A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, é inteiramente dominada pelo modelo das ciências da natureza. Mostra-o um simples olhar lançado à expressão “ciências do espírito”, desde que essa expressão receba o significado que nos é familiar, unicamente através de sua forma plural. As ciências do espírito se entendem tão clarividentes, graças à sua analogia com as ciência da natureza, tanto que o eco idealístico, que se situa no conceito do espírito e da ciência do espírito, retrocede. A expressão “ciências do espírito” se popularizou principalmente através do tradutor da lógica de John St. Mill. Na sua obra, Mill procura, suplementarmente, esboçar as possibilidades que o emprego da lógica da indução possui sobre as moral scienses. O tradutor diz, para isso, “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). Já do contexto da Lógica de Mill, percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas, ao contrário, de demonstrar que é o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, que vale exclusivamente também nesse âmbito. Mill encontra-se assim em meio a uma tradição inglesa, cuja formulação mais eficaz foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo nas ciências morais o que importa é reconhecer a uniformidade, a regularidade, a legalidade, que tornam previsíveis os fenômenos e processos individuais. Mesmo no terreno dos fenômenos da natureza não chega a ser alcançável da mesma maneira por toda parte. No entanto, o motivo disso se encontra exclusivamente no fato de que, os dados em que se poderiam reconhecer as uniformidades não são obtidos suficientemente em todos os lugares. Embora a meteorologia trabalhe tão metodicamente quanto a física, acontece apenas que seus dados são mais incompletos e, por isso, mais inseguras suas previsões. A mesma coisa vigora nos campos dos fenômenos morais e sociais. A utilização do método indutivo terá de também ficar isenta de todas as hipóteses metafísicas, mantendo-se inteiramente independente de como se imagina o estabelecimento dos fenômenos que se está observando. Não se está, por exemplo, averiguando as causas de determinados efeitos, mas simplesmente constatando regularidades. Assim, torna-se completamente indiferente se, por exemplo, acreditamos ou não no livre-arbítrio — no terreno da VIDA SOCIAL pode-se, em todo caso, chegar a fazer previsões. Tirar consequências da regularidade com relação a fenômenos esperados não inclui nenhuma acepção sobre a espécie de conexão, cuja regularidade possibilita a previsão. O surgimento de decisões livres — caso tais decisões existam — não interrompe o processo regular, porém pertence, ela mesma, à generalidade e à regularidade que são obtidas através da indução. Representa o ideal de uma ciência da natureza da sociedade, que aqui se desenvolve programáticamente, do qual em alguns campos surgiram pesquisas plenas de êxito. Basta pensar na psicologia de massa. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Já examinamos acima o significado do conceito do gosto nessa correlação. Todavia, a unidade de um ideal do gosto, que caracteriza e une uma sociedade, é caracteristicamente diferente daquilo que perfaz a configuração da formação estética. O gosto segue ainda um padrão de conteúdo. O que é válido numa sociedade, qual o gosto que predomina nela, é isso que cunha a comunhão da VIDA SOCIAL. Uma tal sociedade seleciona e sabe o que pertence ou não a ela. Também a posse de interesses artísticos não é para ela casual e, segundo a ideia, universal, mas o que os artistas criam e o que a sociedade aprecia, eis o que faz parte integrante da unidade de um estilo de vida e de um ideal do gosto. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
O modelo fundamental de todo consenso é o diálogo, a conversa. Sabe-se que uma conversa não é possível, se uma das partes crê absolutamente estar numa posição superior em relação à outra, algo como se afirmasse possuir um conhecimento prévio dos preconceitos a que o outro se atém. Com isso, ele ver-se-ia trancado em seus próprios preconceitos. Em princípio, um consenso dialogai torna-se impossível quando um dos interlocutores do diálogo não se libera realmente para a conversa. Um caso semelhante seria, por exemplo, se alguém num ambiente social quisesse desempenhar o papel de psicólogo ou psicanalista e na pretensão de compreender psicanaliticamente os enunciados do outro não leva a sério o seu sentido. Neste caso, o companheirismo, base da VIDA SOCIAL, estaria destruído. Essa problemática foi discutida sistematicamente sobretudo por Paul Ricoeur, ao falar do “conflito de interpretações”. Nessa discussão, situa Marx, Nietzsche e Freud de um lado e a intencionalidade fenomenológica da compreensão de “símbolos” de outro, buscando uma mediação dialética. De um lado, a derivação genética, como arqueologia, e de outro, a orientação para um sentido intencional, como teleología. Segundo ele, esse passo é apenas uma distinção preparatória, que limpa o terreno para uma hermenêutica geral, à qual caberia esclarecer a função constitutiva da compreensão de símbolos e da autocompreensão por meio de símbolos. Uma tal teoria geral hermenêutica parece-me inconsistente. Os modos de compreensão de símbolos, dispostos aqui em paralelo, visavam sentidos de símbolo distintos, e por isso não constituem um “sentido” cada vez diverso da mesma realidade. Na verdade, um modo de compreender exclui o outro, porque se refere a algo diverso. Um compreende o que o símbolo quer dizer, o outro o que ele quer esconder ou mascarar. Trata-se de um sentido de “compreender” totalmente distinto. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
É de Aristóteles a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela capacidade de pensar. A palavra grega logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e sobretudo: linguagem. Em certa passagem, Aristóteles estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E Aristóteles acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto… e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: E somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma VIDA SOCIAL, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
Também não existe nenhum fundamento racional que justifique admitir que a ampliação das áreas em que o planejamento e a ordem racional são bem-sucedidos poderia nos aproximar de uma ordem política racional do mundo. Com o mesmo direito podemos chegar à conclusão inversa e teremos que reconhecer o crescente perigo representado pela utilização de nexos racionais para fins irracionais, como expressa o ditame: “primeiro a obrigação, depois o prazer”. Devemos perguntar de modo ainda mais radical se não é exatamente a cientifização de nossa economia e de nossa VIDA SOCIAL — pense-se por exemplo nas pesquisas de opinião e nas estratégias de sua formação — que, se não fomentou, ao menos tornou consciente a incerteza com relação aos fins últimos, isto é, sobre o autêntico conteúdo da ordem mundial. A cientificização encobre a incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da configuração do mundo em objeto de seu planejamento elaborado e controlado cientificamente. Será que a tarefa acabou sendo mal colocada? Por mais que a atuação cientificamente racionalizada alcance uma infinidade de setores parciais, é lícito pensar a totalidade da ordem do mundo como objeto de uma tal planificação e realização racionais? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12
A pergunta que se faz, porém, é a seguinte: Será o conhecimento dos conhecimentos, caracterizado por Platão como arte política, algo mais do que uma imagem crítica do empreendimento cego daqueles que, segundo Platão, têm de responsabilizar-se pela decadência de sua pátria? O ideal da tékhne, do saber técnico, capaz de ser ensinado e aprendido, satisfaz a exigência feita à existência política do homem? Aqui não é o lugar para discutirmos o alcance e os limites do pensamento da téknne na filosofia platônica. E nem tampouco para tocar no problema de até que ponto a própria filosofia de Platão segue certos ideais políticos que não podem ser os nossos? Mesmo assim, mencionar Platão nesse contexto pode ajudar a esclarecer o problema que nos atinge hoje. Platão ensina a duvidar de que a intensificação da ciência humana possa apreender e regular a totalidade de sua própria existência social e política. Podemos evocar aqui a oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa, que em todas as possíveis modificações dimensionou corretamente a questão fundamental de toda aplicação da “ciência” à autoconsciência. Só com a aplicação da nova ciência à sociedade — que o Descartes da “moral provisória” tinha em mente apenas como um objetivo distante — é que essa questão alcançou toda sua gravidade. Os discursos de Kant sobre o homem como “cidadão de dois mundos” conferiram-lhe uma expressão adequada. O fato de que, na totalidade de sua existência, o homem possa tornar-se um objeto a ponto de ser considerado produto em todas as relações de sua VIDA SOCIAL, que possa ainda existir um especialista que “ele” mesmo não é, para administrar cada “homem” junto com todos os outros e que esse especialista seja ele mesmo administrado por sua própria administração, tudo isso provoca evidentes confusões. Uma delas é que o saber objetivo de Platão não passa de uma caricatura irônica, mesmo que iluminada com todas as cores de uma inspiração, de um conhecimento do divino ou do bem transcendentes. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12
Precisamos examinar cuidadosamente essa objeção. É sem dúvida difícil encontrar uma definição melhor para o sentido, o significado ou o meaning de uma expressão do que a sua possibilidade de substituição. Quando uma expressão toma o lugar de outra, sem alterar o sentido do todo, ela possui o mesmo sentido da que substitui. Deve-se questionar, no entanto, até que ponto essa teoria da substituição pode valer para o sentido do discurso, para a unidade autêntica do fenômeno da linguagem. É evidente que se trata da unidade do discurso e não da expressão singular, como tal substituível. Nas possibilidades da análise semântica está precisamente a superação de uma teoria do significado das palavras isoladas. Sob esse aspecto mais amplo, devemos restringir a validez da teoria da substituição que deve definir o significado das palavras. A estrutura de uma configuração de linguagem não pode ser descrita sem mais a partir da correspondência ou possibilidade de substituição de expressões singulares. De fato, existem locuções equivalentes. Essas relações de equivalência não são, contudo, subordinações imutáveis. Elas nascem e morrem assim como o espírito de uma época se reflete de um decênio para outro também na mudança semântica. É só observarmos o crescimento de expressões do inglês na VIDA SOCIAL de nossos dias. A análise semântica pode, portanto, também entrever as diferenças dos tempos e o curso da história e, sobretudo, tornar compreensível a inserção de uma totalidade estrutural numa nova estrutura total. A sua precisão descritiva evidencia a incoerência que resulta quando se assume em novos contextos o âmbito significativo de uma palavra. Essa discrepância indica que aqui se reconheceu algo realmente novo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13
Partir dessa ideia nada mais significa do que admitir em toda compreensão uma potencial relação de linguagem, de tal modo que, onde surge dissenso, é sempre possível — e é esse o orgulho da razão humana — viabilizar o entendimento mútuo pela conversa. Apesar de nem sempre possível, toda VIDA SOCIAL baseia-se na pressuposição de que aquilo que se bloqueia pelo aferrar-se às suas próprias opiniões pode ter um alcance mais amplo no diálogo mútuo. É um erro grave, portanto, pensar que a universalidade da compreensão, que constitui meu ponto de partida, implique por exemplo uma atitude fundamentalmente conservadora ou harmonizadora com nosso mundo social. “Compreender” as articulações e ordenamentos de nosso mundo, compreender-nos mutuamente nesse mundo, pressupõe tanto a crítica e a contestação do que se estagnou e tornou-se estranho quanto o reconhecimento e a defesa das ordens estabelecidas. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14
Isso mostra-se mais uma vez no modo como conversamos e como construímos o entendimento. Podemos acompanhá-lo no passo de uma geração para outra. Quando a história universal caminha a passos largos como nas últimas décadas, acabamos testemunhando o surgimento de uma nova linguagem. “Nova linguagem” não significa aqui uma linguagem totalmente nova, embora sem dúvida seja mais do que mera mudança de expressão do mesmo. Junto com novos aspectos e novos objetivos, elabora-se e nasce também um novo dizer. A nova linguagem traz dificuldades para o entendimento, mas no processo comunicativo também possibilita a superação dessas dificuldades. É esse, pelo menos, o objetivo ideal de toda comunicação. Em certas circunstâncias, pode parecer inalcançável. Entre essas circunstâncias especiais encontra-se a ruptura patológica do entendimento entre os seres humanos caracterizado pela neurose. Cabe perguntar se também no conjunto da VIDA SOCIAL o processo comunicativo não se presta à divulgação e consolidação de uma “falsa” consciência. É essa pelo menos a tese da crítica da ideologia. Segundo essa crítica, a contraposição de interesses sociais impossibilita, como no caso da doença psíquica, o processo comunicativo em sua prática. E da mesma forma que a terapia reintegra o doente na comunidade consensual da sociedade, também o sentido da crítica da ideologia consiste em corrigir a falsa consciência e restabelecer um entendimento correto. Alguns casos especiais em que o entendimento foi profundamente rompido podem exigir formas próprias de restabelecimento, baseadas num conhecimento explícito da perturbação. Mas justamente assim confirmam a função constitutiva do entendimento como tal. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14
Esse caminho de toda experiência para o conceito e o universal já foi descrito magistralmente por Aristóteles numa esplêndida imagem. Ele descreve como a partir de muitas percepções forma-se a unidade de uma experiência e como a partir da multiplicidade das experiências lentamente acaba formando-se algo como a consciência do universal que se conserva nesse fluxo de aspectos cambiantes da vida da experiência. Para tanto, Aristóteles encontrou uma bela comparação. Ele pergunta: Como se chega ao saber do universal? Pelo acúmulo de experiências, pelo fato de fazermos sempre de novo as mesmas experiências e reconhecê-las como tais? Certamente. Mas exatamente ali está o problema. O que significa reconhecê-las “como tais”? Quando se estabelece a unidade desse universal? A imagem dada por Aristóteles é a de um exército em fuga. Num determinado momento, um soldado olha para trás e começa a ver quão distante encontra-se o inimigo, dando-se conta que este já não está tão próximo. Arrisca-se então a parar um instante. Um segundo soldado também pára. O primeiro, o segundo, o terceiro ainda não representam o todo… e por fim acaba que todo o exército se detém. O mesmo ocorre com o aprendizado da fala. Não existe uma primeira palavra; e no entanto, aprendendo, crescemos na linguagem e no mundo. Não concluímos dali que tudo depende de como assimilamos e crescemos nas esquematizações prévias de nossa futura orientação no mundo mediante o aprendizado da linguagem e de tudo que aprendemos pela via do diálogo? Trata-se do processo que hoje chamamos de “socialização”: a maturação na conduta social. É necessariamente também uma assimilação de convenções, de uma VIDA SOCIAL ordenada por convenções, estando sempre submetida à suspeita de ideologia. Assim como o aprendizado da fala no fundo é um constante exercício de expressões e de argumentos, também o conjunto que forma nossas convicções e opiniões é um caminho para movimentar-nos numa estrutura preformada de articulações significativas. O que há de verdade nisso? Como se chega a fluidificar por completo esse material pré-formado de expressões e formulações, de modo a alcançar aquela perfeição em que experimentamos a rara sensação de realmente ter dito o que tínhamos em mente? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15
Tanto a questão aqui levantada quanto os fatos que a suscitam compreendem-se de imediato. A arte do diálogo está desaparecendo? Na VIDA SOCIAL de nossa época não estamos assistindo a uma monologização crescente do comportamento humano? Será um fenômeno típico de nossa civilização que acompanha o modo de pensar técnico-científico? Ou será que experiências específicas de auto-alienação e de isolamento presentes no mundo moderno é que fazem os mais jovens se calar? Ou será ainda que o que se tem chamado de incapacidade para o diálogo não é propriamente a decisão de recusar a vontade de entendimento e uma mordaz rebelião contra o pseudo-entendimento dominante na vida pública? São as questões que se apresentam logo que se ouça falar do tema em discussão aqui. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
A função que o diálogo exerce entre os homens é, porém, muito diversificada. Certa vez, pude observar uma delegação militar de oficiais finlandeses sentados ao redor de uma grande mesa redonda num hotel de Berlim, silenciosos e concentrados. Parecia que entre cada um deles e seu vizinho estendia-se a vasta tundra da paisagem de suas almas como se representasse uma distância insuperável. Qual o viajante dos países nórdicos que não se mostra admirado do constante rebuliço sonoro das conversas travadas nos mercados e praças dos países meridionais, por exemplo, Espanha ou Itália?! Mas quem sabe não devêssemos considerar o primeiro exemplo como falta de disposição para o diálogo e o segundo como uma capacitação para tal. Pois pode ser que o diálogo seja algo bem diferente do que o tipo estilo de intercâmbio travado nos sons ruidosos da VIDA SOCIAL. Na queixa de incapacidade para o diálogo não é isso que está em questão. O diálogo precisa ser compreendido em sentido bem mais ambicioso. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
Mas onde deveria se apoiar também a reflexão teórica sobre a compreensão, se não na retórica, a qual, desde a antiga tradição, representa o único advogado de uma pretensão de verdade que defende o verossímil, o eikos (verosimile)”? E o que se torna evidente pela razão comum contra a pretensão demonstrativa e de certeza da ciência? Persuadir e evidenciar sem lançar mão da demonstração é o objetivo e o parâmetro tanto da compreensão e da interpretação quanto da arte da persuasão e do discurso… e esse amplo domínio das convicções evidentes e das opiniões comuns reinantes não se restringe gradualmente pelo progresso da ciência, por maior que seja, mas estende-se antes a todo novo conhecimento da investigação, reivindicando-o como seu e adaptando-o para si. A ubiquidade da retórica é ilimitada. Graças a ela a ciência se sociabiliza na vida. O que saberíamos sobre a física moderna, que transforma nossa vida a olhos vistos, se dependêssemos apenas dela? Todas as suas explanações que extrapolem o círculo de especialistas (e talvez tenhamos que dizer: à medida que não se restringem a um pequeno círculo de especialistas consagrados) devem seus efeitos ao elemento retórico que as sustenta. Como demonstrou sobretudo Henri Gouhier, mesmo Descartes, esse grande e apaixonado defensor do método e da certeza, enquanto escritor, lança mão largamente dos recursos da retórica em todos os seus escritos. Não pode haver dúvidas quanto à sua fundamental função dentro da VIDA SOCIAL. Toda ciência que queira ser prática depende dela. Por outro lado, a função da hermenêutica não é menos universal. A incompreensibilidade e a existência de mal-entendidos presentes nos textos da tradição de que se ocupou originariamente a hermenêutica é apenas um caso especial do que se encontra em toda orientação humana no mundo como o atopon, o estranho que jamais se deixa enquadrar nas expectativas habituais da experiência. E assim como no progresso do conhecimento os mirabila acabam perdendo sua estranheza, à medida que são compreendidos, assim também toda apropriação exitosa da tradição ganha uma nova familiaridade própria, pela qual ela nos pertence e nós pertencemos a ela. Ambas confluem num único mundo próprio e compartilhado, que abarca a história e a atualidade, o qual encontra sua articulação de linguagem nos discursos entre os seres humanos. Também da parte da compreensão, portanto, a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros. Platão pode tomar como ponto de partida legítimo o fato de que quem considera as coisas no espelho dos discursos assegura-se de sua plena e irrestrita verdade. E quando Platão ensina que todo conhecimento só é tal pelo reconhecimento, isso tem um sentido profundo e correto. Um “primeiro” conhecimento é tão impossível como uma primeira palavra. Também o conhecimento mais recente, cujas consequências ainda não são visíveis, só será o que realmente foi quando tiver se decantado nelas e tiver trilhado o caminho da mediação do entendimento intersubjetivo. VERDADE E METODO II OUTROS 18
Também no âmbito da terapia psicanalítica confirma-se o poder emancipatório da reflexão exigida para a VIDA SOCIAL. Quando se desmascara a repressão, tira-se a força das falsas coerções. E como nesse caso o estado final de um processo de formação reflexiva deveria fazer coincidir todas as motivações da ação com o sentido que orienta o sujeito que age — objetivo que na situação psicanalítica se vê limitado pela tarefa terapêutica apresentando assim apenas um conceito-limite — , assim também a realidade social só poderia ser apreendida adequadamente, do ponto de vista hermenêutico, num tal estado final fictício. Na realidade, a vida da sociedade consiste numa trama de motivações compreensíveis e coerções reais, de que a investigação sociológica teria que se apropriar num processo de formação crescente, liberando-as para a ação. VERDADE E METODO II OUTROS 18
Mas a hermenêutica filosófica estende sua pretensão mais além. Reivindica universalidade. Fundamenta-a dizendo que a compreensão e o entendimento não significam primária e originalmente um procedimento ensinado metodologicamente, mas uma forma de realização da VIDA SOCIAL humana, que em última formalização representa uma comunidade de diálogo. Nada pode ser excluído dessa comunidade de diálogo, nenhuma experiência de mundo. Nem a especialização das ciências modernas e seu crescente esoterismo empreendedor, nem o trabalho material e suas formas de organização, nem as instituições de poder e administração política, que mantêm a constituição da sociedade, encontram-se fora desse médium universal da razão (e da desrazão) prática. VERDADE E METODO II OUTROS 19
Ora, a significação paradigmática que corresponde à psicanálise para a crítica à hermenêutica e para a crítica dentro da comunicação social encontra-se no papel da reflexão emancipatória, que tem sua função terapêutica nela. A reflexão liberta alguém na medida em que torna visível o que o domina imperceptivelmente. De certo, trata-se de reflexão crítica num sentido diferente do que o sentido que se dá na reflexão hermenêutica, que como eu dizia destrói a autocompreensão inadequada descobrindo a falta de retidão metodológica. Não que a crítica que se orienta no paradigma da psicanálise estivesse em contradição com a crítica hermenêutica (mesmo que, como gostaria de demonstrar, a crítica hermenêutica deva negar-se a assumir esse paradigma). Isso não lhe é suficiente. Por meio da reflexão hermenêutica, as ciências hermenêuticas defendem-se contra a tese de que seu procedimento seria acientífico, visto negarem a “objetividade” da science. Nesse ponto, a crítica da ideologia concorda com a hermenêutica filosófica. Acusa, porém, a hermenêutica de perpetuar de modo indevido uma persistência tradicionalista de preconceitos herdados. Desde a irrupção da revolução industrial e da ciência na VIDA SOCIAL, o momento da tradição desempenharia um papel meramente secundário. VERDADE E METODO II OUTROS 19
A partir do ponto de vista da metafísica, o critério de verdade que deriva a ideia do verdadeiro da ideia do bem e o ser do conceito de inteligência “pura” parece-me bem familiar. O conceito de inteligência pura procede da teoria medieval de inteligência e ganha corpo na figura do anjo que tem o privilégio de ver a Deus em sua essência. Nesse aspecto, parece-me difícil eximir Habermas de uma autocompreensão ontológica falsa, como me pareceu ser o caso da superação do ser natural na racionalidade. Mas Habermas me acusa de falsa ontologização, por exemplo, porque não vejo uma oposição excludente entre autoridade e Iluminismo. Segundo ele, a falsidade consistiria em pressupor que o reconhecimento legitimador se produz sem violência e sem o acordo que fundamenta a autoridade. Mas não se deveria fazer essa pressuposição. Realmente não? O próprio Habermas não faz essa pressuposição quando reconhece que deveria haver essa concordância livre como a ideia diretriz de uma VIDA SOCIAL livre de violência e dominação? Eu mesmo jamais tive em mente essas relações “ideais”. Sempre me referi antes a todos os casos de experiência concreta, nos quais falamos de uma autoridade natural e do seguimento que essa encontra. Falar sempre de uma comunicação coercitiva, por exemplo, na afirmação de que o amor, a escolha de um modelo ou a submissão voluntária servem sempre de alicerce para estabilizar um superior e um subordinado, parece-me ser um preconceito dogmático em relação ao que significa a “razão” entre os homens. Assim, não consigo ver como no âmbito social a competência comunicativa e seu domínio teórico possam derrubar as barreiras que há entre os grupos, que numa crítica mútua acusam o caráter coercitivo do acordo existente no outro. Nesse caso, parece ser indispensável “a violência suave da iniciativa” (Giegel, 249) e com ela o postulado de uma competência totalmente diferente, ou seja, a da ação política, com o objetivo de possibilitar a comunicação onde ela não existe. VERDADE E METODO II OUTROS 19
E claro que isso não se dá sem distinções críticas. Eu diria até que a única crítica real é a que “decide” nessa relação prática. Uma crítica que objeta contra o outro ou contra os preconceitos sociais vigentes seu caráter geral coercitivo, e pretende por outro lado dissolver pela comunicação esse estado de cegueira, creio, com Giegel, que está falsamente situada. Passa por alto certas diferenças fundamentais. No caso da psicanálise, o sofrimento e o desejo de cura constituem a base sólida para uma intervenção terapêutica do médico, que impõe sua autoridade e se empenha livremente em esclarecer as motivações reprimidas. A base sólida para isso é a livre subordinação de um para com o outro. Na VIDA SOCIAL, ao contrário, a resistência do adversário e a resistência ao adversário é uma pressuposição comum a todos. VERDADE E METODO II OUTROS 19
O conceito de manipulação torna-se ambíguo nesse contexto. Toda influência emocional produzida pelo discurso representa esse tipo de manipulação. E no entanto isso que, sob a designação de retórica, constitui um momento integral da VIDA SOCIAL desde antigamente não é uma mera técnica social. O próprio Aristóteles já chamava a retórica de dynamis e não techne, tal a sua pertença ao zoon logon echon. Mesmo as formas tecnifiçadas da formação de opinião desenvolvidas por nossa sociedade industrial implicam sempre um determinado momento de consentimento, seja por parte do consumidor, que pode também negar seu consentimento, seja no fato de — e isso é o decisivo — que nossos meios de comunicação não representam apenas o prolongamento de uma vontade política unitária, mas tornam-se palco de debates políticos que em parte refletem, em parte determinam os acontecimentos políticos na sociedade. Uma teoria da hermenêutica profunda, ao contrário, deve justificar uma reflexão emancipatória baseada na crítica social. Ela deve esperar que uma teoria geral da linguagem natural permita “derivar o princípio do discurso racional como o regulador necessário de todo discurso real, por mais distorcido que este seja”. Essa teoria da hermenêutica implica, contra sua vontade — sobretudo face à organização do estado social moderno e de seus modos de formação de opinião — , a função do engenheiro social que empreende sem espaço para a liberdade. Este, enquanto possuidor dos meios publicitários e da verdade por ele pretendida, deveria estar investido do poder de um monopólio da opinião pública. Não é uma hipótese fictícia. A retórica não pode ser relegada, como se não precisássemos dela ou se nada dependesse dela. VERDADE E METODO II OUTROS 19
O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à ideia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto ideia geral, essa ideia da vida justa é uma ideia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da VIDA SOCIAL sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19
Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas ideias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda VIDA SOCIAL. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A VIDA SOCIAL consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as ideias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22
Essas observações prévias serviram para dar credibilidade ao significado da filosofia prática de Aristóteles e da tradição despertada por esta. Trata-se, em última instância, de encontrar uma base comum além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científica moderna que degrada tudo em objetividade. Aristóteles desenhou a filosofia prática, que engloba a política, num debate aberto com o ideal da teoria e da filosofia teórica. Elevou, assim, a praxis humana a uma esfera autônoma do saber. “Praxis” designa o conjunto das coisas práticas e portanto toda conduta e toda auto-organização humana nesse mundo, incluindo também a política e dentro dessa a legislação. Essa, a política, é a principal tarefa cuja solução regula e ordena os assuntos humanos; ela é auto-regulação através da “constituição”, no sentido mais amplo de uma VIDA SOCIAL e estatal ordenada. VERDADE E METODO II OUTROS 23
Algo parecido se dá também nas ciências sociais empíricas. Aqui percebe-se com clareza que seu questionamento está orientado por uma “pré-compreensão” latente. Trata-se de sistemas sociais já em curso que sustentam a vigência de normas que se tornaram históricas e cientificamente indemonstráveis. Estas não determinam apenas o objeto, mas também os quadros de racionalização da ciência empírica, dentro da qual inicia-se o trabalho metodológico. Os problemas que se apresentam à investigação provêm aqui, em geral, das perturbações no contexto do funcionamento social vigente ou também do iluminismo crítico-ideológico que combate relações de domínio estabelecidas. É indiscutível que também aqui a investigação científica leva a um domínio científico correspondente dos nexos parciais da VIDA SOCIAL tematizados. Mas é inegável também que induz a estender seus resultados a contextos mais complexos. É muito fácil cair nesse tipo de tentação. Por mais incertas que possam ser as bases efetivas que podem possibilitar um domínio racional sobre a VIDA SOCIAL, as ciências sociais se veem confrontadas com uma necessidade de fé que as arrasta formalmente e as conduz para fora e para longe de seus próprios limites. Isso pode ser claramente demonstrado no clássico exemplo que J.S. Mill apresenta para a aplicação da lógica indutiva nas ciências sociais: a meteorologia. Não é só o fato de que as previsões temporais, feitas com o auxílio de meios modernos de armazenagem e elaboração de dados e válidas para o longo prazo e para regiões muito amplas, apresentem resultados bem pouco seguros até o presente momento; mas, mesmo que dispuséssemos de um completo domínio dos acontecimentos atmosféricos — ou melhor, já que na verdade, em princípio, não é isso o que falta — e que dispuséssemos ainda de uma reserva e elaboração de dados muito superior à atual, possibilitando assim uma previsão mais segura, apareceriam imediatamente novos fatores de complicação. É essencial ao domínio científico dos processos que possam ser colocados a serviço de qualquer objetivo. Então surgiria o problema de “fazer o tempo”, o problema de influenciar no tempo, iniciando uma luta de interesses econômicos e sociais. Sobre isso, o estado atual do prognóstico quase não nos permite prever os resultados que surgiriam por exemplo quando interessados buscassem interferir nas previsões de tempo dos finais de semana. Na transposição para as ciências sociais, o “domínio” dos processos sociais conduz necessariamente a uma “consciência” do engenheiro social, que quer ser “científico” e no entanto jamais pode negar seu partido social. Temos aqui uma complicação especial, que brota da função social das ciências sociais empíricas: por um lado tende-se a extrapolar prematuramente os resultados da investigação empírico-racional para situações complexas, somente para alcançar, de algum modo, uma atuação cientificamente planejada; por outro lado, encontra-se o fator distorcivo da pressão de interesses que os partidos sociais exercem sobre a ciência para influir em seu favor nos processos sociais. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Mas justamente quando se reconhece a problemática da relevância ficará difícil permanecer fiel ao lema da liberdade dos valores desenvolvido por Max Weber. Não é suficiente manter um deci-sionismo cego com relação aos últimos objetivos, em favor do qual falou abertamente Max Weber. Aqui o racionalismo metodológico desemboca num irracionalismo tosco. Conjugar nele a assim chamada filosofia existencial seria desconhecer as coisas por completo. A verdade, porém, é exatamente o seu contrário. Mas a intenção do conceito de clarificação da existência proposto por Jasper era justamente submeter as decisões últimas a uma clarificação racional; não é por acaso que ele considerava os conceitos de “razão e existência” como sendo inseparáveis. Heidegger, por sua vez, tirou consequências ainda mais radicais. Ele buscou esclarecer a falácia ontológica da distinção entre valor e realidade e dissolver o conceito dogmático do “fato”. Nesse sentido, a questão dos valores não desempenha nenhum papel nas ciências da natureza. É verdade que, no contexto próprio de sua investigação, essas ciências estão submetidas a nexos que podem ser esclarecidos hermeneuticamente. Mas com isso ainda não extrapolam o círculo de sua competência metodológica. Mas nelas o que se questiona é algo parecido, pelo menos em um único ponto. Em sua investigação científica, as ciências são real e totalmente independentes da imagem de mundo que guardam pela linguagem, onde vivem os investigadores enquanto tais? E serão independentes sobretudo do esquema de mundo de sua própria língua materna? Mas, em outro sentido, também aqui está sempre em jogo a hermenêutica. Mesmo que, usando uma linguagem normatizada pela ciência, se conseguisse filtrar todas as conotações que provêm da língua materna, ainda assim permaneceria o problema da “tradução” dos conhecimentos científicos para a linguagem comum, único meio de as ciências da natureza alcançarem sua universalidade comunicativa e com isso sua relevância social. Mas isso já não afetaria a investigação como tal. Apenas mostraria que a mesma não é “autônoma”, mas está inserida em um contexto social. Isso vale para toda e qualquer ciência. Nesse caso, não é necessário reservar uma autonomia especial para as ciências “compreensivas”, e tampouco se pode deixar de perceber que nelas o saber pré-científico desempenha um papel muito importante. Decerto, tudo aquilo que nessas ciências possui esse modo de ser pode ser classificado como “acientífico”, como cientificamente incomprovável etc. Mas é exatamente por isso que se reconhece a estrutura dessas ciências. Então devemos objetar também que é justamente o saber pré-científico, remanescente nessas ciências como um resto lamentável de acientificidade, que constitui seu modo próprio de ser e determina a vida prática e social das pessoas — inclusive as condições para que estas possam fazer ciência — mais decisivamente que tudo que se pode conseguir e até querer por meio de uma crescente racionalização dos contextos humanos de vida. Será realmente possível e desejável que confiemos a um especialista todas as questões decisivas tanto da VIDA SOCIAL e política quanto da vida privada e pessoal? E, afinal de contas, na aplicação concreta de sua ciência, o próprio especialista não empregaria sua ciência, mas apenas sua razão prática. E mesmo que esse fosse um engenheiro social ideal, por que razões sua razão prática deveria ser melhor que a das outras pessoas? VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Nesse sentido, parece-me desleal usar de uma superioridade irônica para acusar as ciências hermenêuticas de estarem renovando e restaurando a imagem qualitativa de mundo de Aristóteles. Sem contar que tampouco a ciência moderna emprega em toda parte um procedimento quantitativo, como por exemplo nas disciplinas morfológicas. Permitam-me, porém, recordar que o saber prévio que se desenvolve em nós em virtude de nossa orientação no mundo operada na linguagem (o que constituía factualmente a base da assim chamada “ciência” de Aristóteles) entra em jogo toda vez que se elabora a experiência de vida, toda vez que se compreende a tradição feita pela linguagem e toda vez que está em curso a VIDA SOCIAL. De certo, esse saber prévio não é uma instância crítica contra a ciência, estando exposto, inclusive, a todas as objeções críticas da ciência. No entanto, é e continua sendo o médium que sustenta toda compreensão. É por isso que cunha a peculiaridade metodológica das ciências da compreensão. Nelas aparece claramente a tarefa de manter dentro de certos limites a formação de terminologias específicas da linguagem e, ao invés de construir linguagens específicas, cultivar modos de falar procedentes da “linguagem comum”. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Sinto que ainda não se reconheceu suficientemente o âmbito que a hermenêutica partilha com a retórica, a saber, o âmbito dos argumentos persuasivos (e não aquele que obriga a uma conclusão lógica). É o âmbito da práxis e da humanidade como tal, que não encontra sua tarefa onde vige a violência das “conclusões ferrenhas”, as quais exigem submissão incondicional, nem tampouco onde a reflexão emancipatória está certa e segura de seu “entendimento contrafáctico”. Sua tarefa está, antes, onde as partes em conflito devem chegar a uma decisão pela reflexão racional. E aqui a morada da arte de falar e de argumentar (e a sua outra forma silenciosa, a deliberação que pondera consigo mesmo). O fato de a arte de falar dirigir-se também aos afetos, como se vem demonstrando desde antigamente, nem por isso precisa desviar-se do âmbito do racional. Vico acentua com razão um valor pessoal: a cópia, a riqueza dos pontos de vista. Parece-me espantosamente irreal querer atribuir à retórica — como faz Habermas — um caráter coercitivo, que deveria ser superado em favor de um diálogo racional livre de coerção. Com isso não apenas se subestima o perigo da manipulação e de perda da autonomia da razão pela persuasão, mas também a chance de um acordo persuasivo sobre o qual repousa a VIDA SOCIAL. Toda práxis social — e verdadeiramente também a práxis revolucionária — não pode ser pensada sem a função da retórica. Isso pode ser ilustrado pela cultura científica de nossa época. Ela colocou na práxis do acordo entre os homens a tarefa gigantesca e crescente de integrar o respectivo âmbito particular do domínio científico das coisas com a práxis da razão social: Aqui entram em jogo os modernos meios de comunicação de massa. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Num sentido formal último, de certo, existe algo previamente decidido para toda praxis humana, a saber, que tanto o indivíduo quanto a sociedade estão orientados para a “felicidade”. Isso parece uma declaração natural e de uma racionalidade evidente. Entretanto, temos de concordar com Kant que a felicidade, esse ideal da imaginação, dispensa toda determinação vinculante. A nossa necessidade prática de razão, no entanto, exige que pensemos nossos objetivos com a mesma determinação que pensamos os meios adequados, ou seja, que em nosso agir estejamos em condições de preferir conscientemente uma possibilidade à outra e por fim de subordinar um objetivo a outro. Longe de simplesmente supor ordenações dadas da VIDA SOCIAL e de formular nossas reflexões práticas de escolha dentro desse quadro dado, em cada decisão que tomamos encontramo-nos sob uma consequência toda própria. VERDADE E METODO II ANEXOS 29