Xavier de Melo Carneiro
”KIERKEGAARD, Soeren. Tratado do Desespero. Introdução e Tradução de José Xavier de Melo Carneiro. Brasília: Coordenada-Editora de Brasília, 1969, p. 43-44.”
Doença do espírito, do eu, o desespero pode assumir três figuras: o desesperado inconsciente de ter um eu (o que não é verdadeiro desespero); o desesperado que não quer ser ele mesmo e o desesperado que quer sê-lo.
O homem é espírito. Mas o que é o espírito? É o eu. E o eu, então? O eu é uma relação que se relaciona consigo mesma. Dito de outra maneira, ele é, na relação, a orientação interior da mesma; o eu não é a relação mas o voltar-se da relação sobre si mesma.
O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, uma síntese, em suma. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda.
Numa relação entre dois termos, a relação entra como terceiro, como unidade negativa, e os dois termos se relacionam com a relação, cada um existindo no seu relacionar-se com a relação; assim, no que concerne à alma, a relação da alma e do corpo não é senão uma relação simples. Se, pelo contrário, a relação se relaciona consigo mesma, esta última relação é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.
Uma tal relação, que se relaciona consigo mesma, um eu, não pode ter sido estabelecida senão por si mesma ou por um outro.
Se o foi por um outro, essa relação é, certamente, um terceiro termo, mas este é ainda, ao mesmo tempo, uma relação, isto é, relaciona-se com o que estabeleceu toda a relação.
Uma tal relação assim derivada ou estabelecida é o eu do homem; é uma relação que se relaciona consigo mesma e também com um outro. Daí haver duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu tivesse, ele mesmo, se estabelecido, uma única existiria: não querer ser si mesmo, querer desembaraçar-se do seu eu, e não poderia haver esta outra: a vontade desesperada de ser si mesmo. O que esta fórmula, com efeito, traduz, é a dependência do conjunto da relação que é o eu, isto é, a incapacidade de o eu atingir, por suas próprias forças, o equilíbrio e o repouso: tão não lhe é possível, na sua relação consigo mesmo, senão relacionando-se com o que estabeleceu o conjunto da relação. Mas ainda: esta segunda forma de desespero (a vontade de ser si mesmo) designa tão pouco uma maneira especial de desespero, que, pelo contrário, todo desespero nela finalmente se resolve e a ela remonta. Se o homem que desespera é, como ele o crê, consciente do seu desespero, se a ele não se refere, absurdamente, como a um fato originado fora de si mesmo (um pouco como alguém que sofre de vertigens e, enganado pelos seus nervos, a elas se refere como a um peso sobre sua cabeça, como a um corpo que lhe tivesse caído em cima, etc., quando o peso ou a pressão outra coisa não é senão, sem nada de externo, uma sensação interna, que retorna), se este desesperado quer por força, por si mesmo e só por si mesmo, suprimir o desespero, ele diz que não o consegue e que todo o seu ilusório esforço somente o faz afundar-se mais. A discordância do desespero não é uma discordância simples, mas a de uma relação que, apesar de relacionar-se consigo mesma, é estabelecida por um outro; de modo que a discordância desta relação, existindo em si, se reflete além disso ao infinito na sua relação com o seu autor.
Eis, portanto, a fórmula que descreve o estado do eu, quando se lhe extirpa por completo o desespero: orientando-se para si mesmo, querendo ser si mesmo, o eu mergulha, através da sua própria transparência, no poder que o criou.
”KIERKEGAARD, Soeren. O Desespero Humano. Tr. Adolfo Casais Monteiro. Coleção Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1979.”
Doença do espírito, do eu, o desespero pode como tal tomar três figuras:
O desespero inconsciente de ter um eu (o que é verdadeiro desespero); o desespero que não quer, e o desespero que quer ser ele próprio.
O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida.
O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda.
Numa relação de dois termos, a própria relação entra como um terceiro, como unidade negativa, e cada um daqueles termos se relaciona com a relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-se com a relação; assim acontece com respeito à alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação.
Uma tal relação, que se orienta sobre si própria, não pode ter sido estabelecida senão por si ou por um outro. Se o foi por um outro, essa relação é, sem dúvida, um terceiro termo, mas este é ainda, ao mesmo tempo, uma relação, isto é, relaciona-se com quem estabeleceu toda a relação.
Uma relação desse modo derivada ou estabelecida é o eu do homem; é uma relação que não é apenas consigo própria, mas com outrem. Daí provém que haja duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu tivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu, e não poderia existir esta outra: a vontade desesperada de sermos nós próprios. O que esta fórmula, com efeito, traduz é a dependência do conjunto da relação, que é o eu, isto é, a incapacidade de, pelas suas próprias forças, o eu conseguir o equilíbrio e o repouso; isso não lhe é possível, na sua relação consigo próprio, senão relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação. Mais ainda: esta segunda forma de desespero (a vontade de sermos nós próprios) designa tampouco uma maneira especial de desesperar, que, pelo contrário, nela finalmente se resolve e a ela se reduz todo o desespero. Se o homem que desespera tem, como ele crê, consciência do seu desespero, se não se lhe refere como a um fenômeno de origem exterior (um pouco como uma pessoa que, sofrendo de vertigens, e iludida pelos seus nervos, a elas se refere como se fossem um peso sobre a cabeça, um corpo que lhe tivesse caído em cima, etc…., quando o peso ou a pressão não é outra coisa senão, sem nada de externo, uma sensação interna) se este desesperado quer por força, por si e só por si, suprimir o desespero, ele dirá que não o pode conseguir, e que todo o seu ilusório esforço o conduz somente a afundar-se ainda mais. No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a de uma relação que, embora orientada sobre si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em si, se reflete além disso até o infinito na sua relação com o seu autor.
Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.
KIERKEGAARD, Soeren. Traité du désespoir. Tr. Knud Ferlov & Jean-Jacques Gateau. Paris: Gallimard, 1949, p. 61-63.
Maladie de l’esprit, du moi, le désespoir peut ainsi prendre trois figures : le désespéré inconscient d’avoir un moi (ce qui n’est pas du véritable désespoir); le désespéré qui ne veut pas être lui-même et celui qui veut l’être.
L’homme est esprit. Mais qu’est-ce que l’esprit ? C’est le moi. Mais alors, le moi ? Le moi est un rapport se rapportant à lui-même, autrement dit il est dans le rapport l’orientation intérieure de ce rapport ; le moi n’est pas le rapport, mais le retour sur lui-même du rapport.
L’homme est un synthèse d’infini et de fini, de temporel et d’éternel, de liberté et de nécessité, bref une synthèse. Une synthèse est le rapport de deux termes. De ce point de vue le moi n’existe pas encore.
Dans un rapport entre deux termes, le rapport entre en tiers comme unité négative et les deux termes se rapportent au rapport, chacun existant dans son rapport au rapport ; ainsi pour ce qui est de l’âme, la relation de l’âme et du corps n’est qu’un simple rapport. Si, au contraire, le rapport se rapporte à lui-même, ce dernier rapport est un tiers positif et nous avons le moi.
Un tel rapport, qui se rapporte à lui-même, un moi, ne peut avoir été posé que par lui-même ou par un autre.
Si le rapport qui se rapporte à lui-même a été posé par un autre, ce rapport, certes, est bien un tiers, mais ce tiers est encore en même temps un rapport, c’est-à-dire qu’il se rapporte
Un tel rapport ainsi dérivé ou posé est le moi de l’homme : c’est un rapport qui se rapporte à lui-même et, ce faisant, à un autre. De là vient qu’il y a deux formes du véritable désespoir. Si notre moi s’était posé lui-même, il n’en existerait qu’une : ne pas vouloir être soi-même, vouloir se débarrasser de son moi, et il ne saurait s’agir de cette autre : la volonté désespérée d’être soi-même. Ce qu’en effet cette formule-ci traduit, c’est la dépendance de l’ensemble du rapport, qui est le moi, c’est-à-dire l’incapacité du moi d’atteindre par ses seules forces à l’équilibre et au repos : il ne le peut, dans son rapport à lui-même, qu’en se rapportant à ce qui a posé l’ensemble du rapport. Bien plus : cette seconde forme de désespoir (la volonté d’être soi) désigne si peu un mode spécial de désespérer, qu’au contraire, tout désespoir se résout finalement en lui et s’y ramène. Si l’homme qui désespère est, ainsi qu’il le croit, conscient de son désespoir, s’il n’en parle en absurde comme d’un fait advenu du dehors (un peu comme quelqu’un qui souffre du vertige et, dupe de ses nerfs, en parle comme d’une lourdeur sur sa tête, comme d’un corps qui serait tombé sur lui, etc., alors que lourdeur ou pression, ce n’est, sans rien d’externe, qu’une sensation interne, retournée), si ce désespéré veut à toutes forces, par lui-même et rien que par lui-même, supprimer le désespoir, il dit qu’il n’en sort pas et que tout son effort illusoire l’y enfonce seulement davantage. La discordance du désespoir n’est pas une simple discordance, mais celle d’un rapport, qui, tout en se rapportant à lui-même, est posé par un autre ; ainsi la discordance de ce rapport, existant en soi, se reflète en outre à l’infini dans son rapport à son auteur.
Voici donc la formule qui décrit l’état du moi, quand le désespoir en est entièrement extirpé : en s’orientant vers lui-même, en voulant être lui-même, le moi plonge, à travers sa propre transparence, dans la puissance qui l’a posé.
KIERKEGAARD, Soeren. THE SICKNESS UNTO DEATH. A CHRISTIAN PSYCHOLOGICAL EXPOSITION FOR UPBUILDING AND AWAKENING. Edited and Translated with Introduction and Notes by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton: Princeton University Press, 1980, 13-14.
DESPAIR IS A SICKNESS OF THE SPIRIT, OF THE SELF, AND ACCORDINGLY CAN TAKE THREE FORMS: IN DESPAIR NOT TO BE CONSCIOUS OF HAVING A SELF (NOT DESPAIR IN THE STRICT SENSE); IN DESPAIR NOT TO WILL TO BE ONESELF; IN DESPAIR TO WILL TO BE ONESELF
A human being is spirit. But what is spirit? Spirit is the self. But what is the self? The self is a relation that relates itself to itself or is the relation’s relating itself to itself in the relation; the self is not the relation but is the relation’s relating itself to itself. A human being is a synthesis of the infinite and the finite, of the temporal and the eternal, of freedom and necessity, in short, a synthesis. A synthesis is a relation between two. Considered in this way, a human being is still not a self
In the relation between two, the relation is the third as a negative unity, and the two relate to the relation and in the relation to the relation; thus under the qualification of the psychical the relation between the psychical and the physical is a relation. If, however, the relation relates itself to itself, this relation is the positive third, and this is the self.
Such a relation that relates itself to itself, a self, must either have established itself or have been established by another. If the relation that relates itself to itself has been established by another, then the relation is indeed the third, but this relation, the third, is yet again a relation and relates itself to that which established the entire relation.
The human self is such a derived, established relation, a relation that relates itself to itself and in relating itself to itself relates itself to another. This is why there can be two forms of despair in the strict sense. If a human self had itself established itself, then there could be only one form: not to will to be oneself, to will to do away with oneself, but there could not be the form: in despair to will to be oneself. This second formulation is specifically the expression for the complete dependence of the relation (of the self), the expression for the inability of the self to arrive at or to be in equilibrium and rest by itself, but only, in relating itself to itself, by relating itself to that which has established the entire relation. Yes, this second form of despair (in despair to will to be oneself) is so far from designating merely a distinctive kind of despair that, on the contrary, all despair ultimately can be traced back to and be resolved in it. If the despairing person is aware of his despair, as he thinks he is, and does not speak meaninglessly of it as of something that is happening to him (somewhat as one suffering from dizziness speaks in nervous delusion of a weight on his head or of something that has fallen down on him, etc., a weight and a pressure that nevertheless are not something external but a reverse reflection of the internal) and now with all his power seeks to break the despair by himself and by himself alone—he is still in despair and with all his presumed effort only works himself all the deeper into deeper despair. The misrelation of despair is not a simple misrelation but a misrelation in a relation that relates itself to itself and has been established by another, so that the misrelation in that relation which is for itself [for sig] also reflects itself infinitely in the relation to the power that established it.
The formula that describes the state of the self when despair is completely rooted out is this: in relating itself to itself and in willing to be itself, the self rests transparently in the power that established it.