Ricoeur (1977) – H. G. Gadamer

Essa aporia torna-se o problema central da filosofia hermenêutica de Hans Georg Gadamer, em Wahrheit und Methode1. O filósofo de Heidelberg se propõe expressamente a reavivar o debate das ciências do espírito a partir da ontologia heideggeriana e, mais precisamente, de sua inflexão nas últimas obras de poética filosófica. A experiência nuclear, em torno da qual se organiza toda a obra, e a partir da qual a hermenêutica erige sua reivindicação de universalidade, é a do escândalo provocado, na escala da consciência moderna, pelo tipo de distanciamento alienante (Verfremdung) que lhe parece ser a pressuposição dessas ciências. Com efeito, a alienação é muito mais que um sentimento ou que um humor. É a pressuposição ontológica que assegura a conduta objetiva das ciências humanas. A metodologia dessas ciências implica, a seus olhos, inelutavelmente, certo distanciamento; este, por sua vez, exprime a destruição da relação primordial de pertença (Zugehörigkeit), sem a qual não haveria relação com o histórico enquanto tal. Este debate entre distanciamento alienante e experiência de pertença é levado adiante por Gadamer nas três esferas entre as quais se reparte a experiência hermenêutica: esfera estética, esfera histórica e esfera da linguagem. Na esfera estética, a experiência de ser apreendido pelo objeto precede e torna possível o exercício crítico do juízo, cuja teoria fora feita por Kant no capítulo intitulado “Juízo de gosto”2. Na esfera histórica, a consciência de ser carregado por tradições que me precedem é o que torna possível todo exercício de uma metodologia histórica no nível das ciências humanas e sociais. Enfim, na esfera da linguagem, que de certa forma atravessa as duas precedentes, a co-pertença às coisas ditas pelas grandes vozes dos criadores de discurso, precede e torna possível todo tratamento científico da linguagem, como um instrumento disponível, e toda pretensão de se dominar, por técnicas objetivas, as estruturas do texto de nossa cultura. Assim, uma única e mesma tese está presente nas três partes de Wahrheit und Methode.

Por conseguinte, a filosofia de Gadamer exprime a síntese dos dois movimentos que descrevemos acima: das hermenêuticas regionais, em direção à hermenêutica geral; da epistemologia das ciências do espírito à ontologia. Além disso, porém, Gadamer assinala, em relação a Heidegger, o esboço do movimento de retorno da ontologia em direção aos problemas epistemológicos. É desse ângulo que tratarei aqui. O próprio título de sua obra confronta o conceito heideggeriano de verdade com o conceito diltheyniano de método. A questão é a de saber até que ponto a obra merece denominar-se: Verdade E Método; talvez fosse preferível intitular-se Verdade OU Método. Com efeito, se Heidegger podia dirimir o debate com as ciências humanas por um movimento soberano de ultrapassagem, Gadamer, ao contrário, pode apenas mergulhar num debate sempre mais acalorado, justamente porque leva a sério a questão de Dilthey. A parte consagrada à consciência histórica é, a esse respeito, extremamente significativa. O longo percurso histórico que se impõe Gadamer, antes de expor suas próprias ideias, atesta que a filosofia hermenêutica deve começar por uma recapitulação da luta da filosofia romântica contra a Aufklärung, da diltheyniana contra o positivismo, da heideggeriana contra o neo-kantismo.

Sem dúvida, a intenção expressa de Gadamer é evitar recair na viseira do romantismo. A seu ver, o romantismo operou apenas uma reviravolta das teses da Aufklärung, sem conseguir deslocar a problemática e a mudar o terreno do debate. Por isso a filosofia romântica se empenha em reabilitar o preconceito, que é uma categoria da Aufklärung, e continua a depender de uma filosofia crítica, vale dizer, de uma filosofia do juízo. Assim, o romantismo trava seu combate sobre um terreno definido pelo adversário, a saber, o papel da tradição e da autoridade na interpretação. O problema consiste em saber se a hermenêutica de Gadamer conseguiu realmente ultrapassar o ponto de partida romântico da hermenêutica, e se sua afirmação, segundo a qual o ser homem encontra sua finitude no fato de situar-se, antes, no seio das tradições (p. 260), consegue escapar ao jogo das reviravoltas, no qual ele vê o romantismo filosófico encerrado, face às pretensões de toda filosofia crítica.

Dilthey foi censurado por ter permanecido prisioneiro de um conflito entre duas metodologias e por “não ter sabido libertar-se da teoria tradicional do conhecimento” (p. 261). Seu ponto de partida permanece a consciência de si, dona de si mesma. Com Dilthey, a subjetividade permanece a referência última. Certa reabilitação do preconceito, da autoridade, da tradição, será pois dirigida contra os critérios da filosofia reflexiva. Esta polêmica anti-reflexiva contribuirá mesmo para conferir a esse arrazoado a aparência de um retorno a uma posição pré-crítica. Por mais provocante — para não dizer provocador — que tal arrazoado seja, ele é devido à reconquista da dimensão histórica sobre o momento reflexivo. A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de me pertencer a mim mesmo. Ora, Dilthey não pôde compreender isso, porque sua revolução permaneceu epistemológica, e porque seu critério reflexivo prima sobre sua consciência histórica. Neste ponto, Gadamer é o herdeiro de Heidegger. É dele que recebe a convicção segundo a qual aquilo que chamamos de preconceito exprime a estrutura de antecipação da experiência humana. Ao mesmo tempo, a interpretação filológica deve permanecer um modo derivado do compreender fundamental.

Essa rede de influências, alternadamente recusadas e assumidas, culmina numa teoria da consciência histórica, que marca o ápice da reflexão de Gadamer sobre a fundação das ciências do espírito. A essa reflexão, ele dá o seguinte título: wirkungsgeschichtliches Bewusstsein, ou seja, literalmente, consciência-da-história-dos-efeitos. Essa categoria não depende mais da metodologia, do Inquiry histórico, mas da consciência reflexiva dessa metodologia. Trata-se da consciência de ser exposto à história e à sua ação, de tal forma que não podemos objetivar essa ação sobre nós, porque faz parte do próprio fenômeno histórico. No Kleine Schriften, pode-se ler: “Quero dizer com isso, antes de tudo, que não podemos nos abstrair do devir histórico, situar-nos longe dele, para que o passado se torne, para nós, um objeto… Somos sempre situados na história… Pretendo dizer que nossa consciência é determinada por um devir histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade de situar-se em face do passado. Por outro lado, pretendo afirmar que, novamente, trata-se sempre de tomar consciência da ação que se exerce sobre nós, de tal maneira que todo passado, cuja experiência acabamos de fazer, leve-nos a nos responsabilizar totalmente, a assumir, de certo modo, sua verdade.. .”3.

É a partir desse conceito da eficiência histórica que gostaria de colocar meu próprio problema: como é possível introduzir qualquer instância crítica numa consciência de pertença expressamente definida pela recusa do distanciamento? A meu ver, isso só pode ocorrer na medida em que essa consciência histórica não se limitar a repudiar o distanciamento, mas de forma a também empenhar-se em assumi-lo. A este respeito, a hermenêutica de Gadamer contém uma série de sugestões decisivas que se tornarão o ponto de partida de minha própria reflexão, no segundo estudo.

Em primeiro lugar, apesar da oposição maciça entre pertença e distanciamento alienante, a consciência da história eficiente contem, em si mesma, um elemento de distância. A história dos efeitos é justamente a que se exerce sob a condição da distância histórica. É a proximidade do longínquo ou, para dizer a mesma coisa em outros termos, é a eficácia na distância. Portanto, há um paradoxo da alteridade, uma tensão entre o longínquo e o próprio essencial à tomada de consciência histórica.

Outro indício da dialética da participação e do distanciamento nos é fornecido pelo conceito de fusão dos horizontes (Horizont-verschmelzung)4. De fato, segundo Gadamer, se a condição de finitude do conhecimento histórico exclui todo sobrevoo, toda síntese final à maneira hegeliana, essa finitude não é tal que eu fique fechado num ponto de vista. Onde houve situação, haverá horizonte susceptível de se estreitar ou de se ampliar. Devemos a Gadamer essa ideia muito fecunda segundo a qual a comunicação a distância entre duas consciências diferentemente situadas faz-se em favor da fusão de seus horizontes, vale dizer, do recobrimento de suas visadas sobre o longínquo e sobre o aberto. Mais uma vez, é pressuposto um fator de distanciamento entre o próximo, o longínquo e o aberto. Este conceito significa que não vivemos nem em horizontes fechados, nem num horizonte único. Na medida mesma em que a fusão dos horizontes exclui a ideia de um saber total e único, esse conceito implica a tensão entre o próprio e o estranho, entre o próximo e o longínquo e, por conseguinte, fica excluído o jogo da diferença na colocação em comum.

Finalmente, a mais precisa indicação em favor de uma interpretação menos negativa do distanciamento alienante está contida na filosofia da linguagem, com a qual se conclui a obra. O caráter universalmente “linguageiro” da experiência humana — com este termo pode ser traduzido, com mais ou menos felicidade, o termo de Gadamer Sprachlichkeit — significa que minha pertença a uma tradição ou a tradições passa pela interpretação dos signos, das obras, dos textos, nos quais se inscreveram e se ofereceram à nossa decifração as heranças culturais. Sem dúvida, toda a meditação de Gadamer sobre a linguagem está voltada contra a redução do mundo dos signos a instrumentos que poderíamos manipular à vontade. Toda a terceira parte de Wahrheit und Methode é uma apologia apaixonada do diálogo que somos e da concórdia prévia que nos impulsiona. Mas a experiência “linguageira” só exerce sua função mediadora porque os interlocutores do diálogo anulam-se reciprocamente diante das coisas ditas que, de certo modo, conduzem o diálogo. Ora, onde esse reino da coisa dita sobre os interlocutores seria mais aparente senão quando a Sprachlichkeit se torna Schriftlichkeit, ou seja, quando a mediação pela linguagem se converte em mediação pelo texto? Assim, o que nos faz comunicar a distância, é a coisa do texto que não pertence mais nem ao seu autor nem ao seu leitor.

Esta última expressão, a coisa do texto, leva-me ao limiar de minha própria reflexão. É este limiar que transporei no segundo estudo.

  1. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode. Grundzüge eiher Philosophischen Hermeneutik, 1960.[]
  2. Kant, Critique de la faculte de juger (1190), trad.fr., Paris, 1968.[]
  3. H. G. Gadamer, Kleine Schriften, I, Philosophie. Hermeneutik, Tübingen, 1967, p. 158.[]
  4. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode, pp. 289 s., 356, 375.[]