nossa tradução
O Capítulo 2, “Cuidado consigo mesmo: ética original em Heidegger e Foucault”, tenta, por meio de um diálogo entre Heidegger e Foucault, abrir a dimensão ontológica da ética no trabalho de ambos os filósofos em termos da relação ontológica com si mesmo, desviando nossa compreensão da “ética” de um conjunto de normas, princípios ou regras teoricamente construídas que regem a prática, em direção a uma compreensão da ética em termos de nossos modos concretos de ser-em-o-mundo, nosso êthos. O reino de êthos, que o capítulo tenta mostrar, é o da práxis “originária”, de uma dimensão pré-teórica e pré-filosófica da morada mundana que excede, e de fato é anterior à distinção tradicional teoria / prática em que a teoria é entendida antecipadamente como separada da prática, mas de tal maneira que pode e deve ser subsequentemente “aplicada” à prática ética e à política. Nesse entendimento tradicional, filosofia ou teoria é, implícita ou explicitamente, entendida como não-mundana, separada do mundo – e, portanto, de seus próprios fundamentos originais, como uma práxis, uma maneira concreta de ser daquela que filosofa. Por outro lado, o cultivo filosófico do êthos que este capítulo discerne tanto em Foucault quanto em Heidegger permanece atento à singularidade, à singularidade concreta de uma existência particular, procurando habitar nessa mesma dimensão, de outro modo eclipsada por nossa compreensão científica do mundo, que de Aristóteles em diante, começou a se apossar da própria filosofia. Neste segundo capítulo, tentamos abordar essa dimensão originária do ético, ou de êthos, trazendo à vista uma constelação de questões que serão desenvolvidas mais adiante nos capítulos restantes. O êthos de alguém não é algo permanente e imutável: nunca é inteiramente redutível ao que Hans-Georg Gadamer chamou apropriadamente “uma rede viva de convicções, hábitos e valores comuns” transmitidos pela comunidade histórica e pelo mundo.1 Em vez disso, é constantemente em transição, uma maneira de habitar em andamento e, como tal, denomina uma maneira de ser e habitar no mundo que pode – e de um ponto de vista filosófico deve – ser interrogada, compreendida e transformada através de várias práticas do eu. O ser do eu, como primariamente uma relação ontológica de Heidegger e Foucault, não é uma abstração teórica do sótão ou do concreto, mas é, o que o presente capítulo tenta mostrar, o acontecimento concreto de uma liberdade originária que nunca é redutível ao que se é ou foi. A tarefa filosófica e “protoética” de cuidar de si mesmo (Foucault) ou da existência autêntica (Heidegger), uma tarefa que assume e engaja expressamente essa liberdade no conhecimento, questionamento do cultivo do êthos, exige uma compreensão da individualidade em termos da temporalidade da ação, do fenômeno do mundo e da determinação histórica do próprio ser mundano.
São esses três momentos que, juntos, articulam o entendimento de Heidegger sobre êthos, um entendimento que, em muitos aspectos, é devido ao relato de Aristóteles sobre a phronesis (sabedoria prática ou excelência na deliberação referente à praxis). Na ética aristotélica, podemos lembrar, o êthos é determinado pelas virtudes éticas que nos dispõem a agir com coragem, autocontrole, justiça, etc .; pela virtude deliberativa da phronesis que nos permite deliberar bem na situação particular da ação; e por nossa teoria ou contemplação do mundo proporcionada por sophia, ou sabedoria filosófica. No entanto, Heidegger, apesar de sua admiração pelo relato de Aristóteles sobre a fronésia (como apresentado no Livro Seis da Ética a Nicômaco), não adota simplesmente o entendimento de Aristóteles do êthos humano. Como mostramos em um estudo anterior, Heidegger realmente se esforça para minar a supremacia concedida à theoria tanto em Aristóteles quanto na tradição filosófica.2 (p. xii-xiv)
Chapter 2, “Care for the Self: Originary Ethics in Heidegger and Foucault,” attempts, by way of a dialogue between Heidegger and Foucault, to open up the ontological dimension of the ethical in the work of both philosophers in terms of the ontological relation to self, shifting our understanding of “ethics” away from a set of theoretically constructed norms, principles, or rules governing practice, and toward an understanding of the ethical in terms of our concrete ways of Being in the world, our êthos. The realm of êthos, the chapter tries to show, is that of “originary” praxis, of a pre-theoretical and pre-philosophical dimension of worldly dwelling that exceeds, and indeed is prior to, the traditional theory/practice distinction in which theory is understood in advance as severed from practice, yet in such a way that it can and should be subsequently “applied” to ethical and political practice. In this traditional understanding, philosophy or theory is, implicitly or explicitly, understood as non-worldly, detached from the world — and thus from its own original grounds as itself a praxis, a concrete way of Being of the one philosophizing. By contrast, the philosophical cultivation of êthos that this chapter discerns in both Foucault and Heidegger remains attentive to the singularity, the concrete uniqueness, of a particular existence, seeking to dwell in that very dimension otherwise eclipsed by our scientific understanding of the world, which from Aristotle on began to take hold of philosophy itself. In this second chapter, we attempt to approach this originary dimension of the ethical, or of êthos, by bringing into view a constellation of issues that will be developed further in the remaining chapters. One’s êthos is not something permanent and unchanging: it is never entirely reducible to what Hans-Georg Gadamer has fittingly called “a living network of common convictions, habits, and values” transmitted by one’s historical community and world. Rather, it is constantly in transition, a manner of dwelling in being underway, and as such names a way of Being and dwelling in the world that can — and from a philosophical point of view must — be interrogated, understood, and transformed through various practices of the self. The Being of the self, as primarily an ontological relation to self for both Heidegger and Foucault, is not a theoretical abstraction from the ontic or concrete, but is, the present chapter tries to show, the concrete happening of an originary freedom that is never reducible to what one is or has been. The philosophical and “protoethical” task of care for the self (Foucault) or of authentic existence (Heidegger), a task that expressly takes up and engages this freedom in the knowing, questioning cultivation of one’s êthos, demands an understanding of selfhood in terms of the temporality of action, the phenomenon of world, and the historical determination of one’s worldly Being.
It is these three moments that, taken together, articulate Heidegger’s understanding of êthos, an understanding that in many respects is indebted to Aristotle’s account of phronesis (practical wisdom, or excellence in deliberation pertaining to praxis). In Aristotelian ethics, we may recall, one’s êthos is determined by the ethical virtues that dispose us to act with courage, self-restraint, justice, etc.; by the deliberative virtue of phronesis that enables us to deliberate well in the particular situation of action; and by our theoria or contemplation of the world afforded by sophia, or philosophical wisdom. Yet Heidegger, despite his admiration for Aristotle’s account of phronesis (as presented in Book Six of the Nicomachean Ethics), does not simply adopt Aristotle’s understanding of human êthos. As we have shown in a previous study, Heidegger indeed goes to great lengths to undermine the supremacy accorded to theoria both in Aristotle and in the philosophical tradition.