Schleiermacher, de cuja teoria hermenêutica ainda nos ocuparemos mais tarde, está inteiramente empenhado em reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Pois arte e literatura, que nos são transmitidas do passado, nos chegam desenraizadas de seu mundo original. Nossas análises já demonstraram que isso vale para todas as artes, e portanto também para a literatura, mas que é particularmente evidente para as artes plásticas. Schleiermacher escreve que o natural e originário já não são mais, “a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua determinação original”. “Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente.” Ele chega, inclusive, a dizer: “Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu contexto. Ela já perde o seu significado ao ser retirada desse contexto e ao entrar em circulação é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas de queimado”.
Será que isso não implica, que a obra de arte somente tem seu verdadeiro significado em uma espécie de reconstrução do originário? Se se identifica e reconhece que a obra de arte não é um objeto atemporal da vivência estética, mas que pertence a um mundo e que somente este é que poderá determinar plenamente o seu significado, parece que se há de concluir que o verdadeiro significado da obra de arte só se pode compreender a partir deste mundo, portanto, principalmente a partir da sua origem e de seu surgimento. A reconstrução do “mundo” a que pertence, a reconstrução do estado originário que havia (172) existido na “intenção” do artista criador, a execução no estilo original, todos esses meios de reconstrução histórica teriam então o direito de reivindicar que eles tornam compreensível o verdadeiro significado da obra de arte e que o protegem contra mal-entendidos e falsas atualizações. E essa é, efetivamente, a ideia de Schleiermacher, o pressuposto tácito de toda a sua hermenêutica. Segundo ele, o saber histórico abre o caminho que permite suprir o que foi perdido e reconstruir a tradição, na medida em que nos devolve o ocasional e o originário. Assim, o empenho hermenêutico se orienta para a recuperação do “ponto de conexão” com o espírito do artista, que é o que deve fazer inteiramente compreensível o significado de uma obra de arte; procede como, fora isso, o faz ante textos, procurando reproduzir o que foi a produção original do autor.
É evidente que a reconstrução das condições sob as quais uma obra transmitida cumpria sua determinação original constituiu, obviamente, uma operação auxiliar verdadeiramente essencial para a compreensão. A única coisa que temos a indagar é se o que se alcança por esse caminho é realmente o mesmo que buscamos, quando tentamos encontrar o significado da obra de arte e se a compreensão é determinada corretamente, se nós a considerarmos como uma segunda criação, como a reprodução da produção original. Uma tal determinação da hermenêutica acaba não sendo menos absurda do que toda restituição e restauração da vida passada. A reconstrução das condições originais, tal qual toda restauração, é, face à historicidade do nosso ser, uma empresa impotente. O reconstruído, a vida recuperada do alheamento, não é a original. Ela obtém, só na sobrevivência do alheamento, uma existência secundária na cultura. A tendência, que está se impondo recentemente, de devolver as obras de arte dos museus ao lugar originário de sua determinação, ou de devolver o aspecto original aos monumentos arquitetônicos, só pode confirmar este ponto de vista. Mesmo o quadro devolvido do museu para a igreja, ou o edifício reconstruído segundo o seu estado antigo, são o que foram — se convertem em objeto para turistas. E um labor hermenêutico, para quem a compreensão significasse reconstrução do original, permaneceria do mesmo modo, apenas num sentido morto. [Gadamer Verdade e Método I]