Gadamer (VM): pragmático

No século XIX a hermenêutica experimentou, como disciplina auxiliar da teologia e da filosofia, um desenvolvimento sistemático que a transformou em fundamento para o conjunto das atividades das ciências do espírito. Ela elevou-se fundamentalmente acima de seu objetivo pragmático original, ou seja, de tornar possível ou facilitar a compreensão de textos literários. Não é somente a tradição literária que representa um espírito alienado e novo, necessitado de uma apropriação mais correta, mas, antes, tudo que já não está de maneira imediata no seu mundo e não se expressa nele, e para ele, junto com toda tradição, a arte, bem como todas as demais criações espirituais do passado, o direito, a religião, a filosofia etc, encontram-se despojadas de seu sentido originário e dependentes de um espírito que as faça aflorar e intermedie, espírito que, de acordo com os gregos, chamamos de Hermes, o mensageiro dos deuses. E a gênese da consciência histórica, a que a hermenêutica deve uma função central, no âmbito das ciências do espírito. Mas a questão é de se saber, se o alcance do problema, que com isso se coloca, pode se tornar claro para nós, de maneira correta, a partir das premissas da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, “que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua [264] incompreensibilidade essencial”. Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e “possibilidade”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em linhas gerais ter-se-á de concordar com a crítica habitual a Bacon. Certamente que suas propostas metodológicas nos decepcionam. São demasiado indeterminadas e gerais, e não produziram maiores frutos na sua aplicação à investigação da natureza, o tempo tem demonstrado. É verdade que este adversário das sutilezas dialéticas vazias permanecia, ele próprio, profundamente vinculado à tradição metafísica e às suas formas de argumentação dialética, que ele combate. Seu objetivo de vencer a natureza obedecendo-a, sua nova atitude de acometer e forçar a natureza, em suma, tudo o que o converteu no paladino da ciência moderna, é apenas o lado pragmático de sua obra, para a qual sua contribuição é muito pouco consistente. Sua verdadeira contribuição consiste, antes, numa investigação abrangente dos preconceitos que ocupam o espírito humano e o desvia do verdadeiro conhecimento das coisas, e com isso leva a cabo uma espécie de limpeza metódica do espírito e que é mais uma “disciplina” que uma metodologia. A conhecida teoria baconiana dos “preconceitos” tem um sentido de tornar simplesmente possível um uso metódico da razão . E justamente isso torna-se interessante para nós, porque se expressam, ainda que criticamente e com uma intenção excludente, momentos na vida da experiência, que não estão vinculados teleologicamente ao objetivo da ciência. É o que ocorre, por.exemplo, quando entre os idola tribus Bacon menciona a tendência do espírito humano a reter na memória unicamente o positivo e esquecer as istantiae negativae. Até nos oráculos, que se lembram dos vaticínios acertados e não levam em conta os equivocados. Do mesmo modo, a relação do espírito humano com as convenções da linguagem é, aos olhos de Bacon, uma forma de extravio do conhecimento através de formas convencionais vazias. Pertence aos idola fori. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso não impede que se possa assumir sem dificuldade uma certa influência da ciência sobre a linguagem. Por exemplo, em alemão não se fala mais de Walfisch (peixe-baleia), mas simplesmente de Wal (baleia), porque todo mundo sabe que as baleias são mamíferos. Por outro lado, a extraordinária riqueza de designações populares para determinados objetos vai se nivelando cada vez mais, em parte pela influência da vida de intercâmbio moderna, em parte pela estandartização científica e técnica, e, em geral, o vocabulário parece que não tende a aumentar, mas, antes, a diminuir. Existe, ao que parece, uma língua africana que possui não menos de duzentas expressões diferentes para o camelo, segundo as diferentes referências vitais em que se encontra o camelo com respeito aos habitantes do deserto. Em virtude do significado dominante que mantém em todos eles, apresenta-se um ente distinto. Pode-se dizer que em tais casos há uma tensão particularmente aguda entre o conceito de gênero e a designação lingüística. Entretanto, pode-se dizer também, que em nenhuma língua viva jamais se alcança um equilíbrio definitivo entre a tendência à generalidade conceitual e a tendência ao significado pragmático. Por isso, acaba sendo tão artificioso e tão contrário à essência da linguagem medir-se a contingência da conceituação natural pelo verdadeiro ordenamento da essência e tê-la por meramente acidental. Essa contingência se produz na realidade em virtude da margem de variação necessária e legítima, dentro da qual o espírito humano pode articular a ordenação essencial das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Não obstante, há estritas coincidências. Num e noutro caso dá-se a superação do interesse prático e pragmático, que vê tudo o que encontra, à luz de suas próprias intenções e objetivos. Aristóteles disse que a atitude teórica na vida somente pôde emergir quando já dispunha de todo o necessário para satisfazer as necessidades da vida. Tampouco a atitude teórica da ciência moderna dirige suas perguntas à natureza com vistas a determinados fins práticos. É verdade que já sua maneira de perguntar e investigar está orientada para o domínio doente, pelo que tem de ser considerada prática em si mesma. No entanto, para a consciência de cada investigador a aplicação de seus conhecimentos é secundária, no sentido de que, ainda que proceda deles, vem tão-somente mais tarde, de maneira que aquele que conhece não necessita saber para que, e se vai ser aplicado o que conhece. Não obstante, e apesar de todas as correspondências, a diferença torna-se patente no significado das palavras “teoria” e “teórico”. No uso lingüístico moderno, o conceito do teórico é quase somente um conceito privativo. Algo só é considerado teórico, quando não possui a vinculatividade, sempre determinante, dos objetivos da ação. Inversamente, as teorias que são esboçadas aqui são julgadas segundo a possibilidade de aplicação, isto é, pensa-se o próprio conhecimento teórico, a partir da dominação voluntária do ente, e não como fim, mas como meio. No sentido antigo, teoria é, por outro lado, algo completamente diferente. Nela não somente se contemplam as ordenações vigentes, mas além disso, a teoria significa a própria participação no todo das ordenações. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

2. Mas será que as ciências do espírito realmente satisfazem aquilo que as torna tão significativas para nós, a saber, a ânsia de verdade do coração humano? É verdade que, à medida que perpassam os amplos espaços da história, pela investigação e compreensão, elas ampliam o horizonte espiritual da humanidade em relação ao conjunto do seu passado. Mas, com isso, elas não só não satisfazem à busca de verdade presente à nossa atualidade, como a tornam digna de ser pensada. O sentido histórico formado pelas ciências do espírito implica um habituar-se a parâmetros oscilantes, os quais acabam levando à insegurança no uso de uma medida própria. Nietzsche, em sua segunda Consideração intempestiva, falou não só da utilidade, mas também da desvantagem da ciência histórica para a vida. O historicismo, que vê em toda parte um condicionamento histórico, destruiu o sentido pragmático dos estudos históricos. Sua arte refinada de compreensão enfraquece a força do valor incondicional, onde repousa a realidade ética da vida. Seu ápice epistemológico é o relativismo, sua conseqüência, o niilismo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 3.

Quando uso o conceito de “situação” nesse contexto é para indicar que a pergunta e o enunciado da ciência não passam de um caso especial de uma relação muito mais genérica, tematizada no conceito da situação. A pertença mútua de “situação” e “verdade” já foi estabelecida no pragmatismo americano. Para esse, o que realmente caracteriza a verdade é o “saber virar-se” numa situação. A fecundidade de um conhecimento comprova-se na capacidade de resolver uma situação problemática. Não creio que a guinada pragmática dessa questão seja suficiente, aqui. Isso porque, considerando como a única coisa que importa o “saber virar-se” na situação, o pragmatismo simplesmente deixa de lado todas as assim chamadas perguntas filosóficas e metafísicas, porque a única coisa que importa é “saber virar-se” na situação. Para se avançar então seria necessário recusar todo lastro dogmático da tradição. Isso parece-me ser uma evasiva. O primado da pergunta por mim indicado não é um primado pragmático. E tampouco a resposta verdadeira está ligada ao critério das conseqüências da ação. E, no entanto, o pragmatismo tem razão em afirmar que é preciso ultrapassar a relação formal, colocando a pergunta como o sentido do enunciado. Encontramos o fenômeno inter-humano da pergunta em sua concreção plena, quando deixamos de lado a relação teórica entre pergunta e resposta, que perfaz a ciência, e refletimos sobre as situações nominais em que as pessoas são chamadas e interrogadas e interrogam a si próprias. Ali fica claro que a essência do enunciado experimenta em si uma ampliação. Não apenas que o enunciado sempre seja uma resposta, e sempre remeta a uma pergunta, mas que, em seu caráter enunciativo comum, tanto a pergunta quanto a resposta têm uma função hermenêutica. Ambas são interpelação. Isto não diz simplesmente que algo de nosso universo comum sempre se insere no conteúdo de nossos enunciados. O que não deixa de ser verdade. Todavia, a questão aqui não é essa. A questão é de que só há verdade no enunciado, à medida que este é interpelação. [54] O horizonte da situação, que perfaz a verdade de um enunciado, inclui nele aquele a quem se diz algo com o enunciado. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

Paralelamente a esta motivação objetiva da hermenêutica, também uma motivação formal ganhou influência no princípio da modernidade, à medida que a consciência metodológica da nova ciência, que lançava mão sobretudo da linguagem da matemática, abria caminho rumo a uma teoria geral da interpretação das linguagens simbólicas. Por causa de sua generalidade, foi tratada como uma parte da lógica. A inserção de um capítulo hermenêutico na lógica de Chr. Wollf desempenhou um papel decisivo para o século XVIII. Isso foi efeito de um interesse lógico-filosófico, a tendência de fundamentar a hermenêutica numa semântica geral. Quem apresentou um primeiro esboço da mesma foi Maier, seguindo os rastros de um entusiasmado predecessor, Chladenius. No geral, a disciplina da hermenêutica surgida na teologia e filologia do século XVII era, ao contrário, fragmentária, prestando-se mais a objetivos didáticos do que filosóficos. É certo que a nível pragmático desenvolveu algumas regras metodológicas fundamentais, extraídas em sua maioria das antigas gramática e retórica (Quintiliano). No seu conjunto, porém, não passava de uma série de explicações de certas passagens que ajudavam a compreender a Escritura (ou, no âmbito humanista, os clássicos). “Clavis”, “chave”, é um título muito freqüente, por exemplo, em Flacius. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

Mas isso não é tudo. O marco interpretativo elaborado por Freud reivindica o caráter de verdadeiras hipóteses de ciência natural ou de leis válidas para o conhecimento. Isso deve refletir-se no papel que desempenha o estranhamento metodológico no âmbito da psicanálise, e assim é de fato. Embora a análise adquira sua credibilidade no êxito, a pretensão de conhecimento da psicanálise não pode ser reduzida ao pragmático. O que significa que ela deve se expor a uma nova reflexão hermenêutica. Qual a relação existente entre o saber do psicanalista e sua postura dentro da realidade social a que pertence? O fato de questionar além das interpretações superficiais, de desbaratar autoconcepções mascaradas, de desmascarar a função repressiva dos tabus sociais, isso tudo pertence à reflexão emancipatória que ele aplica a seus pacientes. Mas se ele aplica essa reflexão onde não está legitimado como médico, onde [250] ele próprio é um comparsa no jogo da sociedade, estará se colocando fora de sua função social. Quem “põe a descoberto” seu comparsa de jogo, à luz de algo que se situa fora do jogo, isto é, que não leva a sério o que estão jogando, é um perdedor que se deve evitar. A força emancipatória da reflexão reivindicada pelo psicanalista deve encontrar seu limite na consciência social, na qual tanto o analista quanto seu paciente se entendem com todos os outros. A reflexão hermenêutica ensina-nos que, em todas as tensões e perturbações, a comunidade social remete-nos sempre de novo a um acordo social, em virtude do qual ela subsiste. VERDADE E METODO II OUTROS 18.