No entanto, há uma marcante exceção: o pietismo. Em face da “escolástica, não somente um cidadão do mundo como Shaftesbury deveria incumbir-se de limitar as exigências da ciência, ou seja, da demonstratio, e reportar-se ao sensus communis, mas também o pregador que quisesse alcançar o coração de sua comunidade. Por essa razão, Oetinger, o pietista suábio, apoiou-se expressamente na defesa do sensus comunis de Shaftesbury. Para sensus communis nós encontramos a tradução “coração” e a seguinte descrição: “O sensus communis está às voltas com coisas puras que os homens vêem diante de si cotidianamente, coisas que mantêm unida toda uma sociedade que dizem respeito tanto a verdades como a enunciados, como instituições e formas de abranger os enunciados…”. O interesse de Oetinger é o de mostrar que não importa somente a clareza dos conceitos — ela “não é suficiente para uma viva compreensão”. Mais do que isso, têm de participar “certas pré-percepções e inclinações”. “Mesmo sem prova alguma, os pais já estão tocados a cuidar de seus filhos: o amor não demonstra, porém muitas vezes arrasta o coração contra a razão, apondo-se ao argumento que se ama”. O apelo de Oetinger ao sensus, communis, contra o racionalismo da “escola”, é para nós especialmente interessante, porque nele o encontramos em expressa aplicação hermenêutica. O que importa ao prelado Oetinger é a compreensão da Bíblia Sagrada. Dado que aqui o método matemático-demonstrativo falha, ele exige um outro método, o “método generativo”, ou seja, “a conferência semeadora das Escrituras, a fim de que a justiça possa ser plantada como uma muda”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A sã razão, o common sense, se apresenta principalmente nos julgamentos sobre justo e injusto, factível e infactível, que ela vem a baixar. Quem possui um juízo são não está apto, como tal, a julgar o particular a partir de pontos de vista universais, mas sabe o que é que realmente importa, isto é, vê as coisas com base em pontos de vista corretos, justificados e sadios. Um chantagista, que calcula corretamente as fraquezas das pessoas e que, para suas fraudes, sempre age correto não possui, mesmo assim (no sentido eminente da palavra) um “juízo são”. A universalidade, que é atribuída à capacidade de julgamento, não é tão “comum” como Kant a vê. Juízo é, enfim, não tanto uma faculdade mas uma exigência a ser apresentada a todos. Todos possuem suficiente “senso comum”, isto é, capacidade de julgamento, tanto que se pode exigir deles a prova de “senso comum”, de genuína solidariedade ético-civil, isto significa, porém: julgamento sobre justiça e injustiça, e preocupação pela “utilidade comum”. É isso que torna tão importante o apelo de Vico à tradição humanística, a ponto de ele manter, em face da logização do conceito de senso comum, toda a abundância de seu conteúdo, o que estava vivo na tradição romana dessa palavra (e que até os nossos dias caracteriza a raça latina). Da mesma forma, a apreensão desse conceito por parte de Shaftesbury, como vimos, foi ao mesmo tempo uma vinculação à tradição político-social do humanismo. O sensus communis é um momento do ser burguês-ético. Também onde esse conceito, como no pietismo ou na filosofia dos escoceses, significa uma virada polêmica contra a metafísica, ele permanece ainda na sua função originária e crítica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Na velha tradição da hermenêutica, que se perdeu completamente na autoconsciência histórica da teoria pós-romântica da ciência, este problema ainda ocupava um lugar sistemático. O problema hermenêutico se dividia como segue: distingue-se uma subtilitas intelligendi, compreensão, de uma subtilitas explicandi, a interpretação, e, durante o pietismo, se acrescentou como terceiro componente a subtilitas applicandi, a aplicação (por exemplo, em J.J. Rambach). Esses três momentos deviam perfazer o modo de realização da compreensão. É significativo que os três recebam o nome de subtilitas, ou seja, que se compreendam menos como um método sobre o qual se dispõe, do que como um fazer, que requer uma particular finura de espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Porém, a fusão interna da compreensão e da interpretação trouxe como conseqüência a completa desconexão do terceiro momento da problemática da hermenêutica, o da aplicação, do contexto da hermenêutica. Aplicação edificante que se dispensava, por exemplo, à Sagrada Escritura no apostolado e sermões cristãos, parecia ser algo completamente distinto da compreensão histórica e teológica da mesma. Nisso, nossas considerações nos forçam a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação. Não significa isso voltar à distinção tradicional das três subtilitatae de que falava o pietismo, pois pensamos, pelo contrário, que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O pano de fundo da “retórica” adquire um interesse temático especial quando se busca compreender o destino epistemológico e científico das Humaniora — até sua constituição metodológica na configuração das ciências do espírito do romantismo. O que interessa realmente nesse ponto não é tanto a função desempenhada pela teoria hermenêutica nesse contexto — que é mais ou menos secundária — , mas a antiga tradição medieval e humanista da retórica. Como parte do trivium, a retórica apresentava-se como uma obviedade quase inadvertida, por impregnar tudo. Mas isso significa que a mudança imperceptível do antigo, aos poucos, foi abrindo caminho para as ciências históricas. A historia da teoria hermenêutica, forjada na defesa contra os ataques dos contra-reformistas e tridentinos ao Luteranismo — desde Lutero até Melanchton e Flacius, passando pelo racionalismo incipiente e seu oponente, o pietismo, até o surgimento da visão histórica na era do romantismo — , não se desenvolveu sob a perspectiva da teoria do conhecimento e da teoria da ciência, mas sob a urgência das controvérsias teológicas iniciadas com a Reforma. Essa historia, na verdade, foi escrita por Wilhelm Dilthey e Joachim Wach, sob a problemática da pré-história das modernas ciências históricas do espirito. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a idéia da força expressiva da linguagem [298] tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na idéia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
E todo o culto cristão, desde que se tornou prioritário pela Reforma, de modo ainda mais decisivo que na tradição cristã anterior, se resume na profissão de fé, no fortalecimento e no chamado à fé. A fé baseia-se tão-somente na reta interpretação da mensagem cristã. Por isso, a tarefa específica da hermenêutica teológica irá tornar-se evidente pelo fato de a interpretação da Sagrada Escritura, em virtude da pregação, aparecer agora como o centro do culto divino, nas igrejas cristãs. Não serve tanto para uma interpretação científica da Sagrada Escritura quanto para a práxis da pregação, pela qual a mensagem salvífica deve atingir o indivíduo de modo que esse se sinta interpelado e nela implicado. Por isso, a aplicação não é uma mera “aplicação” da compreensão, mas seu verdadeiro núcleo. Desse modo, a problemática da aplicação, que alcançou seu ponto alto no pietismo, não representa apenas um momento essencial na hermenêutica dos textos religiosos, mas mostra a significação filosófica do problema hermenêutico em seu conjunto. A aplicação é algo mais que um mero recurso metodológico. VERDADE E METODO II OUTROS 22.