Porém, uma tal descrição da compreensão que separa, significa que a configuração das idéias que procuramos compreender como discurso ou como texto não é compreendida com referência ao seu conteúdo objetivo, mas como uma configuração estética, como obra de arte ou “pensamento artístico”. Se afirmarmos isso entenderemos por que aqui não se trata da relação com a coisa (em Schleiermacher “o ser”). Schleiermacher segue as determinações fundamentais de Kant, quando diz que o “pensamento artístico” “somente se distingue pelo maior ou menor prazer”, e é propriamente “só o ato momentâneo do sujeito”. A esta altura, é naturalmente a pressuposição, pela qual se colocou pela primeira vez a tarefa da compreensão que faz com que este “pensamento artístico” não seja um simples ato momentâneo, mas que se exterioriza. Schleiermacher vê no “pensamento artístico” momentos especiais da vida, nos quais dá-se um prazer tão grande que eles irrompem em exteriorização, mas mesmo assim — e, por mais que suscitem prazer nas “imagens originais das obras de arte” — continuam sendo um pensamento individual, livre combinação, não vinculada pelo ser. É exatamente isso que distingue os textos poéticos dos científicos. Schleiermacher quer dizer com isso, certamente, que o discurso poético não se submete ao padrão de entendimento sobre a coisa em causa, descrito acima, porque o que nele se diz não é dissociável do “como”, da maneira de ser dito. Por exemplo, a guerra de Tróia está no poema homérico — quem se volta para a realidade histórica da coisa em causa lê mais Homero como discurso poético. Ninguém [192] quereria afirmar que o poema tenha ganho algo de realidade artística através das escavações dos arqueólogos. O que se deve compreender aqui não é precisamente um pensamento comum da coisa em causa, mas um pensamento individual, que, por sua essência, é combinação livre, expressão, livre exteriorização de uma essência individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A repetição da frase de Schleiermacher por Steinthal mostra já os efeitos da pesquisa das leis psicológicas, que a pesquisa da natureza havia tomado como modelo. Nisso Dilthey é mais livre, enquanto conserva com mais força a conexão com a estética do gênio. Aplica a fórmula em questão, particularmente na interpretação dos poetas. Compreender a “idéia” de um poema, a partir de sua “forma interior”, pode-se dizer, obviamente, que é “compreender melhor esta idéia”. Dilthey vê nisso pouco menos que o “supremo triunfo da hermenêutica”, pois o conteúdo filosófico da grande poesia abre-se aqui, através do fato de que a compreendemos como criação livre. A criação livre não está restringida por condições externas ou materiais, e, por isso só pode ser concebida como “forma interior”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Mas mesmo aquela interpretação que parece mais afastada dos tipos tratados até agora, a interpretação re-produtiva, na qual se executa a música e a poesia — pois uma e outra só possuem verdadeira existência no serem exercidas — dificilmente poderá ser considerada como uma forma autônoma da interpretação. Também ela encontra-se atravessada pela cisão entre função cognitiva e normativa. Ninguém irá encenar um drama, recitar um poema ou executar uma composição musical se não o fizer compreendendo o sentido originário do texto, mantendo-o como referência de sua re-produção ou interpretação. Mas, pelo mesmo motivo, ninguém poderia realizar essa interpretação re-produtiva sem levar em conta, nessa transposição do texto para uma forma sensível, aquele outro momento normativo, que limita as exigências de uma reprodução estilisticamente justa em virtude das preferências de estilo do próprio presente. Se nos conscientizarmos inteiramente até que ponto a tradução de textos estrangeiros ou mesmo sua reformulação poética, assim como também a correta declamação de textos, realizam por si mesmos um desempenho explicativo parecido ao da interpretação filológica, de maneira que não existem de fato fronteiras nítidas entre um e outro, então já não poder-se-á evitar a conclusão de que a distinção entre a interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva não pode pretender uma validez de princípio, porque tão-somente circunscreve um fenômeno unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em si, todo escrito levanta a pretensão de ser alentado por si mesmo no lingüístico, e esta pretensão de autonomia de sentido vai tão longe que inclusive uma leitura autêntica, por exemplo, a de um poema pelo seu autor se torna questionável, no momento em que a intenção dos ouvintes se afasta do ponto a que nós, como aqueles que compreendem, realmente estamos orientados. Posto que o que importa é a comunicação do verdadeiro sentido de um texto, sua interpretação se encontra submetida a uma norma que se pauta no assunto em questão. E esta a exigencia que coloca a dialética platônica, quando procura fazer valer o logos como tal, e deixa, às vezes, para trás o seu companheiro real de diálogo no curso desse empenho. E mais, a debilidade específica da escrita, sua maior necessidade de auxílio, em comparação com o falar vivo, tem como reverso o fato de que faz sobressair a tarefa hermenêutica da compreensão com dobrada clareza. Tal como na conversação, também aqui a compreensão tem que tentar fortalecer o sentido do que foi dito. O que se diz no texto tem de ser despojado de toda a contingência que — lhe é inerente, e entendido na plena idealidade em que unicamente tem seu valor. Por isso a fixação por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em advogado de sua pretensão de verdade, precisamente porque separa por completo o sentido do enunciado aquele que enuncia. É assim como o leitor experimenta, em sua validez, o que lhe fala e o que ele compreende. Por sua vez, aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha: já será sempre uma possível verdade. Isto é o que emerge em virtude da liberação do dito com respeito a quem o disse e em virtude do status de duração que lhe confere a escrita. E o fato de que pessoas pouco acostumadas à leitura nunca cheguem inteiramente à suspeita de que algo escrito possa ser falso, tem, como já vimos , uma razão hermenêutica profunda, pois para eles todo escrito é uma espécie de documento que se avaliza a si mesmo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
A visão da imbricação interna de interpretação e compreensão permite também destruir a falsa romantização da imediatez que artistas e conhecedores cultivaram e cultivam sob o signo da estética do gênio. A interpretação não pretende pôr-se no lugar da obra interpretada. Não pretende, por exemplo, atrair para si a atenção pela força poética de sua própria expressão. Pelo contrário, lhe é inerente uma acidentalidade fundamental. E isso vale não somente para a palavra interpretadora, mas também para a interpretação reprodutiva. A palavra interpretadora tem sempre algo de acidental, na medida em que se encontra motivada pela pergunta hermenêutica, não somente no sentido da instância pedagógica a que se limitou a interpretação na época do Aufklärung, mas também porque a compreensão é sempre um verdadeiro acontecer. Do mesmo modo, a interpretação como reprodução é fundamentalmente acidental, isto é, o é não somente quando se executa, interpreta, traduz ou se lê algo para outros, exagerando com intenções didáticas. O fato de que, nesses casos, a reprodução seja interpretação num sentido especial e deítico, implicando um exagero demonstrativo e uma sobre-iluminação, não representa verdadeiramente uma diferença de princípio, mas meramente gradual, com respeito a qualquer outra interpretação reprodutiva. Por mais que seja o poema ou a própria composição a que ganha sua presença mímica em sua execução, qualquer execução está obrigada a pôr ênfase. Neste sentido, a diferença com respeito à enfatização demonstrativa da intenção didática já não é tão grande. Toda execução é interpretação. Em toda execução há sobre-iluminação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Tal é a razão pela qual, no acontecer lingüístico, tem seu lugar não somente o que se mantém, mas também e justamente a mudança das coisas. Por exemplo, na decadência das palavras podemos observar a mudança dos costumes e dos valores. A palavra “virtude”, por exemplo, quase só se mantém viva no nosso mundo lingüístico, no sentido irônico. E se, em seu lugar, nos servimos de outras palavras, que na discrição que as caracteriza formulam uma sobrevivência das normas éticas, de um modo que voltam as costas ao mundo das convenções fixas, esse mesmo processo é um reflexo do que ocorre na realidade. Também a palavra poética se converte com freqüência numa prova do que é verdadeiro, na medida em que o poema desperta uma vida secreta em palavras que pareciam desgastadas e consumidas, e nos esclarece assim sobre nós mesmos. E a linguagem pode tudo isso, porque não é evidentemente uma criação do pensamento reflexivo, mas contribui para realizar o comportamento com respeito ao mundo em que vivemos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambigüidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambigüidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
De uma forma correspondente, a expressão poética tem se mostrado como o caso especial de um sentido introduzido e incorporado por completo na enunciação. No poema, o vir-à-fala é como um entrar em relações de ordenação, que são as que suportam e avalizam a “verdade” do que foi dito. Todo vir-à-fala, e não somente a expressão poética, tem em si algo desse testemunho. “Que não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra”. Como já destacamos, falar não é nunca uma subsunção do individual sob os conceitos do geral. No uso das palavras, não se torna disponível o que está dado à contemplação, como caso especial de uma generalidade, mas está presente naquilo mesmo que é dito, tal como a idéia do belo está presente no que é belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
No grandioso começo do pensamento ocidental, temos a teoria do ser, apresentada por Parmênides em seu poema didático. Lega aos sucessores a questão que ainda está em aberto. O próprio Platão confessa não poder compreender a dimensão que Parmênides tem em mente com esse ser. A investigação moderna permanece controversa. Hermann Cohen pensava tratar-se da lei da identidade como a mais elevada exigência que o pensamento como tal pode fazer. A investigação histórica esbarra nesses anacronismos sistematizadores. Objeta-se com razão que o ser que se tem em mente nesse caso seria o mundo, a totalidade dos entes, pelo que os [86] jônicos perguntaram sob o título de ta panta. A questão de saber se o ser de Parmênides é o prelúdio de um conceito filosófico supremo ou um nome coletivo para o conjunto de todos os entes, não pode ser encarada como se fosse uma alternativa a que se precisa escolher. Devemos ao contrário sofrer essa carência de linguagem, que num enorme esforço de elevação do pensamento cunhou a expressão to on, o ente, esse singular abstrato. Antes falava-se dos onta, dos muitos entes. Devemos calcular os riscos desse discurso, se quisermos seguir o pensamento que aqui está em jogo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Creio que o mérito da análise semântica tenha sido o de ter trazido à consciência a estrutura total da linguagem e de ter relacionado a essa estrutura os falsos ideais da unicidade dos signos ou símbolos e da formalização lógica da expressão de linguagem. O grande valor da análise semântica das estruturas da linguagem não consiste apenas em dissolver a aparência de igualdade produzida pelo signo verbal isolado, trazendo à consciência seus sinônimos. Na verdade, a análise semântica dissolve essa aparência mostrando algo ainda mais significativo, a saber, que, em sua singularidade, a palavra-expressão é uma estrutura intransferível e insubstituível. Considero essa segunda contribuição mais significativa porque refere-se a algo que está aquém de toda sinonímia. Na perspectiva da simples designação ou nomeação, a maioria das expressões empregadas para o mesmo pensamento ou das palavras usadas para exprimir a mesma coisa pode admitir distinção, articulação e [175] diferenciação. Todavia, quanto menos os signos verbais singulares forem isolados, tanto mais se individualiza o significado da expressão. O conceito de sinonímia dilui-se cada vez mais. Por fim, resta um ideal semântico, que dentro de um contexto determinado só reconhece ainda uma única expressão e nenhuma outra como a correta, como a palavra acertada. O ápice dessa tendência poderia ser o uso poético da palavra; dentro dele parece intensificar-se essa individualização, que partindo do uso verbal épico e passando pelo dramático chega à configuração lírica poética do poema. Isso se mostra no fato de o poema lírico ser amplamente intraduzível. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.
O exemplo de um poema pode esclarecer o que produz o aspecto semântico. Há um verso de Immermann que diz: “Die Zähre rinnt” (“As lágrimas escorrem”). Todo mundo que ouve a palavra “Zähre” surpreende-se com o uso de uma palavra tão arcaica no lugar da palavra “Träne”. Mas, considerando o contexto poético, e tratando-se de um verdadeiro poema, como é o caso aqui, acaba-se concordando com a escolha do poeta. A palavra “Zähre” privilegia um outro sentido, ligeiramente alterado, frente ao pranto cotidiano. Pode-se até duvidar. Haverá mesmo uma diferença de sentido? Não terá apenas significado estético, isto é, a diferença não é apenas uma valoração emocional ou eufônica? Não há dúvida de que a palavra “Zähre” soa diferente de “Träne”. Mas, no que se refere ao sentido, elas não poderiam ser substituídas uma pela outra? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.
Um texto literário não é uma mera fixação de um discurso falado. Não remete a uma palavra já pronunciada. Isso tem [352] conseqüências para a hermenêutica. A interpretação não é aqui um mero recurso para reintermediar um enunciado original. O texto literário é um texto que dispõe de um status especial, justamente porque não remete a um ato de linguagem originário, mas prescreve, antes, todas as repetições e atos de linguagem. Nenhuma linguagem falada pode cumprir totalmente a prescrição representada por um texto literário. Esse exerce uma função normativa que não se refere ao discurso originário nem à intenção do orador, mas surge nele mesmo; por exemplo, na felicidade de um poema bem-sucedido que surpreende e supera o próprio poeta. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Mas a coisa se modifica quando se trata de um texto literário, e justamente por essa razão. A função do jogo de palavras não compactua com a ambigüidade polivalente da palavra poética. E verdade que as conotações que acompanham um significado principal emprestam à linguagem sua magnitude (Volumen) literária. Mas, pelo fato de subordinarem-se à unidade de sentido do discurso e evocar outros significados como meras ressonâncias, os jogos de palavras não são simples jogos de ambigüidade ou de polivalência que dão origem ao discurso poético. Neles confrontam-se unidades de sentido autônomas. O jogo de palavras rompe assim a unidade do discurso e exige ser compreendido numa relação de sentido reflexiva e superior. O uso reiterado de jogos de palavras e trocadilhos nos irrita, porque rompem a unidade do discurso. O princípio desarticulador do jogo de palavras dificilmente será eficaz numa canção ou num poema lírico, ou seja, sempre que prevaleça a figuração melódica da linguagem. Muito diferente é, obviamente, o caso do discurso dramático, onde a contraposição domina a cena. Basta lembrarmos a Stichomythia ou a autodestruição [355] do herói que se anuncia no jogo de palavras com o nome próprio herói”. Também é diferente o caso em que o discurso poético não origina o fluxo da narração, a desenvoltura do canto nem a representação dramática, mas se move conscientemente no jogo da reflexão, de cujos jogos especulativos faz parte a desarticulação de expectativas do discurso. O jogo de palavras pode exercer assim uma função fecunda numa lírica muito reflexiva. É o que ocorre na lírica hermética de Paul Celan. Mas há que se perguntar também aqui se o caminho dessa sobrecarga reflexiva de palavras não acaba se perdendo no descaminho. Surpreende com efeito que Mallarmé utilize jogos de palavras em ensaios de prosa, como em Igitur. Onde se trata, porém, de conjuntos sonoros de figuras poéticas, ele quase não joga com as palavras. Os versos de Salut parecem estratificados e preenchem uma expectativa de sentido em planos tão diversos como o de um brinde à saúde e de um balanço de vida, oscilando entre a espuma do champanhe na taça e o rastro ondulado que o barco da vida deixa para trás. Mas ambas as dimensões de sentido podem se realizar na mesma unidade de discurso como o mesmo gesto melódico da linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Para finalizar, um exemplo bem conhecido pode servir de ilustração. É o final do poema de Mörike Auf eine Lampem. O verso diz: “Mas o que é belo resplandece feliz em si mesmo”. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
O verso foi objeto de um debate entre Emil Staiger e Martin Heidegger. Interessa-nos aqui unicamente como um caso exemplar. Nesse verso aparece um conjunto verbal de aparente trivialidade: scheintes. Pode-se entender como “parecer”, dokei, videtur, ilsemble, it seems, pare etc. Essa interpretação prosaica da expressão faz sentido e por isso encontrou seu defensor. Mas pode-se ver muito bem que tal interpretação não cumpre a lei do verso. Pode-se também demonstrar que scheint es significa aqui “reluz”, splendet Basta aplicar um princípio hermenêutico. Em caso de conflito, decide o contexto mais amplo. A dupla possibilidade de compreensão é sempre um conflito. Mas é evidente que o belo se aplica aqui a uma lâmpada. Tal é o enunciado global do poema que é preciso compreender. Uma lâmpada que não ilumina porque repousa dependurada, velha e fora de moda, num salão de luxo (“quem tem olhos para ela?”), adquire aqui seu próprio brilho porque é uma obra de arte. É indubitável que o brilho se refere [360] aqui à lâmpada que ilumina, ainda que ninguém a utilize. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e scheinen (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel sobre o brilho sensível da idéia. Mas existem também razões imanentes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os sons sibilantes formam uma trama consistente (tuas aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métrica do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria surpresa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilísticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa. Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A linguagem desse poema aproxima-se freqüentemente da prosa (Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico especial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida, num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido interior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz), scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)… e o selbst, que encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa compreensão não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação de uso… nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas razões desaparece, e o texto fala. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Com isso entra em jogo uma relação de palavra e conceito que precede à relação elaborada por Wiehl entre drama e dialética. É no poema lírico que a linguagem aparece em sua essência mais pura, de modo que nele, de maneira velada, já se dão todas as possibilidades da linguagem, inclusive as do conceito. O fundamental disso já havia sido visto por Hegel, quando reconheceu que, em diferenciação com o “material” das outras artes, o caráter de linguagem significa totalidade. É a mesma idéia que motivou Aristóteles a atribuir uma primazia especial também ao ouvido — apesar da primazia natural atribuída à visão, entre todos os sentidos — , porque o [474] ouvir recebe e acolhe a linguagem e, com isso, recebe e acolhe tudo, não somente o visível. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Decerto, Hegel não destacou especificamente a lírica como portadora dessa primazia do caráter de linguagem, pois estava demasiadamente influenciado pelo ideal de naturalidade, representado em sua época por Goethe. Por isso, para ele, o poema lírico não representava mais que a expressão subjetiva da interioridade. Mas a verdade é que a palavra lírica é linguagem em um sentido muito característico. Não é o fato de que a palavra lírica pode ser elevada ao ideal depurado da poésie pure que vai mostrar isso. E verdade que esse fato não permite pensar na forma desenvolvida da dialética — como o faz o drama — , mas no elemento especulativo subjacente a toda dialética. Tanto no movimento de linguagem do pensamento especulativo quanto no movimento de linguagem do poema “puro” realiza-se a mesma autopresença do espírito. Também Adorno percebeu e chamou a atenção, com razão, para a afinidade entre o enunciado lírico e o enunciado da especulação dialética. Mas quem fez isso foi sobretudo o próprio Malarmé. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.