O termo fenomenologia recebeu de Hegel plena e especial acepção, com a publicação em 1807 de Die Phänomenologie des Geistes. A fenomenologia é “ciência da consciência”, “na medida em que a consciência é em geral o saber de um objeto, ou exterior ou interior”. Hegel escreve no Prefácio Fenomenologia: “O estar-ali imediato do espírito, a consciência, possui os dois momentos: o do saber e o da objetividade que é o negativo em relação ao saber. Quando o espírito se desenvolve nesse elemento da consciência e ali expõe seus momentos, esta oposição malogra a cada momento particular e eles surgem todos então como figuras da consciência. A ciência desse caminho é a ciência da experiência que a consciência realiza” (trad. J. Hyppolite, pp. 31-32). Assim, não há resposta à indagação se se deve, em filosofia, partir do objeto (realismo) ou do eu (idealismo) . A própria noção de fenomenologia dispensa essa questão: a consciência é sempre consciência de e não existe objeto que não seja objeto para. Não há imanência do objeto à consciência se não se atribui correlativamente ao objeto um sentido racional, sem o que o objeto não seriam um objeto para. O conceito ou sentido não é exterior ao ser, o ser é imediatamente conceito em si, e o conceito é ser para si. O pensamento do ser é o ser que se pensa a si mesmo e, por conseguinte, o “método” que emprega esse pensamento, a própria filosofia, não é constituída de um conjunto de categorias independentes daquilo que ela pensa, de seu conteúdo. A forma do pensamento não se distingue de seu conteúdo a não ser formalmente, ela é concretamente o próprio conteúdo que se apreende, o em-si que se torna por si. “Deve-se considerar as formas do pensamento era si e para si; pois elas são o objeto e a atividade do objeto” (Encyclopédie). Assim, o erro kantiano — mas que era um erro positivo enquanto momento no devir-verdade do Espírito — consistia em descobrir as formas e as categorias como fundamento absoluto do pensamento do objeto para o pensamento; o erro era admitir o transcendental como originário.
Segundo a identificação dialética do ser e do conceito, o problema da originariedade é, com efeito, “pulado”: não há começo imediato e absoluto, isto é, um algo sem a consciência ou uma consciência sem algo, pelo menos porque o conceito de começo ou de imediato contém como sua negação dialética a perspectiva de um progressão subsequente, de uma meditação: “A progressão não é supérflua; ela o seria se o começo fosse já verdadeiramente absoluto” (Science de la logique). Nada é absolutamente imediato, tudo é derivado, a rigor a única realidade “não derivada” é o conjunto do sistema das derivações, isto é, a Ideia absoluta da Lógica e o Saber da Fenomenologias: o resultado da mediação dialética aparece diante de si mesmo como único imediato absoluto. O saber absoluto, escreve Hyppolite, “não parte de uma origem, mas do próprio movimento partir, do minimum rationale que é a tíade Ser-Nada-Devir, quer dizer, ele parte do Absoluto como mediação, sob sua forma ainda imediata, a do devir” (Logique et existence, 95).
Esta dupla proposição hegeliana: o ser é já sentido ou conceito, não existe um originário que funde o conhecimento, permite delimitar com bastante clareza Husserl de Hegel a partir de sua crítica comum ao kantismo. Sobre a primeira parte dessa proposição, a fenomenologia husserliana se declara de acordo: o objeto é “constituído” pela sedimentação de significações, que não são as condições a priori de toda experiência no sentido kantiano, pois o entendimento que estabelece essas condições como fundadoras da experiência em geral é ele mesmo já fundamentado na experiência. Não há anterioridade lógica das categorias nem mesmo das formas pelas quais um sujeito transcendental se daria objetos; é, ao contrário, como o mostra Erfahrung und Urteil, os juízos e as categorias que eles empregam que supõem uma certeza primeira, aquela que existe o ser, isto é, a crença numa realidade. Husserl a denomina Glaube, fé, crença, para sublinhar que se trata de um pré-saber. Antes de toda atividade predicativa e mesmo antes de toda doação de sentido, mesmo quando se trata da percepção da coisa sensível, existe no seio da “apresentação passiva” “uma fé exercida e inelutável na existência de algum real… Fonte de todo saber e exercida nele (esta crença) não é inteiramente recuperável num saber propriamente dito o explícito” (Waelhens, Phénoménoiogie et vérité, págs. 52 e 50).
Se, portanto, a recuperação da totalidade do real (no sentido hegeliano) se revela impossível, é precisamente porque existe um real originário, imediato, absoluto que fundamenta toda recuperação possível. Dever-se-á, pois, dizer que ele é inefável, uma vez que é igualmente verdadeiro que todo logos, todo discurso racional, toda dialética do pensamento pressupõe por sua vez a fé originária? Haverá, pois, o ante-racional? Compreende-se que esta pergunta basta para distinguir nitidamente de Hegel a fenomenologia husserliana e pós-husserliana. “Não existe inefável para Hegel, escreve Hyppolite, aquém e além do saber, nem singularidade imediata ou transcendência; não existe silêncio ontológico, mas o discurso dialético é uma conquista progressiva do sentido. Isto não significa que esse sentido seja de direito anterior ao discurso que o descobre e o cria…, mas esse sentido se desenvolve no próprio discurso” (Logique et existence, 25-6). Hegel no artigo “Glauben und Wissen” se opunha já à transcendência do em-si kantiano como produto de uma filosofia do entendimento, para quem a presença do objeto se mantém como simples aparência de uma realidade escondida. Ora, não é uma outra e mesma transcendência que Husserl reintroduz, em Experience et jugement, sob a forma do Lebenswelt antepredicativo? Já que este mundo originário da vida é antepredicativo, toda predicação, todo discurso certamente o implica, mas o perde, e para sermos exatos, nada podemos dizer a respeito. Aqui igualmente, num sentido diferente é verdade, o Glauben substitui o Wissen e o silêncio da fé encerra o diálogo dos homens sobre o ser. Por isso a verdade de Husserl se encontraria em Heidegger para quem “a dualidade do eu e do ser é insuperável” (Waelhens) e para quem o pretendido saber absoluto apenas traduz o caráter “metafísico”, especulativo, inautêntico, do sistema que o supõe. O imediato, o originário de Husserl é para Hegel um mediato que se ignora como momento no devir total do ser e do Logos; mas, o absoluto de Hegel, isto é, o devir considerado como totalidade fechada sobre si mesma e para ela mesma na pessoa do sábio, é para Husserl fundado e não originário, especulativo e não “solo” de toda verdade possível.
Por conseguinte, quando Kojève demonstra na Introduction à la lecture de Hegel, que o método da Fenomenologia do espírito é o mesmo de Husserl “puramente descritivo e não dialético” (467), está certamente com a razão; é necessário, entretanto, acrescentar que a Fenomenologia hegeliana fecha o sistema, é a retomada total da realidade total no saber absoluto, enquanto que a descrição husserliana inaugura a apreensão da “própria coisa”, aquém de toda predicação, motivo pelo qual ela jamais deixou de se retomar, de se anular, pois é um combate da linguagem consigo mesma para atingir o originário (pode-se observar, a tal respeito, as semelhanças notáveis em todos os pontos aliás do “estilo” de Merleau-Ponty com o de Bergson). Nesse combate, a derrota do filósofo, do logos, é certa, um vez que o originário, descrito, não mais é originário na medida em que é descrito. Em Hegel, ao contrário, o ser imediato, o pretendido “originário” é já logos, sentido, não é absolutamente o resultado da análise regressiva, começo absoluto da existência, não se pode “considerar o começo como um imediato, mas como mediato e derivado, pois ele é por sua vez determinado segundo a determinação do resultado” (Science de la logique). Nenhum objeto, enquanto se apresenta como algo de externo, como distante da razão, como independente dela, pode resistir -lhe, ser diante dela de uma natureza particular, não ser penetrado por ela” (ibid.)
Aparentemente, portanto, o conflito é total entre o racionalismo hegeliano e Husserl. Se, todavia, se considera que a empresa fenomenológica é fundamentalmente contraditória enquanto designação pela linguagem de um significado pré-lógico no ser, ela é inacabada para sempre porque remetida dialeticamente do ser ao sentido através da análise intencional; então a verdade é devir e não somente “evidência atual”, ela é retomada e correção das evidências sucessivas, dialética das evidências; “a verdade — escreve Merleau-Ponty — é um outro nome da sedimentação, que é por sua vez a presença de todos os presentes no nosso” (Sobre a fenomenologia da linguagem, in Problèmes actuels de la phénoménologie, 107), a verdade é Sinngenesis, gênese do sentido. Portanto, se por outro lado se admite que “a Fenomenologia do Espírito é a filosofia militante, ainda não triunfante” (Merleau-Ponty), se se compreende o racionalismo hegeliano como aberto, o sistema como etapa, talvez Husserl e Hegel convirjam finalmente no “Queremos ver o verdadeiro sob forma de resultado” da Filosofia do Direito — com a condição, porém, de que esse resultado seja também momento.