Giuseppe Lumia: a filosofia da existência – Nietzsche

Se Kierkegaard forneceu ao existencialismo o motivo divino, Nietzsche forneceu-lhe o motivo demoníaco. Com Nietzsche, a crise dos valores que atormenta o mundo moderno atinge plena consciência.

Contrariamente ao fácil otimismo do seu século, ele reconhece que a vida é dor, luta, incerteza, erro; mas repele a atitude de renúncia que conduz à ascese, e aceita a vida como ela é, com os seus caracteres irracionais e absurdos. Condena a moral cristã e, pela boca do profeta Zaratustra, proclama a radical inversão dos valores como consequência da nova atitude para com a vida. A tentativa de fundação da nova moral culmina em aguardar o super-homem, o qual incarnará a vontade de poder que vibra no universo.

Importa aqui sublinhar como é clara em Nietzsche a consciência da crise dos valores tradicionais, fundados na fé em uma ordem objetiva e universal. Para Nietzsche não existe a verdade, que seja adequação da mente a uma realidade objetiva, mas existe somente a minha verdade, aquilo que eu quero que seja verdade. Não existe um Bem que eu deva reconhecer e ao qual deva submeter-me, mas existe somente aquilo que eu quero que seja bem. O imperativo kantiano: tu deves, Nietzsche substitui-o por um novo imperativo: eu quero. A fonte dos valores é assim transferida de uma realidade objetiva — o Deus cristão ou o sujeito transcendental — para o indivíduo, livre de determinar à sua vida a meta que prefere, e de usar para atingi-la os meios que julgue mais idôneos. Nietzsche não esconde as trágicas consequências que desta concepção possam derivar, mas afirma que o homem superior deve ter a coragem de aceitá-las, deve aceitar a luta, e o risco de sucumbir na luta. Só assim ele poderá resgatar a sua liberdade, deixando ao rebanho dos escravos as virtudes da resignação e da renúncia. A atitude positiva perante a vida, que se exprime, ao nível do homem, no «amor fati», na alegre aceitação da realidade tal como é, e que transforma a necessidade em liberdade, na ordem cósmica traduz-se na fórmula do «eterno regresso», que é o sim que o mundo diz a si mesmo, a voluntária auto-aceitação do mundo, a sua vontade de reafirmar-se e, por isso, de voltar eternamento a si próprio.

Anunciando a morte de Deus e a abrogação das suas leis, Nietzsche põe o homem, o homem singular, diante do seu destino, que é aquele que ele mesmo saberá forjar com as suas mãos, sem esperança alguma de ajuda do alto. Cada homem deve criar os seus próprios valores; a grande lâmpada da moralidade tradicional apagou-se; não resta mais a cada um de nós, para orientar-se na vida, que o próprio critério individual de julgar.

A condenação da sociedade, dos seus vínculos e das suas instituições, não é em Nietzsche menos severa do que a pronunciada por Kierkegaard. O super-homem de Nietzsche, como o singular de Kierkegaard, não se realiza senão sob condição de uma total renúncia às usuais relações garantidas pelas estruturas sociais, O super-homem deve desprezar o que os outros tem em apreço, crenças, preconceitos, hábitos, e erguer-se em solidão, paladino incorrupto das suas próprias possibilidades. Ele deve elevar-se da multidão dos escravos, para os quais vale a lei da resignação e do amor, e impor ao mundo a sua concepção da vida. O seu imperativo é: «torna-te tu mesmo», não já no sentido — explica Abbagnano — da concentração em uma escolha ou em um fim único, mas no sentido da máxima diferenciação dos outros, de fechar-se na própria excepcionalidade, da procura de uma solidão inacessível. O super-homem não pode realizar a sua missão senão colocando-se fora de e contra a sociedade. Esta última é insensível à grandeza da sua tarefa excepcional, e tudo faz para impedir-lhe o triunfo. Regras morais, leis jurídicas, preconceitos religiosos, não são mais, para Nietzsche, do que mesquinhos expedientes com os quais os débeis procuram acorrentar os mais fortes, opondo ao sacrossanto direito destes últimos os seus farisaicos ideais de justiça, de fraternidade, de igualdade.

Vale a pena notar que a recusa dos valores tradicionais por que se rege a convivência humana é comum a Kierkegaard e a Nietzsche. Abraão, que não hesita em levantar o punhal para o próprio filho inocente, o super-homem, que proclama o direito do mais forte, embora por vias diferentes colocam-se fora da moralidade corrente. Para um e para outro a conquista da autenticidade da existência comporta o abandono do plano humano, a negação do homem: em Kierkegaard, o homem nega-se abandonando-se a Deus; em Nietzsche, ultrapassando-se no super-homem. Para um, o homem anula-se na Transcendência, para outro anula-se transcendendo-se a si próprio.