no qual, então, o ABANDONO DO SER se desdobrou de maneira cada vez mais velada. (tr. Casanova; GA65: 27)
O que é concebido é aqui originariamente a “quintessência” e essa em primeiro lugar e sempre referida à conexão que acompanha a viragem em direção ao cerne do acontecimento apropriador. De início, o caráter paradigmático pode ser indicado por meio da ligação, que todo e qualquer conceito de ser enquanto conceito, isto é, em sua verdade, tem com o ser-aí e, com isto, com a insistência do homem histórico. Na medida, contudo, em que o ser-aí só se funda como pertencimento à conclamação na viragem do acontecimento apropriador, o mais íntimo da quintessência reside no conceito da própria viragem, naquele saber que, suportando a indigência do ABANDONO DO SER, se mantém na prontidão para a conclamação; naquele saber que fala, na medida em que antes silencia a partir da insistência suportadora no ser-aí. (tr. Casanova; GA65: 27)
A meditação do pensar inicial remonta a nós (mesmos) e, contudo, ao mesmo tempo não. Não a nós, para destacar a partir daí as determinações normativas, mas a nós como entes históricos e, em verdade, na indigência do ABANDONO DO SER (de saída decadência da compreensão de ser e esquecimento de ser). A nós, que já estamos estabelecidos assim na exposição ao ente, a nós dessa maneira, para encontrar para além de nós o ser si mesmo. (tr. Casanova; GA65: 30)
A conexão de jogo toma sua necessidade pela primeira vez da ressonância da indigência do ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 39)
A decisão é tomada por meio do fato de que a necessidade da missão mais extrema é experimentada a partir da indigência mais íntima do ABANDONO DO SER e é avalizada para o poder constante. (tr. Casanova; GA65: 45)
Todas essas possibilidades têm supostamente ainda sua longa história prévia, na qual elas permanecem ainda sem serem conhecidas e falsamente interpretáveis. De onde, porém, vem para a filosofia do futuro a sua necessidade e indigência? Ela mesma não precisa despertar – iniciando-se – pela primeira vez essa necessidade e essa indigência? Essa necessidade e essa indigência se encontram aquém da aflição e da preocupação, que sempre apenas contornam as coisas em um aceno qualquer do ente fixado e de sua “verdade”. Essa necessidade e essa indigência não têm, por outro lado, como ser suspensas e mesmo negadas por meio da arrumação de um suposto autodivertimento com os “milagres” do “ente”. Essa necessidade e essa indigência, enquanto fundamento da necessidade da filosofia, são experimentadas através do espanto no júbilo do pertencimento ao ser, júbilo esse que coloca no aberto como um aceno o ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 45)
(Ressonância) da essenciação do seer a partir do ABANDONO DO SER por meio da indigência impositiva do esquecimento do seer. Trazer à aparição de seu poder velado esse esquecimento por meio de uma lembrança como esquecimento e ver aí a ressonância do seer. O reconhecimento da indigência. A tonalidade afetiva diretriz da ressonância: horror e pudor, mas emergindo a cada vez da tonalidade afetiva fundamental da retenção. A mais extrema indigência: a indigência da falta de indigência. Deixar primeiro constituir-se a ressonância, sendo que muitas coisas precisam permanecer aí necessariamente incompreensíveis e inquestionáveis e, contudo, um primeiro aceno se torna possível. Que traço de uma linha simples do dizer precisa ser escolhido aqui e estabelecido sem uma consideração secundária? A ressonância precisa abarcar o todo do rasgo e, antes de tudo, ser dividida como contrajogo em relação à conexão de jogo. A ressonância para quem? Para onde? A ressonância da essenciação do seer no ABANDONO DO SER. Como é que esse ABANDONO DO SER deve ser experimentado? O que ele é? Ele mesmo emergido da inessência do seer a partir da maquinação. De onde provém essa inessência? Não, por exemplo, a partir da nulidade do seer; ao contrário! (tr. Casanova; GA65: 50)
O que significa maquinação? Maquinação e presentidade constante; poiesis – techne. Para onde conduz a maquinação? Para a vivência. Como é que isso acontece? (ens creatum – a natureza moderna e história – a técnica). Por meio do desencanto do ente, que dispõe o poder para um encantamento realizado por ele mesmo. Encantamento e vivência. A fixação definitiva do ABANDONO DO SER no esquecimento do ser. A era da completa inquestionabilidade e do caráter contrafeito em relação a toda fundação de metas. Medianidade enquanto nível hierárquico. A ressonância da recusa – em que som? (tr. Casanova; GA65: 50)
A ressonância do seer como recusa no ABANDONO DO SER do ente – isso já diz que aqui não deve ser descrito, explicado ou colocado em ordem algo presente à vista. O peso do pensamento é diverso no outro início da filosofia: o re-pensar daquilo que acontece apropriadoramente como o próprio acontecimento apropriador, trazendo o seer para a verdade de sua essenciação. Como, porém, no outro início, o seer se torna acontecimento apropriador, a ressonância do seer também precisa ser história, atravessar a história em um abalo essencial e poder dizer e saber ao mesmo tempo o instante dessa história. (Não são uma caracterização e uma descrição histórico-filosófica que se tem em vista aqui, mas um saber sobre a história a partir do instante e como o instante da primeira ressonância da verdade do próprio seer). E, de qualquer modo, o discurso soa como se só vigorasse a denominação do atual. O que é dito seria sobre a era da completa inquestionabilidade, que estende seu espaço de tempo subtemporalmente para além do atual de volta e muito para a frente. Nessa era, nada essencial – caso essa determinação em geral ainda tenha um sentido – é mais impossível ou inacessível. Tudo “é feito” e “se deixa fazer”, contanto que se tenha a “vontade” para tanto. O fato, porém, de ser precisamente essa “vontade”, que já estabeleceu e degradou de antemão aquilo que pode ser possível e, antes de tudo, necessário, já é de antemão desconhecido e deixado fora de toda e qualquer questão. Pois essa vontade, que faz tudo, se prescreveu de antemão a maquinação, aquela interpretação do ente como o re-presentável e re-presentado. Re-presentável significa por um lado: acessível no visar e no calcular; e significa, então: passível de ser trazido à tona na pro-dução e na execução. Tudo isso, porém, pensado a partir do fundamento: o ente enquanto tal é o re-presentado, e apenas o representado é ente. O que estabelece aparentemente uma resistência e um limite para a maquinação é, para ela, apenas a matéria prima para o trabalho ulterior e o impulso para o progresso, a ocasião para a extensão e a ampliação. No interior da maquinação, não há nada digno de questão, algo tal que pudesse ser honrado enquanto tal e honrado sozinho, e, com isso, iluminado e elevado ao nível da verdade. (tr. Casanova; GA65: 51)
O ABANDONO DO SER é o mais forte possível lá onde ele se esconde da maneira mais decidida. Isso acontece lá onde o ente se tornou e precisou se tornar o mais habitual e o mais habitado. Isso aconteceu em primeiro lugar no Cristianismo e em sua dogmática, segundo os quais todo ente é explicado em sua origem como ens creatum e onde o criador é o que há de mais certo, assim como todo ente se revela como o efeito dessa causa de todas a mais essente. A relação de causa e efeito, porém, é o que há de mais comum e mais tosco e próximo, aquilo de que busca auxílio todo cálculo e toda perdição humana em meio ao ente, a fim de explicar algo, ou seja, de voltar algo para o interior da clareza do que é comum e habitual. Aqui, onde o ente precisa ser o que há de mais habitual, o seer é necessariamente aquilo que se mostra tanto mais plenamente como habitual e como o que há de mais habitual. E como então, em verdade, o seer “é” o que há de mais inabitual, o seer se subtraiu aqui completamente e abandonou o ente. (tr. Casanova; GA65: 52)
ABANDONO DO SER do ente: o fato de o seer ter se retraído em relação ao ente e de o ente de início (em termos cristãos) ter se transformado naquilo que é feito pelo outro ente. O ente supremo como causa de todo ente assumiu a essência do seer. Esse ente feito outrora pelo Deus criador tornou-se, então, uma realização do homem, na medida em que agora o ente só é tomado e dominado em sua objetualidade. A entidade do ente esmaece e se transforma em uma “forma lógica”, no pensável de um pensamento ele mesmo não fundado. (tr. Casanova; GA65: 52)
ABANDONO DO SER: o fato de o seer abandonar o ente, entregando-o a si mesmo e deixando-o se transformar no objeto da maquinação. Tudo isso não é simplesmente “decadência”, mas é a primeira história do próprio seer, a história do primeiro início e do que é dele derivado e do que fica assim necessariamente para trás. Mas mesmo esse ficar para trás não é nenhum mero “negativo”. Ao contrário, ele traz à tona em seu fim pela primeira vez o ABANDONO DO SER, contanto que seja formulada a partir do outro início a pergunta acerca da verdade do seer e, assim, se inicie o ir ao encontro do primeiro início. Nesse caso se mostra: que o ser abandona o ente; ou seja: o seer se encobre na manifestabilidade do ente. E o seer é ele mesmo essencialmente determinado enquanto esse encobrimento que se retrai. (tr. Casanova; GA65: 52)
O ABANDONO DO SER: ele precisa ser experimentado como o acontecimento fundamental de nossa história e ser trazido ao saber – ao saber configurador e condutor. Para tanto, por sua vez, é necessário: 1) Que o ABANDONO DO SER seja lembrado em sua história longa e encoberta, na história que se encobre a si mesma. Não é suficiente o aceno para o atual; 2) Que o ABANDONO DO SER seja experimentado do mesmo modo como a indigência, que prepondera na transição para cá e que atiça essa transição como o a-cesso ao porvir. Mesmo a transição precisa ser experimentada em toda a sua amplitude e em todo o seu caráter multifacetado. (tr. Casanova; GA65: 52)
Ao ABANDONO DO SER pertence o esquecimento do ser e, do mesmo modo, a decomposição da verdade. (tr. Casanova; GA65: 54)
As duas coisas são no fundo a mesma. Não obstante, para compelir o ABANDONO DO SER enquanto indigência, tudo precisa ser respectivamente levado à meditação, para que a mais extrema indigência, a indigência da falta de indigência, irrompa e leve à primeira ressonância a mais longínqua proximidade com a fuga dos deuses. Ora, mas há uma demonstração mais forte do ABANDONO DO SER do que a massa humana que se esbalda no ingente e em sua instituição e que não é mais nem mesmo digna de encontrar a aniquilação em uma via de todas as mais curta? Quem pressente a ressonância de um deus em tal renúncia? (tr. Casanova; GA65: 54)
A ressonância da verdade do seer e de sua essenciação mesma a partir da indigência do esquecimento do ser. O alçar essa indigência a partir de sua profundidade enquanto ausência de indigência. O esquecimento do ser não sabe nada sobre ela, ele pensa estar junto ao “ente”, junto ao “efetivamente real”, próximo da “vida” e seguro do “vivenciar”. Pois ele conhece apenas o ente. Todavia, desse modo, em tal presentação do ente, esse ente é abandonado pelo seer. O ABANDONO DO SER, porém, é o fundamento do esquecimento do ser. No entanto, o ABANDONO DO SER do ente traz para o ente a aparência de que esse ente mesmo seria, então, sem qualquer necessidade de um outro, apto para ser pego e utilizado. O abandono do seer, contudo, é o ser exposto e a proibição do acontecimento apropriador. É a partir do ABANDONO DO SER que a ressonância precisa soar e ter início com o desdobramento do esquecimento do ser, no qual o outro início ressoa e, assim, o seer. (tr. Casanova; GA65: 55)
ABANDONO DO SER. O que Nietzsche reconheceu pela primeira vez e, com efeito, na orientação pelo platonismo como niilismo é, em verdade, visto a partir da questão fundamental que lhe é estranha, apenas o primeiro plano do acontecimento muito mais profundo do esquecimento do ser, que vem cada vez mais à tona precisamente na perseguição a encontrar a resposta para a questão diretriz. Mas mesmo o esquecimento do ser (sempre de acordo com a sua determinação) não é o envio destinamental mais originário do primeiro início, mas o ABANDONO DO SER, que talvez tenha sido o mais encoberto e o mais negado por meio do Cristianismo e de seus sucessores secularizados. Quanto ao fato de o ente enquanto tal ainda poder aparecer e de, contudo, a verdade do seer o ter abandonado, cf a despotencialização da physis e do ón como idea. Em que direção o ente enquanto tal é usado e abusado em tal aparição abandonada pelo ser (objeto e “em si”)? Atenta para a obviedade e nivelamento e para a própria incognoscibilidade do seer na compreensão de ser dominante. (tr. Casanova; GA65: 55)
ABANDONO DO SER. O que é abandonado pelo quê? O ente pelo seer que lhe pertence e que só lhe pertence. O ente aparece, então, desse modo, ele aparece para si como objeto e ente presente à vista, como se o seer não se essenciasse. O ente é o indiferente e o impertinente ao mesmo tempo, na mesma indecisão e arbitrariedade. (tr. Casanova; GA65: 55)
A ressonância do seer quer resgatar o seer em sua plena essenciação como acontecimento apropriador por meio do desentranhamento do ABANDONO DO SER, o que só acontece de tal modo que o ente é recolocado por meio da fundação do ser-aí no seer que se abre no salto. (tr. Casanova; GA65: 55)
No que o ABANDONO DO SER se anuncia: 1) A completa insensibilidade em relação ao múltiplo naquilo que é considerado essencial; plurissignificância provoca a perda de força e a má vontade em relação à decisão real e efetiva. Por exemplo, tudo o que significa a palavra “povo”: o elemento comunitário, o elemento racial, o baixo e o inferior, o nacional, o permanente; por exemplo, tudo aquilo que é chamado de “divino”. 2) O não saber mais o que é condição e o que é condicionado e incondicionado. Idolatria em relação às condições do seer histórico, do elemento populista, por exemplo, com toda a sua plurissignificância, transformando-o em algo incondicionado. 3) O permanecer preso no pensar e no estabelecimento de “valores” e “ideias”; sem qualquer questão séria, vê-se aí, como que em algo inalterável, a forma estrutural do ser-aí histórico; e a isso corresponde o pensar em termos de “visões de mundo”. 4) De acordo com isso, tudo é inserido em uma engrenagem “cultural”, as grandes decisões, o Cristianismo, não são expostos a partir da raiz, mas contornados. 5) A arte é submetida a uma utilidade cultural e desconhecida em sua essência; a cegueira em relação ao seu cerne essencial, o modo da fundação da verdade. 6) Em geral característico é o erro de avaliação em relação ao que é repulsivo e negador; ele é simplesmente alijado como o “mal”, equivocadamente interpretado e, com isso, apequenado e tanto mais propriamente ampliado em seu perigo. 7) Nisso se mostra – completamente à distância – o não saber em torno do pertencimento do não, da nulidade ao seer mesmo, a falta de qualquer ideia em face da finitude e da unicidade do seer. 8) Isso é acompanhado pelo não saber da essência da verdade; o fato de antes de tudo o que é verdadeiro a verdade e a sua fundação precisarem ser decididas; a busca cega pelo “verdadeiro” na aparência do querer maximamente sério. 9) Por isto, a recusa do saber autêntico e o medo diante da questão; o esquivar-se da meditação; a fuga em direção ao ceme dos dados e das maquinações. 10) Toda tranquilidade e toda retenção aparecem como inatividade, como um deixar passar e como renúncia e talvez sejam a mais ampla reconexão com o deixar ser do ser como acontecimento apropriador. 11) A segurança de si do que não se deixa mais conclamar; a calcificação contra todos os acenos; a impotência da expectativa; só ainda calcular. 12) Tudo isso são apenas irradiações de um encobrimento confuso e calcificado da essência do seer, sobretudo da abertura de seu fosso abissal: o fato de unicidade, raridade, instantaneidade, acaso e acometimento, retenção e liberdade, resguardo e necessidade pertencerem ao seer; o fato de esse seer não se mostrar como o que há de mais vazio e mais comum, mas como o que há de mais rico e mais elevado e só se essenciar no acontecimento da apropriação, acontecimento esse graças ao qual o ser-aí chega à fundação da verdade do ser no abrigo por meio do ente. 13) A elucidação particular do ABANDONO DO SER como decadência do Ocidente; a fuga dos deuses; a morte do Deus moral cristão; sua reinterpretação. O velamento desse desenraizamento por meio do encontrar a si mesmo que se inicia de maneira supostamente nova do homem (Modernidade); esse encobrimento banhado no brilho do e intensificado pelo progresso: descobertas, invenções, indústria, máquina; ao mesmo tempo a massificação, a negligência, a desertificação, tudo como desatrelamento do fundamento e das ordens; o desenraizamento, porém, como o mais profundo velamento da indigência, a falta de força para a meditação, a impotência da verdade; o pro-gresso em direção ao não ente como abandono crescente do seer. 14) O ABANDONO DO SER é o fundamento mais íntimo para a indigência da falta de indigência. Como é que essa indigência pode ser efetuada como indigência? Alguém não precisa deixar a verdade do seer brilhar – mas para quê? Quem dos desprovidos de indigência consegue ver? Haverá algum dia uma saída para tal indigência, que se nega constantemente como indigência? Falta o querer sair. Será que a lembrança das possibilidades do passado essencial (o sido) do ser-aí pode conduzir à meditação? Ou será que algo in-habitual, não ideável se choca com essa indigência? 15) O ABANDONO DO SER, aproximado por meio de uma meditação sobre a desertificação do mundo e sobre a destruição da terra no sentido da rapidez, do cálculo, da pretensão do massificado. 16) O “domínio” coetâneo da impotência da mera mentalidade e da violência da instituição. (tr. Casanova; GA65: 56)
O ABANDONO DO SER é o fundamento e, com isso, ao mesmo tempo a determinação mais originária da essência daquilo que Nietzsche reconheceu pela primeira vez como niilismo. O quão pouco mesmo ele e sua força conseguiram impelir o ser-aí ocidental à meditação sobre o niilismo! Ainda menor, porém, é a esperança de que essa era traga à tona a vontade de saber sobre o fundamento do niilismo. Ou será que deveria emergir desse saber pela primeira vez a clareza quanto ao “fato” do niilismo? (tr. Casanova; GA65: 57)
O ABANDONO DO SER determina uma era única na história da verdade do seer. Trata-se do longo tempo, no qual a verdade hesita entregar a sua essência à claridade. O tempo do perigo do passar ao largo de toda decisão essencial, o tempo da recusa à luta pelos critérios de medida. (tr. Casanova; GA65: 57)
O ABANDONO DO SER encobre-se na configuração crescente do cálculo, da velocidade e da pretensão do massificado. Nesse encobrimento esconde-se a inessência tenaz do ABANDONO DO SER, assim como esse encobrimento torna esse abandono inatacável. (tr. Casanova; GA65: 57)
3) A irrupção do massificado. Com isto, não se tem em vista apenas as “massas” em um sentido “social”; essas massas só ascendem porque o número já vigora e o calculável, isto é, o acessível a qualquer um da mesma maneira. O que é comum a muitos e a todos é, para os “muitos”, aquilo que eles conhecem como o pre-ponderante; por isso, a interpelação com vistas ao cálculo e à rapidez, assim como, inversamente, a adução realizada por esses do massificado em trilhos e quadros. Aqui a mais aguda oposição, porque a mais discreta, em relação ao raro, ao único (a essência do ser). Por toda parte nesses encobrimentos do ABANDONO DO SER, a inessência do ente se difunde, o não ente se expande e, em verdade, com a aparência de um “grande” acontecimento. A propagação desses encobrimentos do ABANDONO DO SER e, com isso, precisamente deles mesmos é o mais forte obstáculo, porque ao mesmo tempo um obstáculo que não tem de modo algum como ser notado, para a correta apreciação e fundação da tonalidade afetiva fundamental da retenção, na qual pela primeira vez a essência da verdade reluz, na medida em que a remoção para o interior do ser-aí acontece. Aqueles modos da estada no ente e de seu “domínio” são, porém, a tal ponto degradantes porque eles não gastam somente um dia, por exemplo, com formas aparentemente apenas externas que abarcam um interior. Eles colocam a si mesmos no lugar do interior e negam finalmente a diferença entre um interior e um exterior, uma vez que eles são o que há de primeiro e uma vez que eles são tudo o que há. A isso corresponde o modo como se alcança o saber, e a distribuição calculada, rápida e maciça de conhecimentos não compreendidos na maior quantidade possível e no menor tempo possível; “a escolaridade”, uma palavra, que coloca de ponta cabeça em seu significado atual precisamente a essência da escola e da schole. Mas mesmo isso é apenas um novo sinal da reviravolta, que não detém o desenraizamento crescente porque ela não chega às raízes do ente e não quer mesmo chegar até aí; porque se ela chegasse a essas raízes, ela precisaria se deparar com a sua própria ausência de solo. Ao cálculo, à rapidez e à massificação alia-se ainda um outro elemento que, ligado aos três de uma maneira acentuada, assume o encobrimento e a dissimulação da decomposição interior – esse elemento é: (O desnudamento, a publicização e a vulgarização da tonalidade afetiva) (tr. Casanova; GA65: 58)
4) O desnudamento, a publicização e a vulgarização da tonalidade afetiva. A essa desertificação criada por meio daí corresponde a inautenticidade crescente de toda e qualquer postura e, juntamente com isso, a despotencialização da palavra. A palavra só continua se mostrando como o invólucro e como a excitação tonitruante, junto à qual não se pode mais ter em vista um “sentido”, porque se retira todo o poder de reunião de uma meditação possível e se despreza a meditação em geral como algo estranho e impotente. Tudo isso se torna tanto mais sinistro, quanto menos impertinentemente ele se desenrola, quanto mais obviamente ele se apossa do cotidiano e é coberto por assim dizer por novas formas da instituição. A consequência do desnudamento da tonalidade afetiva, que é ao mesmo tempo a dissimulação do vazio crescente, se mostra completamente na incapacidade de experimentar precisamente o acontecimento propriamente dito, o ABANDONO DO SER, como indigência afinadora, supondo mesmo que ele poderia ser mostrado em certos limites. (tr. Casanova; GA65: 58)
5) Todos esses sinais do ABANDONO DO SER apontam para o começo da era da completa ausência de questão de todas as coisas e de todas as maquinações. Não apenas que não se admite mais fundamentalmente nenhum elemento velado, mas o que se torna mais decisivo é o fato de que o encobrir-se enquanto tal ainda não encontra de maneira alguma ensejo enquanto poder determinante. Na era da completa ausência de questão, porém, precisamente os problemas se acumulam e se caçam, aquele tipo de “questões”, que não são questão alguma, porque sua resposta não pode ter nada obrigatório, na medida em que essa resposta sempre se transforma uma vez mais em problema. Justamente isso diz de antemão: nada é indissolúvel e a dissolução é apenas uma questão de número em termos de tempo, espaço e força. (tr. Casanova; GA65: 58)
A constante elevação de nível do mediano e, paralelamente, o alargamento e propagação dos níveis até a plataforma de toda funcionabilidade em geral é o sinal mais inquietante do desaparecimento dos espaços de decisão, é sinal do ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 59)
A ausência de indigência se torna a mais elevada possível, lá onde a certeza de si mesmo se tornou inexcedível, lá onde tudo é considerado como calculável e onde antes de tudo se decide, sem questão prévia, quem nós somos e o que nós devemos ser; lá onde se perdeu o saber e onde esse saber nunca foi fundamentado propriamente, de tal modo que o ser si mesmo propriamente dito acontece no fundar para além de si, o que exige: a fundação do espaço da fundação e de seu tempo, o que requer: o saber da essência da verdade como o que incontornavelmente precisa ser sabido. Onde, porém, a “verdade” há muito tempo não se mostra mais como questão e a tentativa de tal questão é rejeitada como perturbação e como um permanecer ao largo meditabundo, aí a indigência do ABANDONO DO SER não encontra de modo algum um tempo-espaço. Onde a posse do verdadeiro como o correto se encontra fora de questão e dirige todo fazer e todo deixar de fazer, em que medida ainda haveria aí espaço para a questão acerca da essência da verdade? E onde essa posse do verdadeiro pode até mesmo se reportar aos fatos, quem gostaria de se perder aí ainda na inutilidade de uma questão essencial e se expor ao escárnio? A partir do soterramento da essência da verdade como o fundamento do ser-aí e da fundação da história emerge a ausência de indigência. (tr. Casanova; GA65: 60)
1) A copertinência entre maquinação e vivência. 2) A raiz comum das duas. 3) Em que medida elas consumam a dissimulação do ABANDONO DO SER. 4) Por que o conhecimento de Nietzsche do niilismo precisou permanecer inconcebido. 5) O que desentranha – uma vez reconhecido – o ABANDONO DO SER acima do seer ele mesmo? A origem do ABANDONO DO SER. 6) Por que via o ABANDONO DO SER precisa ser experimentado como a indigência? 7) Em que medida já é necessário para tanto a transição para a superação? (Ser-aí) 8) Por que é que só para essa transição a poesia de Hölderlin se torna vindoura e, com isso, histórica? (tr. Casanova; GA65: 62)
A entidade como: Maquinação e correção « (Essenciação da entidade) « (Vivência (ABANDONO DO SER: Ausência de indigência; Ressonância da essenciação do seer; No ABANDONO DO SER; Maquinação (« recusa) » vivência (« Solidificação; Encantamento) + Encantamento) (tr. Casanova; GA65: 65)
Na essência das duas reside o fato de elas não conhecerem nenhum limite e, antes de tudo, nenhum impasse e nenhum pudor. A força do resguardo é o que se acha delas mais distante. Em seu lugar entrou o exagero e o grito sempre mais alto, assim como o mero berrar cego com alguém, em cujo grito se grita consigo mesmo e se imagina ilusoriamente livre do esvaziamento do ente. De acordo com a sua ausência de limites e de impasses, tudo está aberto para a maquinação e para a vivência e nada é para elas impossível. Elas precisam se arrogar como sendo na totalidade e como o duradouro, e, por isso, nada lhes é tão corrente quanto o “eterno”. Tudo é “eterno”. E o eterno – esse eterno – como é que ele não deveria ser o essencial? Mas se ele é o essencial, o que consegue ainda ser chamado contra ele? Será que há alguma forma de resguardar melhor a nulidade do ente e o ABANDONO DO SER sob a máscara da “verdadeira realidade efetiva” do que por meio da maquinação e da vivência? (tr. Casanova; GA65: 65)
O modo como a maquinação e a vivência (de início veladas por um longo tempo, sim, veladas até agora enquanto tais) se impelem mutuamente até o extremo e, com isso, desdobram os deslocamentos da entidade e do homem em sua referência ao ente, desenvolvendo a si mesmas segundo o seu mais extremo abandono, compelindo-se agora reciprocamente nesses deslocamentos e criando uma unidade, que com maior razão encobre aquilo que acontece apropriadoramente nela: o abandono do ente por toda verdade do seer e completamente até mesmo pelo seer mesmo. Mas esse acontecimento apropriador do ABANDONO DO SER seria mal interpretado, caso se quisesse ver aí um processo de decadência, ao invés de refletir que ele atravessa os modos próprios e únicos da descoberta do ente e de sua “pura” objetivação em um determinado fenômeno, aparentemente desprovido de pano de fundo e em geral sem fundamento. A emergência do “natural”, a aparição das coisas mesmas, à qual pertence efetivamente aquela aparência do sem fundamento. Esse elemento “natural” claramente não possui mais nenhuma referência imediata à physis, mas está colocado completamente sobre o maquinal, sendo contra tal referência com certeza preparado pelo predomínio outrora vigente do sobrenatural. Essa descoberta do “natural” (por fim, do factível, do dominável e do vivenciável) precisa se esgotar um dia em suas próprias riquezas e se solidificar em uma mistura cada vez mais desértica das possibilidades até aqui, de tal modo, em verdade, que esse apenas-continuar-fazendo-como-se-fazia-até-então não sabe e não pode saber senão cada vez menos sobre si no que ele é, e aparece tanto mais criativamente para si mesmo, quanto mais ele empreende o seu fim. (tr. Casanova; GA65: 68)
(O gigantesco) De início precisamos caracterizar o gigantesco a partir do que há de mais imediato e mesmo ainda como algo objetivamente presente à vista, a fim de deixar ressoar em geral o ABANDONO DO SER e, com isso, o domínio da in-essência da physis (da maquinação). No entanto, logo que a maquinação é concebida por sua parte em termos da história do ser, desentranha-se o elemento gigantesco como “algo” diverso. Ele não se mostra mais como o elemento objetual re-presetável de algo “quantitativo” ilimitado, mas a quantidade é que se revela como qualidade. Qualidade é aqui visada como caráter fundamental do quale, do quid, da essência, do seer mesmo. (tr. Casanova; GA65: 70)
A partir daqui fica claro uma vez mais que aqueles que levam a termo o desdobramento da re-presentação (do mundo como imagem), graças à sua “autoconsciência” não sabem nada dessa essência do quantitativo e, por isso, também não sabem nada da história, que prepara e consuma seu domínio. E eles já não sabem nada do fato de que o ABANDONO DO SER do ente se consuma no gigantesco enquanto tal, isto é, na aparência daquilo que deixa todo ente ser da maneira mais essente possível. (tr. Casanova; GA65: 70)
O niilismo no sentido de Nietzsche significa: que todas as metas desapareceram. Nietzsche tem em vista aqui as metas que crescem em si e que transformam o homem (para onde?). O pensar em “metas” (o há muito tempo mal interpretado telos dos gregos) pressupõe a idea e o “idealismo”. Por isto, apesar de sua essencialidade, essa interpretação “idealista” e moral do niilismo permanece provisória. Se tivermos em vista o outro início, o niilismo precisa ser concebido de maneira mais fundamental como a consequência essencial do ABANDONO DO SER. Como é, porém, que esse abandono do seer pode chegar a ganhar o espaço do conhecimento e a se decidir, se já aquilo que Nietzsche experimentou e pensou integralmente pela primeira vez como niilismo permaneceu até agora inconcebido e, antes de tudo, não nos coagiu à meditação? Tomou-se conhecimento da “teoria” nietzschiana sobre o “niilismo” como uma psicologia da cultura interessante, mas antes disso as pessoas fizeram o sinal da cruz diante de sua verdade, isto é, elas mantiveram aberta ou tacitamente essa verdade afastada do corpo como algo diabólico. Pois é assim que se encontra formulada a reflexão elucidativa: aonde é que chegaríamos se isso fosse verdadeiro e viesse a se tornar verdadeiro? E não se pressente que justamente essa reflexão ou a atitude que a sustenta e o comportamento em relação ao ente é que constituem o niilismo propriamente dito: não se quer admitir a ausência de metas. E, por isso, se tem uma vez mais “metas”, ainda que essas metas não apontem senão para o fato de que o que pode ser em todo caso um meio para o estabelecimento de metas e para a sua persecução é alçado à categoria de uma meta: o povo, por exemplo. E, por isso, justamente lá onde se acredita ter uma vez mais metas, lá onde se é uma vez mais “feliz”, lá onde se passa a tornar uniformemente acessível a todo o “povo” os “bens culturais” até aqui vedados à “maioria” (cinemas e viagens para banhos de mar), precisamente aí, nessa embriaguês “vivencial” barulhenta, é que está o maior de todos os niilismos, o fechar os olhos organizado ante a ausência de metas do homem, o desviar “sempre pronto a entrar em ação” diante de toda decisão que estabeleça uma meta, o medo diante de toda e qualquer região de decisão e de sua abertura. O medo diante do seer nunca foi tão grande quanto hoje. Prova: a instituição gigantesca para que o grito ofusque esse temor. A característica essencial do “niilismo” não depende de se igrejas e monastérios são destruídos e se homens são mortos aí ou se isso é reprimido e o “cristianismo” pode seguir o seu caminho, mas o decisivo é: se se sabe e se quer saber que precisamente essa tolerância do Cristianismo e o Cristianismo mesmo, que o discurso geral sobre a “providência” e o “senhor Deus”, por mais sincero que ele possa vir a ser para o particular, são apenas desvios e impasses no âmbito que não se quer reconhecer como o âmbito de decisão sobre o seer e o não seer e se deixar assim fazer valer. O niilismo de todos o mais fatídico consiste no fato de que podemos nos fazer passar por protetores do Cristianismo e até mesmo requisitar para nós com base em realizações sociais o caráter cristão de todos o mais cristão. Esse niilismo tem toda a sua periculosidade no fato de que ele se esconde completamente e se destaca agudamente e com razão daquilo que se poderia chamar o niilismo tosco (o bolchevismo). A questão é que a essência do niilismo é justamente tão abissal (porque ele desce e alcança a verdade do seer e a decisão sobre ela), que precisamente essas formas de todas as mais opostas podem e precisam lhe pertencer. E, por isso, pode parecer que, computado no todo e de maneira minuciosa, o niilismo seria insuperável. Se as duas formas opostas mais extremas do niilismo se combatem, em verdade, de maneira necessária do modo mais intenso possível, então essa luta conduz de um modo ou de outro para a vitória do niilismo, isto é, para uma solidificação renovada; e isso supostamente sob a figura, segundo a qual as pessoas proíbem a si mesmas de algum dia ainda achar que o niilismo ainda estaria em obra. (tr. Casanova; GA65: 72)
O seer abandonou tão fundamentalmente o ente e esse é a tal ponto entregue à maquinação e ao “vivenciar”, que necessariamente aquelas tentativas aparentes de salvação da cultura ocidental, assim como toda “política cultural”, precisam se tornar a figura mais insidiosa, e, com isso, a figura mais elevada do niilismo. E esse é um processo que não está articulado com homens particulares e suas ações e doutrinas, mas que apenas expulsa a essência interna do niilismo para o interior da mais pura figura que lhe é atribuída. A meditação sobre isso carece naturalmente já de um ponto de vista, a partir do qual nem uma ilusão por parte das coisas muito “boas”, “progressistas” e “gigantescas”, que são realizadas, nem mesmo um mero desespero vem à tona, desespero esse que só não fechou os olhos ainda diante da completa ausência de sentido. Esse ponto de vista, que funda ele mesmo para si de maneira nova pela primeira vez tempo e espaço, se mostra como o ser-aí que ganha de modo primordial o saber sobre o seer ele mesmo como a recusa e, com isso, como o acontecimento apropriador. Na experiência fundamental de que o homem como fundador do ser-aí é usado pela divindade do outro deus abre-se a preparação da superação do niilismo. Mas o elemento mais incontomável e mais pesado nessa superação é o saber sobre o niilismo. Esse saber não pode permanecer preso nem à palavra, nem à primeira elucidação do que se tem em vista por meio de Nietzsche, mas é preciso reconhecer como a sua essência o ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 72)
O ABANDONO DO SER é a consequência de início previamente conformada da interpretação da entidade do ente a partir do fio condutor do pensar e da precipitação primeva, condicionada por meio daí, da aletheia não fundada expressamente. Como, então, contudo, na Modernidade e enquanto Modernidade, a verdade assume a figura da certeza, como essa certeza se firma sob a forma do pensar, que pensa a si mesmo imediatamente, do ente como aquilo que se encontra contra-posto re-presentado, e como a fundamentação da Modernidade consiste na fixação desse elemento fixo; além disso, como essa certeza do pensar se desdobra na instituição e no empreendimento da “ciência” moderna, o ABANDONO DO SER (e, isto significa, a retenção da aletheia até a sua coação a se manter reprimida em meio ao esquecimento) é decidido concomitantemente pela ciência moderna, e, em verdade, sempre apenas, na medida em que ela pretende ser um ou até mesmo o saber normativo. Por isto, uma meditação sobre a ciência moderna e sobre a sua essência maquinalmente enraizada no interior da tentativa de um aceno para o ABANDONO DO SER como ressonância do seer é incontornável. (tr. Casanova; GA65: 73)
Nisso reside ao mesmo tempo: a meditação assim configurada sobre a ciência ainda é a única meditação filosoficamente possível, contanto que a filosofia já se movimente na transição para o outro início. Todo e qualquer tipo de fundamentação científico-teórica (transcendental) se tornou tão impossível quanto uma “dotação de sentido”, que atribui à ciência presente à vista e, com isso, não alterável em sua consistência essencial, tanto quanto ao seu funcionamento, o estabelecimento de uma meta populista e política ou de alguma outra meta antropológica. Essas “fundamentações” se tornaram impossíveis, porque elas pressupõem necessariamente “a ciência” e, então, só são dotadas com um “fundamento” (que não é fundamento algum) e um sentido (para o qual falta a meditação). Por meio daí, “a ciência” e, com isso, a solidificação do ABANDONO DO SER empreendida por ela se tornaram, com maior razão, definitivas. Assim, toda e qualquer questão acerca da verdade do seer (toda filosofia) é alijada do âmbito do agir como desnecessária e como realizada sem necessidade. Mas precisamente esse alijamento da possibilidade (da possibilidade interna) de toda e qualquer meditação sobre o pensar enquanto pensar do seer, porque ele não possui a menor ideia do que ele mesmo faz, é impelido a mexer com maior razão com as formas de pensamento, os meios de pensamento e as regiões de pensamento da metafísica até aqui pegos sem escolha com vistas à produção de uma bebida “ligada à visão de mundo”, e a aprimorar a filosofia passada e a se comportar em tudo isso “de maneira revolvida”; revolvimento esse que (equivalendo a uma instituição de todos os lugares comuns possíveis) merece ser chamado simplesmente de “revolucionário” em comparação com a ausência de veneração insuperável em relação aos grandes pensadores. Veneração é naturalmente algo diferente de elogio e de deixar viger por “seu” tempo, caso alguém quisesse se reportar a algo desse gênero. (tr. Casanova; GA65: 73)
A meditação sobre “a ciência”, que tem de ser fixada em uma série de sentenças diretrizes, precisa destacar algum dia esse nome da indeterminação histórica característica da equiparação arbitrária com episteme, scientia, Science, fixando-a com vistas à essência moderna da ciência. Ao mesmo tempo, a subespécie que se firmou na ciência, a subespécie da aparência de saber (como resguardo da verdade), precisa se tornar clara e a ciência precisa ser perseguida até as instituições e os estabelecimentos de funcionamento que pertencem necessariamente à sua essência maquinal (a “universidade” atual). Para a caracterização da essência dessa ciência, na medida em que a ligação com o “ente” é vislumbrada, a distinção agora corrente entre ciências históricas e ciências exatas experimentais é diretriz, apesar de essa distinção, assim como a distinção que emerge dela entre “ciências da natureza e ciências do espírito”, só ser uma distinção de primeiro plano e só encobrir propriamente de maneira precária a essência una das ciências que, em aparência, são fundamentalmente diversas. A meditação não é válida inteiramente para uma descrição e uma clarificação dessas ciências, mas para a solidificação realizada através delas e nelas do ABANDONO DO SER, em suma, da ausência de verdade de toda ciência. (tr. Casanova; GA65: 73)
23) A “ciência” empreende, assim, o asseguramento do estado de uma completa ausência de necessidade no saber e permanece, por isso, na era da completa ausência de questões, constantemente “o que há de mais moderno”. Todas as finalidades e utilidades se encontram fixadas, todos os meios estão à mão, todos os benefícios são realizáveis: só falta ainda superar diferenças de grau de refinamento e criar para os resultados a maior amplitude possível da mais simples utilização. A meta velada, à qual cabe tudo isso e todo o resto, sem pressentir e poder pressentir minimamente isso, é o estado do tédio completo na esfera das conquistas mais próprias, que um dia não poderão mais esconder o caráter do tédio, caso tenha permanecido, então, ainda um resto de força de saber, a fim de se espantar ao menos nesse estado e de desentranhar esse estado mesmo e o ABANDONO DO SER do ente que boceja aí. (tr. Casanova; GA65: 76)
O acontecimento da questão acerca do ente enquanto tal, o acontecimento do questionamento da entidade é em si uma determinada abertura do ente enquanto tal, de tal modo que o homem experimenta aí a sua determinação essencial, que emerge dessa abertura (homo animal rationale). Mas o que é que essa abertura do ente abre sobre a entidade e, com isso, sobre o seer? Carece-se de uma história, isto é, de um início e de suas ascendências e progressos, a fim de deixar que se experimente (para os que perguntam e são iniciantes) o fato de que pertence à essência do seer a recusa. Esse saber é, porque ele desce e pensa o niilismo ainda mais originariamente em meio ao ABANDONO DO SER, a superação propriamente dita do niilismo, e a história do primeiro início é arrancada, assim, completamente da aparência de em vão e de mera errância; agora pela primeira vez a grande iluminação se abate sobre toda a obra pensante até aqui. (tr. Casanova; GA65: 87)
Somente a posição distante em relação ao primeiro início torna possível experimentar o fato de que aí e, em verdade, necessariamente, a questão acerca da verdade (aletheia) permaneceu inquestionada e de que esse não acontecimento determinou de antemão o pensar ocidental em relação à “metafísica”. E só esse saber joga ao nosso encontro a necessidade de preparar o outro início e de experimentar no desdobramento dessa prontidão a indigência mais própria em sua plena claridade, o ABANDONO DO SER que, profundamente velado, é a contraparte daquele não acontecimento e que, por isto mesmo, não pode ser de maneira alguma explicado a partir de inconvenientes e de cochilos de hoje e ontem. (tr. Casanova; GA65: 91)
Que, em contrapartida, aquilo que se segue ao primeiro início é colocado em uma hesitação e tem de suportar uma renúncia do ser até o ABANDONO DO SER? (tr. Casanova; GA65: 100)
23) O platonismo, em seu domínio manifesto e velado, voltou o ente na totalidade, tal como ele foi considerado e determinado no transcurso da história ocidental, para uma determinada constituição, transformando determinadas direções de representação em caminho óbvios de “questionamento”. E esse é o obstáculo propriamente dito para a experiência e o salto para o interior do ser-aí, por mais que o ser-aí permaneça de saída incompreendido, e, sobretudo, por mais que uma necessidade de sua fundação não se tome perceptível, uma vez que a urgência para tal necessidade permanece de fora. Essa permanência de fora, contudo, se funda no ABANDONO DO SER enquanto o mais profundo mistério da história atual do homem ocidental. (tr. Casanova; GA65: 110)
Por mais certamente que a história do fim prossiga e, medida a partir dos dados presentes, por mais que ela se mostre mais “viva” e “mais rápida” e confusa do que nunca, a própria transição permanecerá o que há de mais questionável e antes de tudo o que há de mais desconhecido. O homem, em pequeno número e sem conhecer a si mesmo, se preparará em meio ao campo de jogo temporal do ser-aí e se reunirá em uma proximidade com o seer, proximidade essa que precisa permanecer estranha para todos aqueles que se encontram “próximos da vida”. A história do seer conhece em longos espaços de tempo, que são para ela apenas instantes, acontecimentos apropriadores raros. Os acontecimentos apropriadores enquanto tais: o remetimento da verdade ao seer, a precipitação da verdade, a solidificação de sua inessência (da correção), o ABANDONO DO SER do ente, a entrada do seer em sua verdade, o atiçar do fogo da lareira (da verdade do seer) como o sítio solitário do passar ao largo do último deus, o reluzir da unicidade única do seer. Enquanto a destruição do mundo até aqui enquanto autodestruição alardeia em meio ao vazio o seu triunfo, a essência do seer se reúne em sua mais elevada vocação: enquanto acontecimento da apropriação do âmbito de decisão sobre a divindade dos deuses, apropriar-se do fundamento e do campo de jogo temporal, isto é, do ser-aí, na unicidade de sua história. (tr. Casanova; GA65: 116)
A entrada do homem na história do ser é incalculável e independente de todo progresso ou derrota da “cultura”, uma vez que a própria “cultura” significa a fixação do ABANDONO DO SER do ente e uma vez que o crescente enredamento da essência humana em seu “antropologismo” impele ou mesmo pressiona o homem ainda uma vez de volta para o desconhecimento cristão de toda verdade do seer. (tr. Casanova; GA65: 116)
1) O primeiro início e seu fim abarcam toda a história da questão diretriz de Anaximandro até Nietzsche. 2) A questão diretriz não é questionada inicialmente na apreensão expressa da questão, mas captada por isso mesmo de maneira tanto mais originária e respondida de modo normativo; a irrupção do ente, a pre-sentação do ente enquanto tal em sua verdade; essa fundada no logos (reunião) e no noein (a-preensão). 3) O caminho daqui até a primeira versão, desde então diretriz, da questão em Aristóteles; a preparação essencial por meio de Platão; a confrontação aristotélica com o primeiro início, que ganha ao mesmo tempo por meio daí o cerne de uma interpretação fixamente estabelecida para o que vem depois. 4) A repercussão do modo de formulação da questão que agora retrocede uma vez mais, mas que, porém, a tudo ainda domina no resultado e nos caminhos (doutrina das categorias; teo-logia); a reestruturação do todo por meio da teologia cristã; sob essa figura, o primeiro início permanece, então, apenas histórico, até mesmo ainda em Nietzsche, apesar de sua descoberta dos pensadores iniciais como homens de um nível hierárquico elevado. 5) De Descartes até Hegel uma transformação renovada, mas não uma mudança essencial; a retomada na consciência e a certeza absoluta; em Hegel, realiza-se pela primeira vez uma tentativa filosófica de uma história da questão acerca do ente a partir da posição fundamental conquistada do saber absoluto. 6) O que reside entre Hegel e Nietzsche possui muitas figuras, em parte alguma originariamente no metafísico, nem mesmo em Kierkegaard. Diferentemente da questão diretriz, a questão fundamental desponta enquanto questão concebida com a própria formulação da questão, a fim de saltar a partir dela de volta para o interior da experiência fundamental originária do pensamento da verdade do seer. Mas a questão fundamental também tem enquanto questão concebida um caráter completamente diverso. Ela não é o prosseguimento da formulação da questão que tinha sido empreendida na questão diretriz por Aristóteles. Pois ela emerge por um salto imediatamente de uma necessidade da indigência do ABANDONO DO SER, daquele acontecimento, que é essencialmente co-condicionado pela história da questão diretriz e por seu desconhecimento. (tr. Casanova; GA65: 119)
O “tempo” como temporialidade, o que se tem em vista é a unidade originária do arrebatamento extasiante marcado por clareira e por encobrimento, oferece o fundamento mais próximo para a fundação do ser-aí. Com esse estabelecimento, a forma até aqui de resposta não deve ser, por exemplo, mantida, sim, nem mesmo substituída, ou seja, ao invés das “ideias” ou de sua desaprovação no século 19, ao invés dos “valores” não devem ser posicionados outros “valores” ou não deve ser posicionado valor nenhum. Ao contrário, o “tempo” aqui e, de maneira correspondente, tudo aquilo que é concebido sob o título “existência”, possui um significado completamente diverso, a saber, o significado da fundação dos sítios abertos da instantaneidade para um ser histórico do homem. Como todas as decisões até aqui não se mostram mais no âmbito das “ideias” ou do “ideal” (“visões de mundo”, ideias de cultura e coisas do gênero) como decisões, porque elas não colocam mais de maneira alguma em questão o seu espaço de decisão e ainda menos a verdade mesma enquanto verdade do seer, é preciso antes de tudo dirigir a meditação para a fundação de um espaço de decisão, isto é, a indigência da falta de indigência precisa ser primeiro experimentada, o ABANDONO DO SER. No entanto, onde quer que, no sentido até aqui, ainda que com tomadas de empréstimo externas junto à “filosofia da existência”, tudo permanece no âmbito da “cultura”, da “ideia”, do “valor” e do “sentido”, aí, visto em termos da história do ser e a partir do pensamento inicial, o ABANDONO DO SER é uma vez mais solidificado e a falta de indigência é por assim dizer elevada ao nível de princípio fundamental. (tr. Casanova; GA65: 119)
O caráter de jogado, porém, se atesta e só se atesta nos acontecimentos fundamentais da história velada do seer, e, em verdade, para nós sobretudo na indigência do ABANDONO DO SER e na necessidade da decisão. (tr. Casanova; GA65: 122)
Toda mediação e salvação tíbias não fazem outra coisa senão aprisionar o ente ainda mais no ABANDONO DO SER e transformar o esquecimento do ser na única forma da verdade, a saber, da não verdade do seer. Como é que o pressentimento poderia ganhar aí ainda o menor espaço possível, de tal modo que a recusa se mostrasse como o primeiro envio mais elevado do seer, sim, como a sua própria essenciação inicial. Esse envio acontece apropriadoramente como a retração, que vincula ao silêncio, no qual a verdade segundo sua essência chega novamente à decisão sobre se ela pode ser fundada como a clareira para o encobrir-se. Esse encobrir-se é o desencobrimento da recusa, o deixar pertencer ao elemento estranho de um outro início. (tr. Casanova; GA65: 123)
O seer não é e nunca é mais essente do que o ente, mas também não é mais inessente do que os deuses, porque esses em geral não “são”. O seer “é” o entre em meio ao ente e aos deuses e ele é completamente e em todos os aspectos incomparável, “usado” por esses e subtraído àquele. Por isso, só alcançável no salto para o interior do ABANDONO DO SER como deização (recusa). (tr. Casanova; GA65: 126)
Se, então, o ABANDONO DO SER pertence ao “ente” da maquinação e da vivência, então é de se espantar se o “nada” for mal interpretado como o apenas nulo? (tr. Casanova; GA65: 129)
Aquelas indicação só interpelam, se nós suportarmos sobretudo a indigência do ABANDONO DO SER e nos colocarmos em relação à decisão sobre a permanência de fora e a chegada dos deuses. (tr. Casanova; GA65: 133)
Caso não busquemos salvação em uma explicação do ser (da entidade) por meio do estabelecimento da primeira causa de todo ente, causa essa que causa a si mesma; caso não se dissolva o ente enquanto tal na objetualidade e não se explique uma vez mais a entidade agora a partir da re-presentação do objeto e de seu a priori; caso o seer mesmo deva chegar à essenciação e, contudo, todo tipo de ente deva ser mantido distante dele, então isso só se dará a partir de uma meditação necessária (o ABANDONO DO SER como consistindo em indigência), para a qual isso se torna inequívoco: A verdade do ser e, assim, esse ser mesmo só se essenciam onde e quando se dá o ser-aí. Ser-aí “é” apenas onde e quando o ser da verdade se dá. Uma, sim, a viragem, que indica justamente a essência do ser mesmo como o acontecimento apropriador contra-agitando-se em si. O acontecimento apropriador funda em si o ser-aí (I.). O ser-aí funda o acontecimento apropriador (II.). Fundar é aqui marcado pela viragem: I. sustentador e inteiramente imperante, II. instituidor projetante. (tr. Casanova; GA65: 140)
O acontecimento da apropriação do ser-aí por parte do seer e a fundação da verdade do ser no ser-aí – a viragem no acontecimento apropriador não é nem na conclamação (permanência de fora), nem no pertencimento (ABANDONO DO SER) algum dia resolvida sozinha, também não pelos dois juntos. Pois essa junção e os dois mesmos só se tornam acessíveis pela primeira vez no acontecimento apropriador. No acontecimento apropriador, esse acontecimento mesmo vibra na contravibração. (tr. Casanova; GA65: 141)
Há em geral, questionado a partir da verdade do ser enquanto acontecimento apropriador, níveis desse tipo ou até mesmo níveis de seer? Se pensássemos a diferenciação entre seer e ente como acontecimento da apropriação do ser-aí e como abrigo do ente e atentássemos para o fato de que aqui tudo é inteiramente histórico, de tal modo que uma sistemática platônico-idealista se tornou impossível, porque insuficiente, então restaria ainda a questão de saber como o vivente, a “natureza” e seu elemento inanimado, tal como utensílio, maquinação, obra, ato, sacrifício e a força de sua verdade (originariedade do abrigo da verdade e, com isso, reessenciação do acontecimento apropriador) precisam ser ordenados. Toda ordem representacional e calculadora é aqui extrínseca, essencial é apenas a necessidade histórica na história da verdade do seer, cuja era principia. Como as coisas se encontram em relação à “maquinação” (técnica) e como é que se reúne nela todo abrigo ou, antes de tudo, como se fixa nela o extrato do ABANDONO DO SER? (tr. Casanova; GA65: 152)
O que deve ser a técnica? Não no sentido de um ideal, mas como ela se encontra no interior da necessidade de superar o ABANDONO DO SER ou de colocá-lo em decisão de maneira fundamental? Ela é o caminho histórico para o fim, para a recaída do último homem no animal tecnicizado, que perde, com isso, até mesmo a animalidade originária do animal introduzido, ou será que ela pode, assumida de antemão como abrigo, ser inserida na fundação do ser-aí? E, assim, a decisão para qualquer tipo de abrigo permanece poupada de nós por um instante, assim como aquilo junto ao que passamos ao largo e simplesmente perecemos. (tr. Casanova; GA65: 152)
O ABANDONO DO SER é o primeiro crepúsculo do seer como encobrir-se a partir da noite da metafísica, por meio da qual o ente avançou em direção ao cerne do fenômeno e, com isso, em direção ao cerne da objetualidade contraposta, de tal modo que o seer se tornou o adendo sob a figura do a priori. (tr. Casanova; GA65: 168)
O caráter de jogado acontece e se atesta sobretudo na indigência do ABANDONO DO SER e na necessidade da decisão. (tr. Casanova; GA65: 182)
Disso faz parte: suportar a indigência do ABANDONO DO SER juntamente com o postar-se ante a decisão sobre a permanência de fora e a chegada dos deuses: a primeira ocupação do posto da guarda para o silêncio do passar ao largo do último deus naquela decisão. (tr. Casanova; GA65: 189)
O projeto do ser-aí só é possível como inserção extasiante no ser-aí. O projeto que insere de maneira extasiante, porém, emerge apenas da docilidade em relação à junção fugidia mais velada de nossa história em meio à tonalidade afetiva fundamental da retenção. O instante essencial, imensurável em sua amplitude e profundidade, irrompe, sobretudo quando a indigência do ABANDONO DO SER experimenta seu crepúsculo e a decisão é buscada. Com certeza: esse “fato” fundamental de nossa história não é apresentável por meio de nenhuma “decomposição analítica” da “situação” “espiritual” ou “política” do tempo, uma vez que tanto a perspectiva voltada para o “espiritual” quanto a perspectiva voltada para o “político” já se movimentam no primeiro plano e no que foi corrente até aqui, de tal modo que elas renunciam de antemão à possibilidade de experimentar a história propriamente dita – a luta do acontecimento da apropriação do homem pelo seer – e de questioná-la e pensá-la nas vias da disponibilização dessa história, isto é, elas renunciam à possibilidade de se tornar histórico a partir do fundamento da história. (tr. Casanova; GA65: 189)
Fundante significa, porém, ao mesmo tempo histórico em nossa e para a nossa história por vir, cuja indigência mais íntima (ABANDONO DO SER) e cuja necessidade daí emergente (questão fundamental) se juntam de modo fugidio. Essa junção fugidia, como uma preparação que se junta fugidiamente dos sítios instantâneos da mais extrema decisão, é a lei do procedimento pensante no outro início, diferentemente do sistema no fim da história do primeiro início. (tr. Casanova; GA65: 190)
Apesar disso, precisa ser possível uma indicação denominadora primeira do ser-aí e, com isso, para ele. Nunca, naturalmente, uma “descrição” imediata, como se ele estivesse em algum lugar previamente dado e presente à vista; também não por meio de uma “dialética”, o que é o mesmo em um nível superior, mas com certeza no interior do projeto corretamente compreendido, que traz o homem ainda que apenas para o interior de seu ABANDONO DO SER, preparando a ressonância, de tal modo que o homem se mostra como aquele ente, que é irrompido no aberto, mas que desconhece de saída e por longo tempo essa irrupção, mensurando-a, por fim, completamente pela primeira vez a partir apenas do ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 190)
A insistência nesse acontecimento da propriedade possibilita pela primeira vez ao homem chegar a “si” historicamente e ser junto a si. E somente esse junto a si é o fundamento suficiente, para assumir verdadeiramente o para o outro. Mas o chegar-a-si nunca é justamente uma representação do eu anteriormente desatada, mas a assunção do pertencimento à verdade do ser, salto para o interior do aí. A propriedade como fundamento da ipseidade funda o ser-aí. Propriedade, porém, é ela mesma uma vez mais a persistência constante da viragem no acontecimento apropriador. Propriedade é, assim, ao mesmo tempo o fundamento consonante com o ser-aí da retenção. A ligação reflexiva, que é denominada no “si”, para “si”, junto a “si”, por “si”, tem sua essência na apropriação. Na medida em que agora o homem se encontra mesmo no ABANDONO DO SER ainda no aberto da inessência do ente, está incessantemente dada a possibilidade de ele ser por “si”, de ele retornar a “si”. Mas o “si” e o si mesmo determinado a partir daí como o apenas si mesmo permanece vazio e só se preenche a partir do ente presente à vista e previamente dado e do que é empreendido precisamente pelo homem. O para-si não tem nenhum caráter de decisão e é sem saber em torno do aprisionamento no acontecimento do ser-aí. (tr. Casanova; GA65: 197)
A ipseidade é mais originária do que todo eu e do que todo tu e nós. Esses só se reúnem enquanto tais no si mesmo e se tornam, assim, a cada vez eles “mesmos”. Inversamente, a dispersão do eu, do tu e do nós, assim como o seu esboroamento e o seu superdimensionamento, não é nenhum mero fracasso do homem, mas o acontecimento da impotência em relação a suportar e saber sobre a propriedade, o ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 197)
Expelidos dessa verdade e cambaleando no ABANDONO DO SER, nós não sabemos senão muito pouco sobre a essência do si mesmo e sobre os caminhos para o saber autêntico. Pois por demais tenaz é o primado da consciência “egoica”, sobretudo porque essa consciência pode se esconder em múltiplas figuras. As mais perigosas são aquelas, nas quais o “eu” sem mundo teria aparentemente abdicado de si e se entregue a um outro, que seria “maior” do que ele e ao qual ele é atribuído de maneira parcial e parte a parte. A dissolução do “eu” na “vida” como povo: aqui, a superação do “eu” é viabilizada a partir do abandono da primeira condição de tal superação, a saber, a meditação sobre o ser-si-mesmo e sobre sua essência, que se determina a partir da atribuição apropriadora e da sobreapropriação. (tr. Casanova; GA65: 197)
A clareira para o encobrimento como essência originária-unificadora é o abismo do fundamento, como o qual o aí se essencia. A concepção fatídica: “a verdade é a não verdade” permanece por demais mal interpretável, para que ela pudesse mostrar com segurança a via correta. Todavia, ela deve indicar o elemento estranho que reside no novo projeto da essência – a clareira para o encobrimento e isso como essenciação no acontecimento apropriador. Que retenção jurisdicional do ser-aí é requisitada com isso hierarquicamente, se essa essência da verdade deve chegar a ser sabida como o originariamente verdadeiro? Agora também fica mais clara pela primeira vez a origem da errância e o poder e a possibilidade do ABANDONO DO SER, o encobrimento e a di-ssimulação; o domínio do não fundamento. O mero aceno para a aletheia com vistas à explicação da essência da verdade, essência essa colocada aqui como fundamento, não nos ajuda a seguir adiante porque, na aletheia, precisamente o acontecimento do desencobrimento e do encobrimento não são experimentados e concebidos como fundamento, uma vez que, sim, o questionar continua sendo determinado a partir da physis, o ente enquanto ente. (tr. Casanova; GA65: 226)
As coisas são diversas, porém, no que concerne à clareira para o encobrimento. Aqui nos encontramos na essenciação da verdade, e essa é verdade do seer. A clareira para o encobrimento é já a oscilação da contraoscilação da viragem do acontecimento apropriador. Mas as tentativas até aqui em Ser e tempo e nos escritos seguintes de impor essa essência da verdade contra a correção do re-presentar e do enunciar como fundamento do próprio ser-aí precisavam permanecer insuficientes, porque elas foram sempre realizadas a partir da repulsae, com isso, porém, tinham sempre o re-pelido como ponto de mira, tornando impossível saber a essência da verdade desde o seu fundamento, desde o fundamento como o qual ela mesma se essencia. Para que se tenha sucesso nesse empreendimento é necessário não reter mais o dizer sobre a essência do seer, seguindo uma vez mais a partir da opinião de que se poderia, apesar da intelecção da necessidade do projeto que salta para frente, abrir por fim de qualquer modo, a partir do que se deu até aqui, gradualmente um caminho para a verdade do seer. Isso, porém, precisa sempre fracassar. E o novo perigo se torna tão forte, que o acontecimento apropriador se transforma agora ao mesmo tempo apenas em um nome e em um conceito manuseável, a partir do qual algo diverso poderia ser “deduzido”, mas que precisa, porém, ser dito dele; uma vez mais, contudo, não destacado em uma discussão “especulativa”, mas na meditação exigida, mantida pela indigência do ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 226)
Em face da desertificação e desfiguração crescente da filosofia, algo essencial já teria sido conquistado há um bom tempo, caso se tivesse conseguido colocar da maneira correta a questão acerca da verdade a partir de sua necessidade. Sua necessidade emerge da indigência do ABANDONO DO SER. A maneira correta de formulação da questão é a transição para a essência originária sob a clarificação do ponto de partida, do conceito dominante da correção. Ao mesmo tempo, é preciso que se conceba o fato de que é só com a verdade na viragem que se determina pela primeira vez a verdade da essência e da essenciação, e, por isso, desde o início, não um conceito de “essência” no sentido de uma reunião genericamente correta de propriedades maximamente universais, acessíveis imediatamente para qualquer um, conceito esse que pode ser almejado e exigido; ao contrário, algo mais elevado, junto ao qual o desenraizamento já há muito dominante pode ser já imediatamente mensurado. Verdade é a partir daqui, isto é, experimentada de maneira historicamente necessária, o tresloucamento que transpõe para o deslocamento. (tr. Casanova; GA65: 227)
Além disso, tal correção não conduziria jamais para fora da indigência do ABANDONO DO SER, mas apenas a ratificaria e fomentaria de maneira renovadamente veladora. (tr. Casanova; GA65: 227)
Tres-loucado e lançado para fora extaticamente daquela situação, na qual nós nos encontramos: do gigantesco vazio e da enorme desertificação, enredado no que foi legado pela tradição e que se tornou enquanto tal incognoscível, sem critérios de medida e sem a vontade antes de tudo de interrogar essas coisas; o deserto, porém, é o ABANDONO DO SER velado. (tr. Casanova; GA65: 227)
O tempo-espaço é a abertura de um fosso abissal apropriada em meio ao acontecimento das vias da viragem do acontecimento apropriador, da viragem entre o pertencimento e o clamor, entre o ABANDONO DO SER e o aceno (o estremecimento da oscilação do seer mesmo!). Proximidade e distância, vazio e doação, ímpeto e hesitação, tudo isso não deve ser concebido tempo-espacialmente a partir das representações usuais de tempo e espaço, mas, inversamente, nelas reside a essência velada do tempo-espaço. Mas como é que isso deve ser aproximado da representação usual atual? Aqui é possível percorrer diferentes caminhos preparatórios. Com efeito, o mais seguro parece ser abandonar simplesmente o campo representacional até aqui de espaço e tempo e de sua apreensão conceitual e começar de novo. Mas isso não é possível porque não se trata de maneira alguma apenas de uma modulação da representação e da direção da representação, mas de um tres-loucamento da essência do homem em meio ao ser-aí. O questionamento e o pensamento precisam ser, com efeito, iniciais, mas, de qualquer modo, precisamente transitórios. (tr. Casanova; GA65: 239)
O “vazio” também não é a mera insatisfação de uma expectativa e de um desejo. Ele é apenas como ser-aí, isto é, como a retenção, o manter-se diante da renúncia hesitante, por meio da qual o tempo-espaço se funda como os sítios instantâneos da decisão. O “vazio” é do mesmo modo e propriamente a plenitude do ainda indecidido, a ser decidido, o a-bissal, o que aponta para o fundamento, para a verdade do ser. O “vazio” é a indigência preenchida do ABANDONO DO SER, mas esse já voltado para o aberto e, com isso, referido à unicidade do seer e de sua inesgotabilidade. O “vazio” não como o concomitantemente dado de uma precariedade, como sua indigência, mas muito mais como a indigência da retenção, que é em si um projeto irrompendo. Assim, ele se mostra como a tonalidade afetiva fundamental do pertencimento mais originário. A denominação como “vazio” para aquilo que se abre no acontecimento apropriador da retenção para a renúncia hesitante não é, por isso, determinada de maneira apropriada e continua sendo sempre determinada de maneira exagerada a partir do erigir dificilmente superável junto ao espaço da coisa e junto ao tempo do processo. (tr. Casanova; GA65: 242)
Se aquela temporalização e aquela espacialização constituem a essência originária de tempo e espaço, então sua proveniência, abissal, fundadora do a-bismo, se tornou visível a partir da essência do ser. Tempo e espaço (originariamente) não “são”, mas se essenciam. Mas a renúncia hesitante mesma tem essa junção fugidia originariamente unificadora da autorrenúncia e da hesitação a partir do aceno. Esse aceno é o reabrir-se do que se encobre enquanto tal, e, em verdade, o reabrir-se para o e como o acontecimento da apropriação, como o clamor do pertencimento ao próprio acontecimento apropriador, isto é, à fundação do ser-aí como o âmbito de decisão para o seer. Mas esse aceno só chega a se dar na ressonância do seer a partir da indigência do ABANDONO DO SER e só diz uma vez mais: nem a partir do clamor, nem a partir de um pertencimento, mas apenas a partir do entre que atua de maneira vibrante sobre os dois é que se abre o acontecimento apropriador e se torna realizável o projeto da origem do tempo-espaço como unidade originária a partir do abismo do fundamento. Espaço é o a-bismo arrebatadoramente fascinante do repouso. Tempo é o a-bismo arrebatadoramente extasiante da reunião. O arrebatamento fascinante é repouso abissal da reunião. (tr. Casanova; GA65: 242)
Os que experimentam o o-caso são sempre questionadores. A in-quietude do questionar não é nenhuma insegurança vazia, mas a reabertura e o cultivo daquela tranquilidade, que cristaliza como reunião no que há de mais questionável (o acontecimento apropriador) a intimidade simples do clamor e constitui a ira extrema do ABANDONO DO SER. (tr. Casanova; GA65: 250)
O questionar acerca da essência da verdade e acerca da essenciação do seer: o que é isso senão o caráter resoluto em nome da mais extrema meditação? Esse caráter resoluto, porém, cresce a partir da abertura para o necessário, que torna incontornável a experiência da indigência do ABANDONO DO SER. A experiência dessa indigência, contudo, depende uma vez mais da grandeza da força da lembrança no todo do caráter dominante do saber. Uma questão desse tipo é a retenção da busca, lá onde e como a verdade do ser se deixa fundar e abrigar. (tr. Casanova; GA65: 250)
Na essência do aceno reside o mistério da unidade da mais íntima aproximação no distanciamento extremo, a mensuração do mais amplo campo de jogo temporal do seer. Esse extremo da essenciação do seer exige o mais íntimo da indigência do ABANDONO DO SER. Essa indigência precisa pertencer ao clamor do domínio daquele aceno. O que ressoa em tal servidão e prepara a amplitude só consegue preparar para a contenda entre mundo e terra, para a verdade do aí, por meio desse aí mesmo, o sítio instantâneo da decisão e, assim, a contestação e o abrigo no ente. (tr. Casanova; GA65: 255)
(O último deus) Ele tem sua essenciação no aceno, no acometimento ou no ficar de fora da chegada tanto quanto da fuga dos deuses que essencialmente foram e de sua transformação velada. O último deus não é o próprio acontecimento apropriador, mas com certeza necessita dele como aquilo a que pertence o fundador do aí. Esse aceno enquanto acontecimento apropriador coloca o ente no mais extremo ABANDONO DO SER e irradia ao mesmo tempo a verdade do ser como a sua luzência mais íntima. (tr. Casanova; GA65: 256)
No âmbito de domínio do aceno encontram-se novamente, para a mais simples contenda, terra e mundo: o mais puro fechamento e a transfiguração suprema, o mais temo arrebatamento fascinante e o mais temível arrebatamento extasiante. E isso novamente a cada vez apenas historicamente nos níveis e âmbitos e graus do abrigo da verdade no ente, através do qual somente este se torna novamente mais ente, em meio a todo o extinguir-se no não ente, um extinguir-se que é sem medida, mas dissimulado. Em tal essenciação do aceno, o próprio seer chega à sua maturidade. Maturidade é prontidão para tornar-se um fruto e uma doação. Nisso se essencia o último, o fim essencial, exigido a partir do início, mas não trazido com ele. Aqui se desentranha a finitude mais íntima do seer: no aceno do último deus. Na maturidade, na potência do fruto e na grandeza da doação, encontra-se ao mesmo tempo a essência mais velada do não, enquanto ainda-não e não-mais. A partir daqui é que é preciso pressentir a intimidade da intraessenciação do negativo no seer. De acordo com a essenciação do seer, porém, no jogo do acometimento e do ficar de fora, o não mesmo possui figuras diversas de sua verdade e, de acordo com isso, também o nada. Se isso só for calculado “logicamente” por meio da negação do ente no sentido do ente presente à vista (cf as observações no manuscrito de “O que é metafísica?”) e explicado extrinsecamente de maneira literal, em outras palavras, se o questionamento em geral não chegar ao âmbito da questão acerca do seer, então todo discurso em réplica em face da questão acerca do nada não passa de um falatório vão, no qual se subtraem todas as possibilidades de penetrar algum dia no âmbito de decisão da questão acerca da finitude mais essencial do seer. Mas esse âmbito só é penetrável graças à preparação de um longo pressentimento do último deus. E os que estão por vir do último deus só são preparados pela primeira vez por meio daqueles que encontram, mensuram e constroem o caminho de volta a partir do ABANDONO DO SER experimentado. Sem o sacrifício desses que estão voltando, não se chega nem mesmo a um crepúsculo da possibilidade do aceno do último deus. Esses que tomam o caminho de volta são os verdadeiros ante-cessores dos que estão por vir. (Mas esses que estão voltando também são completamente diversos dos muitos apenas “re-ativos”, cuja “ação” só irrompe na cega suspensão junto ao seu elemento até aqui visto de maneira breve. O sido nunca se tornou manifesto para eles em sua antecipação do porvir, assim como o porvir jamais se tornou evidente em seu clamor pelo sido). (tr. Casanova; GA65: 256)
A distância extrema do último deus na recusa é uma proximidade única, uma ligação, que não pode ser deslocada e afastada por nenhuma “dialética”. A proximidade, porém, ressoa na ressonância do seer a partir da experiência da indigência do ABANDONO DO SER. Essa experiência, contudo, é a primeira irrupção para a tempestade no ser-aí. Pois somente se o homem provier dessa indigência, ele levará as necessidades a luzirem e, com elas, pela primeira vez, a liberdade do pertencimento ao júbilo do seer. (tr. Casanova; GA65: 256)
Em todas essas formas ligadas umas às outras do gigantesco se essencia o ABANDONO DO SER; e, em verdade, não mais meramente sob o modo da permanência de fora da questionabilidade do ente, mas sob a forma da exclusão erigida de toda meditação com base no primado incondicionado do “ato” (isto é, do funcionamento calculado e sempre “grandiosamente estabelecido”) e dos “fatos”. (tr. Casanova; GA65: 260)
No primeiro início, uma vez que a physis se iluminou na aletheia e como ela, o es-panto era a tonalidade afetiva fundamental. O outro início, o início do pensar da história do seer, é a-finado e previamente determinado pelo deslocamento. Esse abre o ser-aí para a indigência da falta de indigência, em cuja proteção se esconde o ABANDONO DO SER do ente. (tr. Casanova; GA65: 269)
O cálculo planejador torna o ente cada vez mais re-presentado, cada vez mais acessível em todo e qualquer aspecto possível da explicação; e isso de tal modo, em verdade, que essas controlabilidades se unificam entre si e se tornam mais correntes e, assim, o ente é ampliado em direção ao aparentemente ilimitado; todavia, justamente apenas aparentemente. Em verdade, realiza-se com a intervenção extrativa da pesquisa (da historiologia no sentido mais amplo do termo) uma transposição do gigantesco do que está submetido ao planejamento para o próprio planejamento. E num instante, uma vez que o planejamento e o cálculo se tornaram gigantescos, o ente na totalidade começa a encolher. O “mundo” se torna cada vez menor; e não, por exemplo, apenas no sentido quantitativo, mas no significado metafísico, o ente enquanto ente, isto é, como algo objetivo, é, por fim, a tal ponto dissolvido na controlabilidade, que o caráter de ser do ente por assim dizer desaparece e o ABANDONO DO SER do ente se consuma. (tr. Casanova; GA65: 274)
VIDE: (Seinsverlassenheit->http://hyperlexikon.hyperlogos.info/modules/lexikon/search.php?option=1&term=Seinsverlassenheit)
abandono do ser
abandono del ser
abandon de l’être
abandon of being
ABANDONO DO SER (Seinsverlassenheit) Em sua discussão da maquinação e tecnologia, Heidegger descreve o ponto extremo do esquecimento do ser como uma ocorrência nas qual as entidades aparecem exclusivamente em termos de seu potencial para ser usado e explorado para propósitos instrumentais. Nesta época historial do domínio da tecnologia moderna, as entidades cessam de aparecer como únicas e singulares, mas ao invés manifestam elas mesmas somente unidimensionalmente em termos de seu valor instrumental. (HDHP)
Seinsverlassenheit des Seienden (abandono do ser característico do ente): Esta expressão é utilizada no texto para descrever o traço fundamental de todo pensamento metafísico. Para Heidegger, a metafísica constitui-se originariamente a partir de uma equiparação do ser com o ente enquanto tal e de uma consequente assunção do plano ôntico como o próprio horizonte de colocação da pergunta pelo ser. Ao buscar determinar o ser, a metafísica já sempre se orienta assim pelo ente e pensa de volta até o ente. O ente vigora portanto sozinho no interior das determinações metafísicas da realidade e o ser permanece excluído de toda reflexão. O ente vige aí em outras palavras em meio ao abandono do ser. (Casanova; GA67MAC:178)
Seinsverlassenheit é similar, em termos de estrutura, a Seinsvergessenheit, sendo verlassen o participio passado de verlassen, “abandonar”. Mas não significa que nós tenhamos abandonado o ser, mas que o ser nos abandonou e também aos outros entes: “O que realmente acontece (na maquinação) é o Seinsverlassenheit dos entes: que o ser deixa os entes a si mesmos e se lhes nega.” (GA6T2, 28. Cf. GA65, 111). E portanto similar à mais comum Gottverlassenheit, “renúncia de Deus”, ao passo que Seisvergessenheit aproxima-se da Gottvergessenheit, “esquecimento de Deus”, no sentido de que nos esquecemos de Deus (GA60, 53/10). Seinsverlassenheit consiste na ausência do “desvelamento (Entbergung) do ser enquanto tal” (GA6T1, 654), enquanto Seinsvergessenheit “significa: o velamento de si da prove-niência da diferenciação do ser em ser-o-que e ser-isto, em favor do ser que ilumina os entes enquanto entes e permanece inqueslionado enquanto ser” (GA6T2, 402/GA9, 3s).
(…)
Em SZ, a Seinsverlassenheit afetou a filosofia, deixando a “cotidianidade mediana” mais ou menos ilesa. Posteriormente, a Seinsverlassenheit afeta toda a vida humana, já que a filosofia ou “metafísica” é a influência dominante e subterrânea da mesma. Seinsverlassenheit é o solo do niilismo no sentido nietzschiano, a ausência de qualquer objetivo (GA65, 119, 138). Subjaz à tecnologia e aos males da modernidade: “Seinsverlassenheit pode ser aproximada pela reflexão acerca do obscurecimento do mundo, da destruição da terra no sentido da velocidade, do cálculo (Berechnung), da reivindicação da massa (Massenhaften)” (GA65, 119). Na gigantomania característica da tecnologia, “a Seinsverlassenheit dos entes se essencializa; e não mais apenas na forma da ausência de questionamento dos entes, mas com a aparência da extrusão planejada, com base na prioridade incondicional do ‘feito’ (i.e., do empreendimento calculado, sempre em ‘larga escala’) e dos ‘fatos’” (GA65, 442).
A saída da Seinsverlassenheit inclui a consciência da mesma como Seinsverlassenheit. Ela “precisa ser experimentada como o acontecimento básico da nossa história (…) E isto requer: 1. Que a Seinsverlassenheit seja rememorada em sua história longa, velada e encobridora de si. (…) 2. Que a Seinsverlassenheit também seja experimentada como a necessidade (Not) que assoma à transição e a ilumina como o caminho em direção ao porvir” (GA65, 112). A Seinsverlassenheit vela a si mesma por detrás de nossa intensa preocupação com os entes. Geralmente, não estamos na “necessidade” ou em “aflição” (Not) por causa dela. Esta Notlosigkeit, “falta de aflição”, é ela mesma a maior das aflições: “A Seinsverlassenheit é o solo mais íntimo da aflição da falta de aflição. (…) Pode por acaso haver um caminho de saída de uma aflição do tipo que constantemente se nega como aflição?” (GA65, 119). Mas se nos tomamos conscientes de nossa aflição, a própria Seinsverlassenheit revela o ser: é “a primeira aurora do ser como o que oculta a si mesmo para fora da noite da metafísica, através da qual os entes apressaram-se para a proeminência e, assim, para a objetividade, enquanto que o ser tornou-se o suplemento na forma de um a priori (cf. as condições a priori da (54) objetividade segundo Kant)” (GA65, 293). Escapar da Seinsverlassenheit só é possível experimentando-a em sua forma mais crucial (cf. GA65, 410ss).
Os três véus da Seinsverlassenheit são: 1. Berechnung, “cálculo”; 2. “velocidade” , com a sua “ cegueira para o verdadeiramente transitório, para o que não é efêmero, mas revela a eternidade”, seu “pavor do tédio”; 3. A “explosão do massivo (Massenhaften) — não as ‘massas’ no sentido ‘social’; só importam tanto porque o que conta é o número e o calculável, i.e., o acessível a todos do mesmo modo” (GA65, 120s) (DH:52-54)