Husserl – Evidência e verdade

O empirismo em geral, tal como desconhece a relação existente no pensamento entre ideal e real, assim desconhece também a relação entre verdade e evidência. A evidência não é um sentimento acessório que, acidentalmente ou segundo uma lei da natureza, se junta a certos juízos. Não é, de modo nenhum, um carácter psíquico que se deixasse simplesmente aplicar a qualquer juízo de uma certa classe (isto é, aos juízos chamados «verdadeiros»); de tal maneira que o conteúdo fenomenológico do juízo em questão, considerado em si mesmo, permanecesse identicamente o mesmo, fosse ou não revestido desse carácter. Não se trata, em nada, de algo análogo àquilo que costumamos representar-nos com a conexão dos conteúdos sensoriais e dos sentimentos que a eles se relacionam: duas pessoas têm as mesmas sensações, mas que provocam nelas sentimentos diferentes. A evidência, pelo contrário, não é mais que o «vivido» da verdade. A verdade é vivida, não tem, naturalmente, outro sentido senão aquele pelo qual entendemos que um ser ideal em geral pode ser um vivido no ato real. Por outras palavras: a verdade é uma ideia, da qual um caso particular, no juízo evidente, é um vivido atual. Ora, o juízo evidente é uma consciência de um dado originário. A sua relação com o juízo não evidente é análoga à relação de toda a posição representativa de um objeto relativamente à sua percepção adequada. O que é adequadamente percepcionado não é simplesmente objeto de um visar qualquer, mas, pelo contrário, é, tal como é visado, dado igualmente no ato de forma originária, isto é, apreendido integralmente e como estando ele mesmo presente. Do mesmo modo, o que é julgado na evidência não é simplesmente julgado (visado segundo o modo judicativo, enunciativo, afirmativo) mas é dado no vivido do juízo como estando mesmo presente — presente no sentido em que um estado de coisas pode estar «presente» com tal ou tal compreensão de sentido e, consoante o gênero a que pertence, como sendo particular ou geral, empírico ou ideal, etc. A analogia que liga todos os vividos que se dão originariamente conduz então a expressões análogas: chamamos evidência uma visão, uma intuição, uma apreensão do estado de coisas ele mesmo dado («verdadeiro») ou ainda, por um equívoco bem compreensível, da verdade. E, tal como no domínio da percepção o não-ver não coincide, de modo nenhum, com o não-ser, também a falta de evidência não tem a mesma significação que a ausência de verdade. O vivido da concordância entre a intenção e o próprio objeto presente que ela visa, entre o sentido atual do enunciado e o próprio estado de coisas dado, é a evidência, e a ideia desta concordância é a verdade. Ora, é a idealidade da verdade que constitui a sua objetividade. Não é um fato contingente que uma proposição pensada hic et nunc concorde com um estado de coisas dado. Esta relação diz respeito, pelo contrário, à significação idêntica da proposição e ao estado de coisas idêntico. A «validade» ou «objetividade» (ou, consoante o caso, a «não validade», «a ausência-de-objeto») não cabe ao enunciado enquanto tal vivido temporal, mas ao enunciado in specie, ao enunciado (puro e idêntico) 2×2 são 4, e outros do mesmo gênero.

{(Investigações Lógicas, I, trad. H. Élie, A. L. Kelkel e R. Schérer, Presses Universitaires de France, pp. 209-211).}