Lyotard – O “mundo da vida”

Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard, “A Fenomenologia”.

IX. — O idealismo transcendental e suas contradições. — Ao chegarmos nesta etapa, eis-nos, ao que tudo indica, remetidos de novo a um “idealismo transcendental” (Med. cart.); este idealismo transcendental já residia na própria tarefa da redução. Mas, como o sujeito transcendental não difere do sujeito concreto, o idealismo transcendental parece, além disso, dever ser solipsista. Eu estou só no mundo, este mesmo mundo é apenas a ideia de unidade de todos os objetos, a coisa é somente a unidade de minha percepção de coisa, isto é, dos Abschattungen, todo sentido é fundado “na” minha consciência na medida em que ela é intenção ou doadora de sentido (Sinngebung). Na verdade, Husserl não se deteve jamais nesse idealismo, monádico, primeiro porque a experiência da objetividade remete ao acordo de uma pluralidade de sujeitos e, depois porque outro si mesmo me é dado numa experiência absolutamente original. Os outros ego “não são simples representações e objetos representados em mim, unidades sintéticas de um processo de verificação que se desenrola em “mim”, mas justamente “outros” (M.C., 75). A alteridade do outro se distingue da transcendência simples da coisa pelo fato de que o outro é um eu para si mesmo e sua unidade não está na minha percepção mas nele mesmo; em outras palavras, o outro é um eu puro que não tem necessidade de nada para existir, ele é uma existência absoluta e um ponto de partida radical para ele mesmo, como eu o sou para mim. O problema então é: como existe um sujeito constituinte (outrem) para um sujeito constituinte (eu)?

É evidente que o outro é experimentado por mim como “estranho” (Med. cart.), pois ele é fonte de sentido e de intencionalidade. Mas, aquém dessa experiência de estranheza (que dará a Sartre seus temas de separação das consciências), no nível transcendental a explicitação do outro não pode ser feita nos mesmos termos que a explicitação da coisa e, no entanto, na medida em que o outro é para mim ele é também por mim, a crer nos resultados essenciais da redução transcendental. Esta exigência própria à explicitação do outro não é verdadeiramente satisfeita nas Méditations cartésiennes texto de que acabamos de adotar a própria colocação do problema do outro. Com efeito depois de ter descrito “a apercepção assimilante” pela qual o corpo de outrem me é dado como corpo próprio de um outro eu, sugerindo o psíquico como seu próprio índice, e depois de ter feito de sua “acessibilidade indireta” o fundamento para nós da existência do outro, Husserl declara que, do ponto de vista fenomenológico, o outro é uma modificação de “meu” eu (Med. Cart., 97), o que frustra nossa expectativa. Nas Ideen II, terceira parte, Husserl, em compensação, sublinhava a oposição entre “mundo natural” e “mundo do espírito” (Geist) e a prioridade ontológica absoluta deste sobre aquele: a unidade da coisa é a do desdobramento desses Abschattungen para uma consciência, a unidade da pessoa é “unidade de manifestação absoluta”. No caso do sujeito, e por consequência do outro enquanto sujeito (alter ego), não se pode reduzir a existência real a um correlato intencional, uma vez que aquilo que eu intencionalizo, quando viso outrem, é precisamente uma existência absoluta: aqui ser real e ser intencional se confundem. Poder-se-ia, portanto, pôr à parte uma “comunidade de pessoas” que Ricoeur (“Analyses et problèmes” dans Ideen II, revue de métaphysique et de morale, 1951) aproxima da consciência coletiva segundo Durkheim ou do espírito objeto no sentido hegeliano e que é constituído ao mesmo tempo sobre a apreensão mútua das subjetividades e a comunidade de seu meio circundante. Esta comunidade das pessoas é constitutiva de seu próprio mundo (o mundo medieval, o grego etc-); mas é ela constitutiva originariamente? Afirmá-lo seria dizer que o sujeito transcendental e solipsista não é radical, pois mergulharia suas raízes num mundo do espírito, numa cultura que é ela mesma constituinte.

Em outro termos, a filosofia transcendental enquanto filosofia do sujeito radical não consegue integrar uma sociologia cultural, continua a haver entre ela uma “tensão” (Ricoeur), uma contradição mesmo, e que não se aplica ao pensamento fenomenológico, mas que lhe é inerente: pois é a própria filosofia transcendental que conduz ao problema da intersubjetividade ou da comunidade das pessoas, como o demonstra a marcha paralela, das Méditations cartésiennes e das Ideen. É claro que o ponto de vista de uma sociologia cultural que era já o das Ideen II e que domina amplamente os últimos escritos (Krisis, Carta a Lévy-Bruhl) introduz, como o próprio Husserl o confessa, algo como um relativismo histórico, que é exatamente aquilo que a filosofia transcendental tinha de combater, e entretanto, essa filosofia não pode deixar de desembocar na problemática do outro, nem deixar de elaborar esse problema de maneira a rever as aquisições do subjetivismo radical; com a análise intencional do outro a radicalidade não está mais do lado do eu, mas do lado da intersubjetividade e esta não é apenas uma intersubjetividade para mim, afirmação pela qual o eu retomaria seu sentido de único fundamento, ela é uma intersubjetividade absotua, ou se quisermos, primeira. Mas podemos dizer que o próprio Husserl jamais chegou a isto: a radicalidade do cogito transcendental, tal como é fundada nas Ideen I, mantém-se como o núcleo de toda a sua filosofia. Em Krisis II, por exemplo, encontramos esta significativa crítica dirigida ao transcendentalismo cartesiano: Descartes “não descobriu que todas as distinções do tipo Eu e Tu, dentro e fora, só se constituem no ego absoluto”. Assim o tu, como o isto, é apenas uma síntese de vivências egológicas.

E, no entanto, é no sentido dessa “sociologia cultural” que o pensamento de Husserl evolui no final de sua vida. É o que testemunha abundantemente a Krisís, de que foram publicadas as duas primeiras partes em 1936, em Belgrado. Husserl se preocupa em ligar estreitamente esta reflexão sobre a história, isto é, sobre a intersubjetividade, ao seu problema, o da radicalidade transcendental: “esse escrito procura fundar a necessidade inelutável de uma conversão da filosofia à fenomenologia transcendental por meio de uma tomada de consciência teleológico-histórica aplicada às origens da situação crítica em que estamos no que se refere às ciências e à filosofia. Este escrito constitui, por conseguinte, uma introdução independente à fenomenologia transcendental”. Em outros termos, o caminho percorrido até o presente e que, partindo dos problemas lógico-matemáticos ou do problema perceptivo nos levava ao eu absoluto, não é um caminho privilegiado: a via da história é igualmente segura. A elucidação da história na qual estamos empenhados ilumina a tarefa do filósofo. “Nós, que não temos apenas uma herança espiritual, mas que somos do começo ao fim, seres em devir segundo o espírito histórico, apenas em razão disso é que temos uma tarefa verdadeiramente nossa” (Krisis, 15); e o filósofo não pode não passar pela história porque o filósofo preocupado com a radicalidade deve compreender e ultrapassar os dados imediatos históricos, que são na realidade as sedimentações da história, os pressupostos, e que constituem seu “mundo” no sentido cultural. Ora, qual é a crise diante da qual nos encontramos? É a crise produto do objetivismo. Não se traia para sermos exatos, da crise da teoria física, mas da crise que atinge a significação das ciências para a própria vida. O que caracteriza o espírito moderno é a formalização lógico-matemática (a mesma que constituía a esperança das investigações lógicas) e a matematização do conhecimento natural: a mathesis universalis de Leibniz e a nova metodologia de Galileu.. Sobre esta base é que se desenvolve o objetivismo: descobrindo o mundo como matemática aplicada, Galileu redescobriu-a como obra da consciência (Kiisis II, § 9). Assim, o formalismo objetivista é alienador; esta alienação devia aparecer como mal-estar desde que a ciência objetiva viesse a apoderar-se do subjetivo: ela levava então à escolha entre construir o psíquico pelo modelo do físico ou então renunciar a estudar com rigor o psíquico pelo modelo do físico ou então renunciar a estudar com rigor o psíquico. Descartes anuncia a solução introduzindo o motivo transcendental: pelo cogito a verdade do mundo como fenômeno, como cogitatum lhe é restituída, a alienação objetivista que conduz às aporias metafísicas da alma e de Deus cessa então — ou pelo menos teria cessado, se o próprio Descartes não tivesse sido vítima, do objetivismo galileano e não houvesse confundido o cogito transcendental e o eu psicológico: a tese do ego res cogitans suprime todo o esforço transcendental. Daí deriva a dupla herança cartesiana: o racionalismo metafísico, que elimina o ego; o empirismo cético que arruína o saber. É somente o transcendentalismo, articulando todo saber sobre um ego fundamental, doador de sentido e que vive de uma vida pré-objetiva, pré-científica, num Lebenswelt imediato cuja ciência exata é apenas um revestimento, que dará ao objetivismo seu verdadeiro fundamento eliminando seu poder aliena-dor: a filosofia transcendental torna possível uma reconciliação do objetivismo e do subjetivismo, do saber abstraio e da vida concreta. Assim, a sorte da humanidade europeia, que é também a sorte da humanidade simplesmente, está ligada às possibilidades de conversão da filosofia à fenomenologia: “Nós somos, por nossa atividade filosófica, os funcionários da humanidade”.
++++
X. — A Lebenswelt. — Não podemos continuar a descrever a evolução de Husserl nesse sentido. Vemos que, a partir da doutrina da Wesenschau modificou-se sensivelmente a tônica de seu pensamento,- é, todavia, incontestável que esse pensamento permanece até o fim no eixo do problema central que é a radicalidade. Mas o ego absoluto, que era para o filósofo um pólo único idêntico e universal, aparece sob nova luz na história e na intersubjetividade. Husserl denomina-o por vezes a Leben (a vida), sujeito da Lebenswelt; sabíamos já que no fundo não há diferença entre o ego concreto e o sujeito transcendental; mas essa identificação é aqui sublinhada a ponto de se qualificar de empirismo o último aspecto da filosofia de Husserl (Wahl).

É na elaboração da grande questão suscitada desde as Recherches logiques, a de saber o que se entende por verdade, que se desenvolve principalmente a filosofia da Lebenswelt. É claro que a verdade não pode ser definida aqui pela adequação do pensamento a seu objeto, pois tal definição implicaria na afirmação de que o filósofo que define contempla primeiro todo o pensamento e, segundo, todo objeto na sua relação de exterioridade total: a fenomenologia nos ensinou que tal exterioridade é impensável. A verdade não pode também se definir somente como um conjunto de condições a priori, pois esse conjunto (ou sujeito transcendental à maneira kantiana) não pode dizer Eu, ele não é radical, ele é apenas um momento da subjetividade. A verdade só pode ser definida como experiência vivida da verdade: é a evidência. Mas essa vivência não é um sentimento, pois é claro que o sentimento não garante nada contra o erro; a evidência é o modo originário da intencionalidade, isto é, o momento da consciência em que a própria coisa de que se fala dá-se em carne e osso, em pessoa, à consciência, em que a intuição “se preenche”. Para poder responder a pergunta “é a parede amarela?” ou eu entro no quarto e olho para ela (é, no nível perceptivo, uma evidência originária a que Husserl denomina frequentemente “experiência”) ou então eu tento lembrar-me dela, ou então eu interrogo outrem a esse respeito; nos dois últimos casos, experimento se existe em mim ou em outrem uma “experiência”, ainda presente, da cor da parede. Toda justificação possível do juízo deverá passar por essa “experiência presente” da própria coisa; assim a evidência é o sentido de toda justificação ou de toda racionalização. É evidente que a experiência não se refere apenas ao objeto perceptivo, ela pode aplicar-se a um valor (beleza), em resumo, a qualquer dos modos intencionais enumerados acima. Entretanto, essa evidência ou vivência da verdade não apresenta total garantia contra o erro: sem dúvida há casos em que não temos a “experiência” daquilo de que falamos e, no entanto, experimentamo-lo em nós mesmos com evidência; mas, pode o erro inserir-se na própria evidência. Essa parede amarela, à luz do dia, me é revelada como cinza. Há então duas evidências sucessivas e contraditórias. A primeira que contém um erro. A isto Husserl responde na Logique formelle et transcendantale, § 8: “Mesmo uma evidência que se apresenta como apodítica pode revelar-se como ilusória, o que pressupõe, não obstante uma evidência do mesmo gênero, na qual ela “eclode”. Em outros termos, é sempre e exclusivamente na experiência atual que a experiência anterior me aparece como ilusória. Assim não existe uma “experiência verdadeira” em cuja direção dever-se-ia voltar como se fosse o indicador da verdade e do erro; a verdade se experimenta sempre e exclusivamente numa experiência atual, o sempre e exclusivamente numa experiência atual, o fluxo das vivências não se remonta, pode-se apenas dizer que se tal vivência se dá atualmente a mim como uma evidência passada e errônea essa atualidade constitui ela mesma uma nova “experiência” que exprime no presente vivo, ao mesmo tempo o erro passado e a verdade presente como a correção desse erro. Não há, portanto, verdade absoluta, postulado comum do dogmatismo e ao ceticismo, a verdade se define como revisão, correção e superação dela mesma, fazendo-se essa operação dialética sempre no seio do presente vivo (lebendige Gegenwart); assim, ao contrário do que se produz numa tese dogmática, o erro é compreensível, porque está implícito no próprio sentido da evidência pela qual a consciência constitui o verdadeiro. É, pois, necessário, para responder corretamente ao problema da verdade, isto é, para descrever corretamente a experiência do verdadeiro, insistir com ênfase sobre o devir genético do ego: a verdade não é um objeto, é um movimento e ela não existe a não ser que esse movimento seja efetivamente feito por mim.

Por conseguinte, para verificar um juízo, isto é, para extrair-lhe o sentido de verdade, é preciso proceder a uma análise regressiva que leve a uma “experiência” pré-categorial (antepredicativa), a qual constitui um pressuposto fundamental da lógica em geral (Aron Gurwitsch). Esse pressuposto não é um axioma lógico. Ele é condição filosófica de possibilidade, constitui o solo (Boden) no qual toda predicação tem raiz. Antes de toda ciência, aquilo que se examina nos é dado previamente numa “crença” passiva, e o “pré-dado universal passivo de toda atividade julgadora” é denominado “mundo”, “substrato absoluto, independente, no sentido profundo de independência absoluta” (Expérience ef jugement, 26 et 157). O fundamento radical de verdade se revela ao final de um retorno pela análise intencional à Lebenswelt, no seio da qual o sujeito constituinte “recebe as coisas” como sínteses passivas anteriores a todo saber rigoroso. “Essa receptividade deve ser vista como etapa inferior da atividade ” (ibid., 83), o que significa que o ego transcendental que constitui o sentido desses objetos se refere implicitamente a uma apreensão passiva do objete, a uma cumplicidade primordial que ele tem com o objeto. Essa alusão demasiado breve permite-nos precisar, finalizando, que o “mundo” de que se trata aqui não é evidentemente o mundo da ciência natural, ele é o conjunto ou ideia no sentido kantiano de tudo aquilo que existe e de que se pode ter consciência.

Assim, após a redução, que afastara o mundo sob sua forma constituída, para restituir ao ego constituinte sua autenticidade de doador de sentido, o desígnio husserliano ao explorar o próprio sentido dessa Sinngebung subjetiva reencontra o mundo como a própria realidade do constituinte. Não se trata, evidentemente, do mesmo mundo: o mundo natural é um mundo fetichizado no qual o homem se abandona como existente natural e onde ele “objetiva” ingenuamente a significação dos objetos. A redução procura apagar essa alienação e o mundo primordial que descobre ao prolongar-se é o solo de experiências vividas sobre o qual se eleva a verdade do conhecimento teórico. A verdade da ciência não é mais fundada em Deus como em Descartes nem nas condições a priori de possibilidade como em Kant, ela se funda sobre a vivência imediata de uma evidência pela qual o homem e o mundo se revelam concordes originariamente.