Harada (2009b) – Teoria das Ciências

Hoje, se quisermos saber o que é ciência, devemos recorrer à assim chamada teoria das ciências. Parece que um outro termo para indicar essa disciplina é meta-ciência.

Mas o problema, aqui, aliás como em toda parte hoje, é que existem várias teorias das ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria ciência, surgida dentro das próprias ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais quando falamos das ciências hoje ou quando falamos da necessidade de estarmos aggiornados para nossa era científica. O que se segue está baseado no artigo de Heinrich Rombach, intitulado “Wissenschaftstheorie und Philosophie” [In: ROMBACH, H. (ed.). Wissenschaftstheorie. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1974, p. 12-19.]. Aqui daremos um pequeno resumo de parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das ciências que poderíamos chamar de teoria ingênua das ciências. Embora obsoleta, essa teoria ingênua das ciências está presente ainda hoje em toda parte, na nossa compreensão usual e popularizada da ciência, nas publicações, mesmo especializadas, sobre o assunto e na mente de muitos cientistas, eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das ciências e a ingenuidade ou a boa-fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim dogmatiza e fixa um conceito unilateral da ciência? Em geral, o teorético ingênuo das ciências retira da ciência esse conceito unilateral, ciência na qual ele é especialista. Ele faz essa generalização porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, haveria também historicamente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos, surgirem novas ciências, evoluir, mas todas elas têm o mesmo conceito de ciência. Em todas elas, a cientificidade é sempre a mesma. É o modo típico de pensar de A. Comte, quando fala de “regime définitif de la raison humaine”, i.é, a era da ciência positiva. É o conceito de ciência do positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção de ciência, tudo que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. O saber científico, ao contrário, é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das ciências se caracteriza pelos seguintes preconceitos:

a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se podem dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Essas informações nos dizem o que é objetivamente ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.

b) Assim, existe propriamente apenas uma única ciência (e uma só cientificidade). A multiplicidade das ciências surge apenas devido à multiplicação dos objetos da ciência. Em sua multiplicidade, as ciências são como que diferentes objetos sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma ciência conhece a ciência.

c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e definitiva definição de cientificidade da ciência. Por isso, através das histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos corre uma linha contínua e bem definida do que seja e o que deve ser ciências. O conceito de ciência não tem história. História só têm os conhecimentos que, dentro desse conceito, evoluem, crescem segundo a cientificidade. A história dos conhecimentos científicos se dá dentro de um horizonte de cientificidade único, supra-histórico e imutável.

d) Por mais diferentes que sejam as ciências, o desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. Tudo que não segue essa lógica ou está fora dela só tem valor de verdade enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na teologia, onde a ciência é considerada um conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, visto que o modo de ser dos dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da ciência sui generis chamada teologia; ao passo que, nas ciências, onde se pretende ser radicalmente questionador e crítico, o maior pecado que se pode cometer é o dogmatismo.

Começamos a despertar para a consciência crítica da nova teoria das ciências quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. É que não existe a ciência, mas apenas ciências. E se, de alguma forma, pudermos falar de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuos, vai crescendo numa transmutação contínua.

O reinado do absolutismo do conceito unilateral da ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o avanço das ciências, que progridem não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico de ciência de modelo matemático e lógico, do conceito empirístico-positivista nos moldes da física e da biologia, do conceito materialista nos moldes da química, do conceito relativista nos moldes da historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização anticientíficas dos conceitos unilaterais da ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciência, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.

Essa nova atitude científica da nova consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:

a) Não há um conceito de ciência fixo, parado; não há portanto uma forma fundamental de “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas se dá interação de influência mútua.

b) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem o que é conhecimento científico e o que não é devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado no item a) acima.

c) Não há conceito de ciência aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração’, método etc. etc., têm um significado diverso nas diferentes ciências particulares ou nos diferentes grupos de ciências.

d) Como existe uma pluralidade de métodos de ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular pode existir uma pluralidade de métodos, que coexistem numa ambiguidade complementar. Os métodos recebem seu aviamento a partir do toque de abordagem principal e, assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, criando dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementariedade, que não é ajuntamento nem síntese, não é substituição nem mistura, mas uma tensão que contém a espera de uma descoberta. Temos um exemplo disso na abordagem ondulatória e na abordagem corpuscular da luz na física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.

e) Cada ciência permanece em questão até a raiz de seus fundamentos, desde os mais principais e básicos. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.

f) No questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, a nova consciência científica sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Sabe porém que as regras de jogo imanentes à própria ciência, provenientes dos fundamentos auto-constitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionarem-se como ciências, sabem-se partícipes das convicções operativas fundamentais de seu tempo e de sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstraem, mas assumem plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evitam cair no dogmatismo do historicismo e do sociologismo. Por isso, a consciência científica não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, como um dogmatismo não científico.

g) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações, tais como saber-objeto, homem-realidade, teoria-práxis etc. etc., não é mais colocada ingênua, externa e materialmente, mas como circulação de mútua interação. A ciência não está diante, contra, em frente à vida, à realidade, mas está nela inserida. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.

À primeira vista, essa nova compreensão dinâmica das ciências parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade num fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é considerada ciência.

Na realidade, porém, não se trata de uma dissolução numa confusão e num caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração dos velhos e obsoletos ídolos do dogmatismo e tomá-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutiza-da, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma mathesis universalis.

Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a filosofia.