Gadamer (VM): poeta

O verdadeiro processo da formação, isto é, o elevar-se à universalidade, é aqui, ao mesmo tempo, uma decadência em si mesmo. A “presteza da reflexão pensadora de se movimentar em universalidades, de colocar qualquer conteúdo sob pontos de vista propostos e, assim vesti-lo com pensamentos”, é, segundo Hegel, a maneira de não se deixar envolver com o verdadeiro conteúdo dos pensamentos. Immermann denomina um tal derramar-se livre do espírito em si, algo dissipador”. Com isso, descreve a situação introduzida pela literatura e pela filosofia clássicas da época de Goethe, em que os epígonos já encontravam prontas todas as formas do espírito e, por isso, o que era o genuíno trabalho da formação, isto é, o burilar o que era estranho e tosco, acabava sendo trocado pelo prazer do mesmo. Tinha se tornado fácil fazer uma boa poesia e, por esse motivo, tornara-se difícil ser um poeta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Já a consciência do artista de hoje parece contrariá-lo. Ocorreu uma espécie de crepúsculo do gênio. A representação de uma inconsciência sonâmbula, com a qual o gênio cria — uma representação que, em todo caso, pode se legitimar através da autodescrição de Goethe em sua maneira poética de produzir — nos parece hoje um romantismo falso. A isso um poeta como Paul Valéry contrapôs os padrões de um artista e engenheiro como Leonardo da Vinci, em cujo engenho total, encontravam-se ainda indiferenciados e unos, o artesanato, a invenção mecânica e a genialidade artística. A consciência geral, ao contrário, é sempre ainda determinada pelos efeitos do culto do gênio do século XVIII e pela sacralização da vocação artística, que vimos ser característica para a sociedade burguesa do século XIX. Nisso se comprova que, no fundo, o conceito do gênio é concebido do ponto de vista do observador. Esse antigo conceito se oferece convincentemente não para o espírito que cria, mas para o espírito que julga. O que se apresenta ao observador como um milagre, a ponto de não se poder entender que alguém seja capaz de algo assim, irá se espelhar no que há de milagroso numa criação, através de uma inspiração genial. Os criadores, então na medida em que olham para si mesmos, podem se servir dessas formas de apreensão, e é assim, certamente, que o culto do gênio veio a ser alimentado, no século XVIII, também pelos criadores. Mas nessa auto-apoteose nunca chegaram a alcançar o status que a sociedade burguesa lhes atribuía. A auto-evidência do criador continua bem mais sóbria. Continua vendo as possibilidades de fazer, de ser capaz e de indagar da técnica até mesmo onde o observador procura inspiração, mistério e significado profundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Paul Valéry viu as coisas, de fato, dessa maneira. Ele também não temeu as conseqüências que surgem para aquele que se defronta com uma obra de arte e procura entendê-la. Se realmente é válido o fato de que uma obra de arte não é consumável em si mesma, em que se irá mensurar a adequabilidade da recepção não pode, afinal, conter nada que seja obrigatório. Daí resulta pois que tem de ser deixado ao receptor o que venha a fazer, de sua parte, daquilo que tem diante de si. Assim, uma maneira de compreender uma configuração não será menos legítima que a outra. Não existe nenhum padrão de adequabilidade. Não somente pelo fato de que o próprio poeta não o possui — com o que iria concordar também a estética do gênio. Antes, todo encontro com a obra tem a categoria e o direito de uma nova produção. — Isso me parece um nihilismo hermenêutico insustentável. Se Valéry tirou possivelmente tais conseqüências para a sua obra, para escapar ao mito da produção inconsciente do gênio, parece-me que, na verdade, acabou se deixando prender por ele. Porque então transfere ao leitor e ao intérprete o poder pleno da criação absoluta, que ele mesmo não quer exercitar. A genialidade da compreensão não oferece, na verdade, nenhuma informação melhor que a da genialidade da criação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A isso podemos dar agora a forma que opomos à diferenciação estética, ao elemento constitutivo real da consciência estética, a “indiferenciação estética”. Com isso, tornou-se claro: o que é imitado na imitação, formulado pelo poeta, representado pelo ator, reconhecido pelo espectador, é de tal modo o que se tem em mente (Gemeinte), aquilo onde reside o significado da representação, que a formulação poética ou o desempenho da representação nem chegam a ser realçados. Onde se diferencia, o que se diferencia é a matéria de sua formulação, a composição poética de sua “concepção”. Mas essas diferenciações são de natureza secundária. O que o ator representa e o espectador reconhece são as formulações e a própria ação, tal qual foram pensadas pelo poeta. Temos aqui uma dupla mimesis: o poeta representa e o ator representa. Mas justamente essa dupla mimesis é una: O que se torna existência em um e no outro é a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que dessa maneira vale para o trágico, vale também, na verdade, numa medida bem mais abrangente. Para o poeta de obras literárias, a livre invenção sempre continua sendo apenas urna faceta da intermediação através de uma validade pré-existente. Não inventa livremente sua fábula, por mais que imagine que assim o faça. Antes, permanece até os nossos dias algo do antigo fundamento da teoria da mimesis. A invenção livre do poeta é representação de uma verdade comum, que vincula também o poeta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Esta compreensão pode ser chamada de “melhor”, na medida em que a compreensão expressa — e, com isso, criadora de relevâncias — de uma opinião face à realização do conteúdo da mesma, encerra um plus de conhecimento. Assim, o postulado diz quase que uma obviedade. Quem aprende a compreender linguisticamente um texto composto em um idioma estrangeiro terá de adquirir consciência expressa das regras gramaticais e da forma de compreensão desse texto, os quais o autor aplicou sem se dar conta, porque mora nessa língua e nas suas mediações técnicas. O mesmo pode-se dizer fundamentalmente a respeito de toda produção genial autêntica e sua recepção pelos outros. Em particular, convém que se relembre isso para a interpretação da poesia. Também aí, tem-se de compreender necessariamente um poeta, melhor do que ele próprio se compreendia, pois ele não “se compreendeu” em absoluto quando nele tomou forma a construção do seu texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo Schleiermacher, também outros repetiram sua fórmula no mesmo sentido, por exemplo, August Boeckh, Steinthal e Dilthey: “O filólogo entende melhor o orador e o poeta, do que este se entende a si mesmo, e melhor do que o entenderam os que eram simplesmente seus contemporâneos. Pois ele torna claramente consciente o que naquele somente prejazia de maneira inconsciente e fática”. Através do “conhecimento das leis psicológicas” o filólogo pode aprofundar a compreensão conhecedora, até convertê-la em conceitual, na medida em que chega ao fundo da causalidade, da gênese da obra do discurso da mecânica do espírito compositor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A expressão da compreensão adquire, a partir daqui, seu tom quase religioso. Compreender é participar imediatamente da vida, sem a mediação do pensamento através do conceito. O que interessa ao historiador não é referir a realidade a conceitos, mas chegar em todas as partes ao ponto em que “a vida pensa e o pensamento vive”. Os fenômenos da vida histórica são entendidos na compreensão, como manifestações do todo da vida, da divindade. Essa penetração compreensiva dos mesmos significa, de fato, mais do que um universo interior, tal como Dilthey reformulou o ideal do historiador face a Ranke. Trata-se de um enunciado metafísico, pelo que Ranke se aproxima enormemente de Fichte e Hegel, quando diz: “A intuição clara, plena e vivida, tal é a marca do ser que se tornou transparente e que enxerga através de si mesmo. Numa tal formulação, é impossível não perceber como Ranke, no fundo, permanece próximo do idealismo alemão. A plena auto-transparência do ser, que Hegel pensou no saber absoluto da filosofia, continua legitimando também a autoconsciência de Ranke como historiador, por mais que ele recuse as pretensões da filosofia especulativa. Essa é justamente a razão pela qual se [216] torna tão próximo para ele o modelo do poeta, e porque não sente a menor necessidade de estabelecer limites face a ele, como historiador. Pois o que o historiador e o poeta têm em comum é que um e outro conseguem representar o elemento em que vivem todos “como algo que está fora deles”. Esse puro abandono à contemplação das coisas, a atitude épica de quem busca a lenda da história do mundo, tem direito a chamar-se de poético, na medida em que, para o historiador, Deus está presente em tudo, não sob a forma do conceito, mas sob a da “representação externa”. Não é possível descrever melhor a autocompreensão de Ranke, do que através desses conceitos de Hegel. O historiador, tal como o entende Ranke, pertence à forma do espírito absoluto que Hegel descreveu como “religião da arte”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O apoio que Ranke buscava no comportamento do poeta não lhe é suficiente. A auto-alienação na contemplação ou na narrativa não aproxima da realidade histórica. Pois os poetas “compõem para os acontecimentos uma interpretação psicológica dos mesmos. Mas nas realidades não operam somente as personalidades, mas também outros momentos” (Historik, § 41). Os poetas tratam a realidade histórica como se ela tivesse sido desejada e planejada, tal como o é, pelas pessoas que atuam nela. Porém, a realidade da história não se constitui por ter sido intentada dessa maneira. Por isso, o real querer e planejar dos homens não é o objeto autêntico da compreensão histórica. A interpretação psicológica dos indivíduos avulsos não está em condições de alcançar a interpretação do sentido dos próprios acontecimentos históricos. “Nem o sujeito que quer se esgota nessa conjuntura, nem o que chegou a ser foi apenas pela força de sua vontade, por sua inteligência; não é nem a expressão pura, nem completa dessa personalidade” (§ 41). A interpretação psicológica, portanto, representa apenas um momento subordinado na compreensão histórica. E isso não somente porque não alcança realmente sua meta. Não se trata somente de que aqui se experimente uma barreira. A interioridade da pessoa, o santuário da consciência, não somente é acessível ao historiador. Aquilo que só é penetrado pela simpatia e pelo amor não é, de modo algum, a meta e o objeto de sua investigação. Ele não tem por que querer entrar nos segredos das pessoas individuais. O que ele investiga não são indivíduos como tais, mas o que eles significam como momentos no movimento dos poderes morais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Relacionado a isso encontra-se também o fato de que a oposição entre um autêntico pensamento mítico e um pensamento poético pseudomítico é uma ilusão romântica, montada sobre um preconceito do Aufklärung: o de que o fazer poético, pelo fato de ser uma criação da livre capacidade de imaginar, não participa mais da vinculação religiosa do mythos. E a antiga polêmica entre o poeta e o filósofo, que entra agora no seu estágio moderno de fé na ciência. Agora já não se diz que os poetas mentem muito, pois que eles não têm nada de verdadeiro para dizer, já que somente produzem um efeito estético e só pretendem estimular a atividade da fantasia e o sentimento vital do ouvinte ou do leitor através das criações de sua fantasia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne que se ensina e aquela que se adquire por experiência [321]. O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará “teórico” o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, Aristóteles pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral. Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo lingüístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da lingüisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas lingüísticas. Havíamos partido dessa lingüisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambigüidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambigüidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Perseguindo, por outro lado, o significado da expressão “a linguagem das coisas”, seguimos aparentemente uma direção muito parecida. Também a linguagem das coisas é algo a que não ouvimos suficientemente e que deveríamos escutar melhor. Essa expressão tem certo tom polêmico. Expressa que, em geral, não estamos preparados para ouvir as coisas no seu ser próprio, já que estão submetidas ao cálculo do homem e ao seu domínio da natureza pela racionalidade da ciência. Num mundo que se torna cada vez mais técnico, falar de dignidade das coisas torna-se algo cada vez mais incompreensível. Elas estão desaparecendo, e somente o poeta ainda lhes resguarda uma última fidelidade. Mas o fato de ainda se poder falar de uma linguagem das coisas nos lembra que, na verdade, as coisas não são um material que se usa e consome, não são um instrumento que se utiliza e coloca de lado, mas algo que tem consistência em si e que “é impelido para o nada” (Heidegger). O arbítrio da vontade manipuladora do homem é que desconsidera seu ser próprio, interior. Esse ser é como uma linguagem que se deve ouvir. A expressão “a linguagem das coisas” não é portanto uma verdade mitológico-poética, apenas verificável pelo mago Merlin ou o iniciado no espírito dos contos. O que se evoca nessa expressão é a recordação, latente em todos nós, do ser próprio das coisas, que podem sempre ainda ser o que são. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

O fato de a auto-interpretação ter alcançado em todos esses âmbitos uma primazia, injustificada do ponto de vista objetivo (sachlich), parece-me ser uma conseqüência do subjetivismo moderno. Na verdade, não se pode outorgar nenhum privilégio a um poeta na explicação de seus versos, tanto quanto não se pode outorgar privilégios ao homem de estado para a explicação histórica dos acontecimentos em que ele próprio participou com sua ação. O autêntico conceito de autocompreensão, o único aplicável em todos estes casos, não deve ser pensado a partir do modelo da autoconsciência plena, mas a partir da experiência religiosa. Essa já sempre inclui que é só pela graça divina que os descaminhos da autocompreensão humana encontram o rumo para um fim verdadeiro, isto é, para a visão de que em todos os caminhos o homem deve ser conduzido para a salvação. Toda autocompreensão humana está determinada em si pela insatisfação. Isso vale também para a obra e a ação. Por isso, a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da [76] consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo. Seu progresso não está limitado, e no entanto não é uma aproximação progressiva a um sentido que se tem em mente. O que perfaz seu sentido é lograr estabelecer a obra, e não o que é que se tem em mente com ela. O que concede sentido à sentença é a palavra acertada, e não o que está escondido na subjetividade do que se tem em mente. É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

Esse é o interesse dogmático positivo que cunha a conceituação de Bultmann e não o interesse por um Iluminismo progressista. Seu conceito de mito é um conceito puramente descritivo. Traz consigo algo de histórico e casual e, por mais fundamental que seja o problema teológico alojado no conceito de uma desmitologização do Novo Testamento, trata-se de uma questão de exegese prática, que não atinge em hipótese alguma o princípio hermenêutico de toda exegese. Seu sentido hermenêutico restringe-se sobretudo a constatar que não se pode fixar dogmaticamente nenhum conceito determinado de mito, pelo qual se pudesse determinar de uma vez por todas o que o Iluminismo científico poderia e o que não poderia expurgar da Sagrada Escritura como mero mito para o homem moderno. Não é a partir da ciência moderna, mas positivamente a partir da aceitação do querigma, a partir da reivindicação interna da fé, que se deve determinar o que seja um mero mito. Um outro exemplo dessa “desmitologização” é precisamente a grande liberdade que possuía e promovia o poeta grego diante da tradição mítica de seu povo. Também essa liberdade não é “Iluminismo”. O poeta exerce sua força espiritual e seu direito crítico baseado num fundamento religioso. Basta lembrar-nos de Píndaro ou de Ésquilo. Isso explica a necessidade de se refletir sobre a relação entre fé e compreensão, à luz da liberdade do jogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Volta e meia leio e reflito sobre um pequeno texto do poeta Hölderlin que começa assim: “A pátria em ocaso”. É um estudo teórico para o drama da morte de Empédocles, que Hölderlin, em distintas versões e motivações, interpreta ao final o ocaso do herói como um sacrifício que este oferece ao tempo e como o ato de fundação de um futuro. Neste tratado, escrito em forma tão complicada como só se pode fazer em suábio, pode-se ver que na realidade, cada instante é um instante de transição, quer dizer, um subir e baixar de duas realidades, uma realidade que decai e se dissolve e outra que chega e devêm. Hölderlin caracteriza expressamente esta experiência epocal que eu descrevo como a diferença entre o novo e o velho, contrapondo a dissolução “ideal” com o devir “real” do novo. Inspira-se na intuição da totalidade como unidade do vivente. A vida consiste em que a unidade do organismo se mantém na troca constante de suas substâncias e que a dissolução sempre dá origem a algo novo. No curso das transformações da história humana [141] isso se realiza de forma que o elemento de dissolução somente se percebe em sua verdadeira unidade com a experiência do novo. Hölderlin quer nos dizer que o antigo, ou melhor, um modo de afrontar o antigo, forma parte da realidade do advento do novo. Segundo Hölderlin, isso ocorre na grande forma da tragédia, naquela afirmação trágica que diz sim ao ocaso e mediante a reconciliação trágica faz com que a vida se renove; mas podemos deixar de lado essa interpretação, que não pertence ao âmbito da presente reflexão. Prescindiremos também da palavra trágica e, com ela, da forma em que esse devir ideal do antigo desaparece poeticamente ante a realidade do novo. Basta que nos atenhamos a nossa própria experiência histórica. Também ela implica que o conhecer e a autoconsciência não são uma atualização de algo concluído, mas que alcançam sua possibilidade e sua realização como atualização desde a novidade e em vista do hoje. Mas isso significa que toda essa atualização e todo esse saber são por sua vez um acontecimento, são história. A idealidade do significado histórico não se forma somente mediante a adição de um espírito poético que flutua sobre um mundo histórico perecível e que se dissolve. Mas esse mundo é de tal natureza que não esquece a si próprio, possui e obtém sua própria idealidade justamente com isso, e vão se elaborando novas figuras de vida desde a infinitude criativa do possível. A afirmação trágica, a visão ideal do passado, é também o conhecimento de uma verdade ôntica e permanente. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.

A verdade aqui é a realidade recordada. Não retemos como verdadeiro, como significativo, tudo o que sucede. Além do poeta trágico, a incansável capacidade idealizadora de nosso próprio sentimento realiza constantemente uma elevação para o nível do ideal, uma elevação do que foi e desapareceu para o nível do permanente e verdadeiro. Sempre me pareceu que a experiência mais profunda do que estou descrevendo nos ocorre quando nos inteiramos da morte de uma pessoa conhecida. De súbito, o modo de ser dessa pessoa se modifica, perpetuando-se, tornando-se mais puro, não necessariamente melhor num sentido moral ou bondoso, mas [142] concluído e visível em seu perfil constante. Evidentemente, dele nada mais podemos esperar ou saber. Tampouco podemos demonstrar-lhe mais nosso afeto. Creio que a experiência que estou descrevendo neste exemplo extremo é um gênero de conhecimento. Isso que revela é verdade. Não se trata do usual “embelezamento” de uma imagem, mas dessa superação do sempre variável e que fluidifica todas as fronteiras e contornos fixos da corrente histórica do tempo. O fato de que algo se detenha e fique imóvel parece propiciar a revelação de uma verdade. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.

O exemplo de um poema pode esclarecer o que produz o aspecto semântico. Há um verso de Immermann que diz: “Die Zähre rinnt” (“As lágrimas escorrem”). Todo mundo que ouve a palavra “Zähre” surpreende-se com o uso de uma palavra tão arcaica no lugar da palavra “Träne”. Mas, considerando o contexto poético, e tratando-se de um verdadeiro poema, como é o caso aqui, acaba-se concordando com a escolha do poeta. A palavra “Zähre” privilegia um outro sentido, ligeiramente alterado, frente ao pranto cotidiano. Pode-se até duvidar. Haverá mesmo uma diferença de sentido? Não terá apenas significado estético, isto é, a diferença não é apenas uma valoração emocional ou eufônica? Não há dúvida de que a palavra “Zähre” soa diferente de “Träne”. Mas, no que se refere ao sentido, elas não poderiam ser substituídas uma pela outra? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

Isso é apresentado de maneira muito aguda e simpática no Fedro de Platão (268s): aquele que possui todos os conhecimentos médicos e as regras de conduta, mas ainda não sabe quando e onde aplicá-los, não é um médico. O trágico ou o músico que aprendeu apenas as regras e os procedimentos gerais de sua arte, mas não criou com eles uma obra, não é um literato ou um músico (280 bs). Também o orador deve conhecer o lugar e o tempo de todas as coisas (hai eukairiai te kai akairiai, 272 a 6). Nesse ponto, Platão já sugere uma superação do modelo de ciência inspirado na techne, ao transferir o supremo saber para a dialética. Nem o médico, nem o poeta e nem o músico conhecem “o bem”. O dialético ou o filósofo verdadeiro, que não é sofista, não “possui” um saber especial, mas é em sua pessoa a materialização da dialética ou da filosofia. Nessa linha, também no diálogo sobre o estadista aparece a arte política como uma espécie de arte têxtil que permite compor com o oposto numa unidade (305 e). Essa arte aparece personificada no estadista. Também no Filebo, o saber sobre à “vida honesta” representa a arte da composição ou mescla que o indivíduo desejoso da felicidade deve realizar. Ernst Kapo comentou essa idéia no que diz respeito ao estadista num belo trabalho, e meus próprios estudos iniciais de crítica à construção histórico-evolutiva de Werner Jaeger detectavam algo similar no Filebo. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Um texto literário não é uma mera fixação de um discurso falado. Não remete a uma palavra já pronunciada. Isso tem [352] conseqüências para a hermenêutica. A interpretação não é aqui um mero recurso para reintermediar um enunciado original. O texto literário é um texto que dispõe de um status especial, justamente porque não remete a um ato de linguagem originário, mas prescreve, antes, todas as repetições e atos de linguagem. Nenhuma linguagem falada pode cumprir totalmente a prescrição representada por um texto literário. Esse exerce uma função normativa que não se refere ao discurso originário nem à intenção do orador, mas surge nele mesmo; por exemplo, na felicidade de um poema bem-sucedido que surpreende e supera o próprio poeta. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia [380] deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambigüidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO II

Em minhas investigações, coloquei em jogo conceitos “clássicos” como o conceito de mimesis, de “re-presentação”, não para [478] defender ideais classistas, mas para poder ultrapassar o conceito do estético, que corresponde à religião da cultura burguesa. Compreendeu-se isso como uma espécie de recaída em um platonismo, completa e definitivamente superado pela concepção moderna de arte. Mas isso também não me parece tão simples. A teoria do reconhecimento, sobre o que repousa toda representação mimética, não é mais que um primeiro aceno para compreender corretamente a pretensão ontológica da representação artística. O próprio Aristóteles, que derivou a arte, como mimesis, a partir da alegria do conhecimento, caracteriza a diferença entre o poeta e o historiador pelo fato de que aquele não apresenta as coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer. Com isso, atribui à poesia uma generalidade que nada tem a ver com a metafísica substancialista de uma estética classista da imitação. A formulação conceitual de Aristóteles aponta, antes, para a dimensão do possível — e com isso também a da crítica à realidade (podemos sentir um forte sabor dessa crítica na comédia antiga). Apesar de tantas teorias classistas da imitação terem se apoiado em Aristóteles, a legitimidade hermenêutica desses conceitos parece-me incontestável. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

A isso acrescentava-se sobretudo a chegada ao mundo universitário do círculo formado em torno do poeta Stefan George. Foram sobretudo os livros de Friedrich Gundolf, fascinantes e de grande influência, os que criaram uma nova sensibilidade artística no tratamento científico da poesia. Em geral, tudo que nasceu desse círculo, os livros de Gundolf como o espírito de Ernst Bertram sobre Nietzsche, a retórica proletária de Wolters, a transparência cristalina de Salin e de modo especial o ataque enfático de Erich von Kahler ao célebre discurso de Max Weber sobre “a ciência como profissão”, tudo isso constituiu na verdade uma única grande provocação. Eram vozes de uma crítica decidida à cultura. Mas diferentemente de opiniões similares de outros setores, que encontravam uma certa audiência na típica insatisfação de principiantes universitários, entre os que me contava, sentíamos aqui que algo estava realmente acontecendo. Havia um poder por atrás das proclamações geralmente monótonas. Que um poeta como George, com a mágica ressonância de seus versos e a energia de sua pessoa, exercia tão forte influência formativa nas pessoas, dava o que pensar aos ânimos reflexivos e representava um corretivo para o jogo conceitual do estudo filosófico que jamais se conseguiria esquecer completamente. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o único representante da matéria depois da jubilação de Theodor Litt, já não pude adaptar tão facilmente o ensino aos meus planos de investigação. Tinha que expor, além dos gregos e seu último e maior sucessor, Hegel, toda a tradição clássica desde Agostinho e Tomás de Aquino até Nietzsche, Husserl e Heidegger… sempre atento aos textos, em minha condição de semifilólogo. Em seminários, trabalhei também com textos poéticos difíceis, de Hölderlin, Goethe e Rilke sobretudo. Esse último, graças à sua linguagem refinada, era então o verdadeiro poeta da resistência universitária. Quem falasse como Rilke ou expusesse Hölderlin, como fazia Heidegger, era marginalizado e atraía os marginalizados para si. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Deve-se aprender, antes, a ler Platão em sentido mimético. O século XX apresenta alguns exemplos nessa linha. Sobretudo o trabalho de Paul Friedländer, mas também outras numerosas obras, mesmo sem grande profundidade, inspiradas no círculo do poeta Stefan George (Friedmann, Singer, Hildebrandt) e os trabalhos de Leo Strauss e seus amigos e discípulos. O tema está ainda longe de ser esgotado. Consiste em referir com precisão os enunciados conceituais inerentes ao diálogo à realidade dialogai donde derivam. É ali que radica a “harmonia dórica” de ação e discurso, de ergon e logos, da qual se fala em Platão, e não só com palavras. Essa harmonia é a verdadeira lei vital dos diálogos socráticos. Esses são literalmente “discursos orientadores”. É só a partir dessa harmonia que se descobre realmente a intenção da arte da contradição em Sócrates, que parece muitas vezes um ardil sofístico e em outras passagens cria uma verdadeira confusão. Se pudéssemos derramar a sabedoria humana como se faz com a água, passando-a de um recipiente ao outro mediante um fio de lã… (Symp. 175 d). Mas a sabedoria humana não é dessa natureza. É o saber do não saber. Nela, está em questão o convencer o outro, o interlocutor de Sócrates, de que nada sabe, e isso significa que seu saber sobre si mesmo e sobre sua vida se torna mera presunção. Ou, para dizê-lo com outra frase audaciosa de Platão da Sétima Carta: não se refuta apenas sua tese, mas sua alma. Isso pode ser aplicado tanto às crianças que acreditam ser amigos, desconhecendo o que seja a amizade, quanto aos generais famosos que crêem encarnar em si a virtude do soldado (Laques) ou aos políticos ambiciosos que [502] presumem possuir um saber superior a qualquer outro (Cármides)… Pode ser igualmente aplicado a todos aqueles que seguem os mestres profissionais da sabedoria e, por último, ao simples cidadão que deve crer e fazer crer que é “justo” como vendedor, comerciante, cambista, artesão etc. Não se trata evidentemente de um saber técnico, mas de outro tipo de saber, além de todas as pretensões e competências especiais de uma superioridade no saber, além de todas as technai e epistemai conhecidas. Esse outro saber significa a “guinada rumo à idéia” que está por trás de todas as meras representações dos presumidos sábios. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.