Excertos de W. Luijpen, “Introdução à fenomenologia existencial”
A tentativa do materialismo de exprimir a realidade do ser do homem malogra, porque aduz só um aspecto da totalidade do ser humano, embora essencial. É, conforme uma expressão de Le Senne, uma espécie de “destotalização da realidade”. O materialismo redunda num monismo para o qual na totalidade só existe um tipo de ser, a saber, o das coisas materiais. Até o homem é uma coisa e sua vida um encadeamento de processos.
Em que consiste expressamente essa “destotalização”? Em termos gerais, pode defender-se a tese de que uma filosofia não fracassa tanto pelo que afirma, como pelo que silencia ou elimina da realidade. Isso se aplica muito bem ao materialismo. O meterialista não enxerga que o homem existe para si mesmo como homem, ou seja, que o ser-homem tem alcance e sentido para si, enquanto as coisas têm alcance e sentido para o homem e não para si mesmas ou para outras coisas. Se existissem apenas coisas, nada teria sentido. O materialismo esquece que só com o homem e por ele se pode falar de coisas e processos.
Que significa então que haja a “fala” sobre coisas ? Significa que se “diz” das coisas que existem e o que são. Mas como isso se torna possível ? Que vem a ser o “dizer” — é original que se supõe chegar à fala pelo que se exprime ? Respondemos que é o homem que fala as coisas a si mesmo. Por mais que o homem seja “coisificado”, jamais será possível deixar de pensar a “dimensão” pela qual lhe é possível falar as coisas e a si mesmo. Essa “dimensão”, contudo, não é a “coisificação” do homem, pelo menos se tivermos de aceitar, com todos os materialistas, que as camadas geológicas e as rajadas de chuva não falam nada. O homem distingue-se da coisa por sua capacidade de “falar”, por seu “dizer” — é. Eis pelo que o homem transcende a “coisificação” em seu ser e eis o que todos os não-materialistas chamam subjetividade.
O materialista, por conseguinte, nega simplesmente a subjetividade do homem.1 O ser do homem na altura de seu ser-homem é um ser-consciente, pelo qual o homem existe para si2 e pode dar-se um nome. O homem chama a si mesmo eu. Pela “luz” da subjetividade, do eu consciente que é o homem, existe para si e é “luz” no mundo das coisas, de modo a surgirem estas com sentido aos olhos do homem, ser-para-o homem, discutidas por ele.
Logo, o materialismo desconhece um momento essencial do ser-homem, uma vez que, afinal de contas, ignora que o ser humano é um ser-consciente. O materialista não pode defender-se dessa acusação dizendo que, como todos os processos relativos às coisas materiais, os atos conscientes do homem também podem ser reduzidos a um jogo de átomos e moléculas. Porque então ainda precisaria admitir que há alguns “átomos” que se distinguem dos outros pelo fato de existirem para si mesmos como átomos e de existirem os outros como átomos para eles, bem como por poderem eles filosofar sobre si mesmos e sobre os outros átomos ou elaborar uma teoria atômica. A esses “átomos” chamamos homens. Reduzindo-se o homem a um conglomerado de átomos, elimina-se o “dizer” — é das ciências naturais e a possibilidade de formular uma teoria atômica.
O materialismo vive, portanto, de uma contradição oculta,3 por ser totalmente impossível ao materialista, como filósofo materialista, explicar seu próprio ser, desde que continue aferrado à ideia de existir um só tipo de ser, a saber, o das coisas. A contradição consiste em que, de um lado, o filósofo materialista admite que as camadas geológicas, as chuvaradas, as plantas e os bichos não são capazes de criar uma filosofia, ainda que materialista, enquanto que, de outro lado, quer explicar, como filósofo materialista, seu próprio ser, recorrendo às mesmas categorias pelas quais exprime o ser das camadas geológicas, chuvaradas, plantas e animais. No materialismo encontramos não só o mundo material, mas, também, o filósofo materialista,4 cuja existência permanece incompreendida.
O fato de terem as coisas e os processos um sentido para o homem, como sujeito consciente, justifica o reconhecimento de certa prioridade da subjetividade sobre as coisas. Quem deixa de lado o sujeito, que é o homem, abandona todo o sentido, e o termo “ser” perde consequentemente sua importância. Porque o que poderia significar o termo “ser” sem a afirmação de ser por um sujeito ? Que sentidos humanos e importância no mundo das coisas poderiam ainda ser aceitos como reais, se, na ausência do sujeito, o ser só mereceria chamar-se ser-para-ninguém ? De mais a mais, só posso supor a ausência do sujeito enquanto não faço de fato tal suposição ! Apenas a posso formular verbalmente. O sujeito é, na verdade, incontestável, mostrando certa precedência, certo primado em relação ao mundo das coisas.
“Não sou o resultado ou cruzamento das múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu ‘psiquismo’; não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar-me sob o universo da ciência. Tudo o que sei do mundo, ainda que pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não significariam nada”. PP, Avant-propos, p. II. ↩
“Minha consciência não poderia ser em nenhum caso uma coisa, porque seu modo de ser em si é precisamente um ser para si”. J-P Sartre, L’imagination, Paris, 1948, p. 1. ↩
“As concepções científicas segundo as quais sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque subentendem, sem mencioná-la, esta outra concepção, a da consciência, só pela qual um mundo se dispõe em redor de mim e começa a existir para mim”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Avant-propos, p. III. ↩
“O materialismo, que quer reduzir todo o ser a um jogo de partículas em movimento, explicáveis apenas causalmente, não pode ser refutado por conceitos a priori. Não contém uma contradictio in terminis, mas sim uma contradictio in actu exercito, i. e., encontramos no materialismo, ao lado do sistema do mundo material, com suas leis causais, a afirmação do mundo e a prática consciente da explicação causal, e isto é um ato de consciência, que, visto em sua estrutura essencial, está acima do determinismo causal”. A. Dondeyne, Belang voor de Metaphysica van een aceurate bestaansbeschrijving van de mens ais kennend wezen, em: Kenleer en Metaphysiek (Verslag van de twaalfde algemene vergadering der Vereniging voor Thomistische Wijsbegeerte en van de derde studiedagen van het Wijsgerig Gezelschap le Leuven), Nijmegen, 1947, p. 39. ↩