Leonor Santos: sabedoria e prudência

Designando aquilo que pode ser ou não ser, ou seja, que pode ser diferente do que é, a contingência permite-nos chegar ao mundo humano, ainda que aparentemente Aristóteles admita a sua existência fora da acção humana, como teremos oportunidade de explanar aquando da análise do acaso. Mas, para já, importa regressar ao mundo humano para referir os três atributos essenciais que o caracterizam e que estão relacionados com a contingência: a mutabilidade, a indeterminação e a particularidade. É graças a estes atributos que se impõe um saber específico para o domínio privilegiado da contingência, pois a sophia, saber do imutável, não tem utilidade num mundo que comporta alguma indeterminação e um certo inacabamento. Desta forma, a phronesis, enquanto virtude da praxis, não se coaduna com regras universais, pelo que o phronimos faz uso de uma flexibilidade ajustada aos elementos particulares , os quais concorrem para a indeterminação dos assuntos práticos, bem como para a sua mutabilidade. Na verdade, agir (tal como produzir) é supor a indeterminação e o inacabamento de um mundo que o homem é chamado a modificar. Se no mundo das coisas humanas estivesse estabelecido que nada pode ser diferente daquilo que é, não haveria lugar para a praxis. Donde podermos dizer com Pierre Aubenque que «a teoria da prudência é, pois, solidária de uma cosmologia e, mais profundamente, de uma ontologia da contingência […].» Do exposto resulta a diferença fundamental entre a filosofia teórica e a filosofia prática, bem como o fundamento da duplicidade de critérios que as distingue: uma diferença ontológica que tem como correlato uma distinção epistemológica entre theoria e praxis e os respectivos saberes, episteme e phronesis. Nem a prudência é episteme, pelo que não possui o estatuto epistemológico da sophia, nem os objectos da praxis comungam da superioridade ontológica da theoria, num contexto em que a perfeição é sinónimo de necessidade e a contingência é apanágio dos entes privados de perfeição.

[SANTOS, Ana Leonor. [Para uma Ética do “como se”. Contingência e Liberdade em Aristóteles e Kant.->http://www.lusosofia.net/textos/santos_ana_leonor_para_uma_etica_do_como_se.pdf] Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008, LUSOSOFIA]