Gadamer (VM): perfeição

Conseqüentemente, e por isso mesmo, é que a filosofia do Aufklärung alemão não contou o juízo como a mais elevada faculdade do espírito, mas, sim, a mais baixa faculdade do conhecimento. Com isso, ele tomou um rumo que se afasta bastante do sentido romano originário do sensus communis e que dá continuidade à tradição escolástica. Isso viria a dar à estética um significado especial. No caso de Baumgarten, p. ex., está fora de dúvida: O que o juízo reconhece é o sensorial-individual, a coisa singular, e o que ele julga na coisa singular é sua perfeição ou imperfeição. Agora, no entanto, deve-se observar nessa determinação do julgamento, que aqui não é simplesmente aplicado um conceito pré-existente da coisa, mas que o sensorial-individual em si, acaba chegando à apreensão, na medida em que se percebe nele a concordância do muito no uno. O decisivo, aqui, portanto, não é a aplicação de um universal, mas a concordância interna. Como se vê, trata-se já daquilo que Kant mais tarde viria a denominar de “juízo reflexivo” e que entende como o julgamento segundo uma finalidade real e formal. Não se dá nenhum conceito, mas o individual é julgado “imanente”. Kant chama a isso um julgamento estético, e, tal como Paumgarten denomina iudicium sensitivum como gustus, assim repete Kant: “Um julgamento sensorial da perfeição chama-se gosto”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É notório que sempre se trata não apenas do juízo lógico, mas do juízo estético. O caso singular, em que atua o juízo não é nunca um mero caso; ele não se esgota em ser uma particularidade de uma lei ou conceito universal. Ele é, antes, sempre um “caso individual”, e, caracteristicamente, designamos a isso: um caso particular, e um caso especial, por não ser abrangido pela regra. Todo julgamento sobre o que se tem em mente na sua individualidade concreta, como nô-lo exigem as situações que envolvem nossa atuação, se considerado rigorosamente, é um julgamento sobre um caso especial. Isso significa nada mais que, o fato de que o julgamento do caso não se aplica simplesmente o padrão do universal — de acordo com o qual ele ocorre — mas mesmo, que o co-determina completamente e corrige. Daí se segue, afinal, que todas as decisões éticas exigem gosto — não como se essa avaliação mais individualizada da decisão fosse a única determinante para elas, mas por ser um momento imprescindível. É realmente um desempenho de fato indemonstrável acertar no que é correto e dar um disciplinamento à aplicação do universal, da lei dos costumes (Kant), uma disciplina que a própria razão não está em condições de fornecer. É assim que o gosto, embora não seja certamente o fundamento, é decerto a mais elevada perfeição do julgamento ético. A quem a injustiça se opõe ao gosto, a sua mais elevada segurança está em aceitar o bem e repudiar o mal — ela é tão elevada quanto o modo como a segurança do mais vital dos nossos sentidos, o sentido da alimentação escolhe ou repudia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Todavia, se se olhar mais exatamente, uma tal concepção não confere nem com as palavras de Kant nem com a questão que ele examina. O suposto deslocamento do ponto de vista de Kant, do gosto para o gênio, dessa forma não resiste; é só preciso aprender a reconhecer, já no princípio, a preparação secreta do desenvolvimento posterior. É indubitável que aquelas limitações, que impedem a tatuagem a uma pessoa ou um certo ornamento a uma igreja, não sejam lamentadas por Kant, mas ao contrário, fomentadas, que Kant, portanto, do ponto de vista moral, julgue como um ganho, aquela ruptura que com isso acontece ao prazer estético. Os exemplos da beleza livre devem representar, evidentemente, não a própria beleza, mas tão-somente assegurar que, o agradar, como tal, não representa um julgamento da perfeição da coisa. E quando Kant, ao final do parágrafo, através da diferenciação daquelas duas espécies de beleza, essa possibilidade de apaziguamento de uma divergência com relação ao gosto é, afinal, apenas um efeito colateral, que tem como base a cooperação de dois modos de consideração, e de tal maneira que o caso mais freqüente será a unanimidade de ambos os modos de consideração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É assim que o formalismo conduz do “prazer seco” à decisiva dissolução não somente do racionalismo na estética, mas sobretudo de toda doutrina da beleza universal (cosmológica). Justamente com aquela diferenciação classicista entre idéia normal e ideal da beleza, Kant destrói o fundamento, a partir do qual a estética da perfeição encontra sua beleza única e incomparável na plena agradabilidade sensorial de todo ente. Somente então “a arte” consegue tornar-se um fenômeno autônomo. Sua tarefa não é mais a representação do ideal da natureza — mas o auto-encontro do homem na natureza e no mundo humano-histórico. A comprovação de Kant, de que o belo agrada sem conceituação alguma, não impede, de forma alguma, que só o belo que nos atinge significativamente encontra o nosso inteiro interesse. Justamente o reconhecimento da ausência de conceituação do gosto conduz para além de uma estética do mero gosto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Aqui se conjuga a rejeição da estética da perfeição, na mais bela forma, com a significação moral do belo natural. Justamente porque não encontramos na natureza fins em si e, mesmo assim, achamos beleza, isto é, uma conveniência para a finalidade de nosso prazer, a natureza nos faz, com isso, um “aceno”, no sentido de que somos realmente o último fim, o fim derradeiro da criação. A dissolução do antigo pensamento cosmológico, que deu ao homem seu lugar no arcabouço total dos entes e a cada ente seu objetivo de perfeição, dá ao mundo, que deixa de ser belo, enquanto uma ordem de fins absolutos, a nova beleza, a beleza de ser conveniente para nós. Torna-se “natureza”, cuja inocência reside em que nada sabe dos homens e de seus vícios sociais. Mesmo assim, ela tem algo a nos dizer. Com vista à idéia de uma determinação inteligível da humanidade, a natureza, na qualidade de a bela natureza, ganha uma linguagem que a conduz a nós. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A “diferenciação estética”, que atua como consciência estética, produz para si mesma uma própria existência externa. Comprova sua produtividade na medida em que prepara, para a simultaneidade, os seus devidos lugares, a “biblioteca universal”, no âmbito da literatura ou museu ou teatro permanente, a sala de concertos etc. Deve-se diferenciar claramente aquilo que surge agora daquilo que é mais antigo: O museu, p. ex., não é simplesmente um acervo que se tornou público. Mais do que isso, os antigos acervos espelhavam (nas cortes e nas cidades) a escolha de um determinado gosto e continham, preponderantemente, os trabalhos de uma mesma “escola”, concebida como exemplar. O museu, ao contrário, é o acervo de tais acervos e, caracteristicamente, alcança sua perfeição no encobrir seu próprio surgimento a partir desses acervos, quer através de uma reordenação histórica do conjunto, quer através da complementação mais abrangente possível. Algo semelhante pode-se apontar no teatro que devem permanente ou no empreendimento de concertos do último século, onde o repertório se distancia mais e mais do criar contemporâneo e se adequa à necessidade de uma auto-afirmação, que é característica para a sociedade instruída que sustenta essa instituição. Mesmo formas artísticas que tanto parecem resistir à simultaneidade da vivência estética, como a arte da construção, acabam sendo envolvidas por ela, quer através da moderna técnica de reprodução, quais aquelas maquetes em imagens, quer através do turismo moderno, que transforma as viagens em páginas de livros ilustrados. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

[100] O que foi produzido alcança o seu fim, o que foi feito fica pronto, quando satisfazem à finalidade que lhe foi determinada. Mas de que maneira deve-se imaginar, agora, o padrão de perfeição de uma obra de arte? Por mais racional e sobriamente que se encare a “produção” artística — muita coisa do que denominamos obra de arte não se destina, absolutamente, ao uso, e nenhuma delas ganha, através de uma tal finalidade a medida do seu estar pronta. Nesse caso, o ser da obra de arte se apresenta apenas como uma interrupção de um processo de formação que, virtualmente, aponta para além de si? Será que, em si mesmo, não poderá, de forma alguma, consumar-se? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Caberia indagar se tais formulações (que aparecem com o mesmo sentido também em Boeckh) podem ser tomadas estritamente ou se propriamente devem descrever só uma perfeição relativa da compreensão. Certamente que Schleiermacher — como, de uma maneira mais decidida, Wilhelm von Humboldt — considera a individualidade como um mistério que jamais pode ser revelado de todo. Todavia, justamente essa tese só almeja ser entendida como relativa: A barreira que se levanta aqui frente à razão e o conceber não é insuperável em todos os sentidos. Ela deve ser ultrapassada através do sentimento, portanto, com uma compreensão imediata, simpatética e congenial: a hermenêutica é, justamente, arte e não procedimento mecânico. Assim, leva a cabo sua obra, a compreensão, tal como se realiza uma obra de arte. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Herder não precisou ir muito além da base colocada por Winckelmann e bastou-lhe também reconhecer a relação dialética entre o caráter modelar e o irrepetível de todo o passado, para opor à consideração teleológica da história do Aufklärung uma concepção histórica universal do mundo. Pensar historicamente significa agora conceder a cada época seu próprio direito à existência e até mesmo a uma perfeição própria. E este é um passo que Herder dá de modo fundamental. A concepção histórica do mundo obviamente ainda não poderia desenvolver-se inteiramente, enquanto os preconceitos do classicismo continuassem atribuindo à antigüidade uma posição modelar especial. Pois não somente uma teleología à maneira da que o Aufklärung cultivava com a fé na razão, como também uma teleología invertida, que preserva a perfeição de um passado ou de um começo da história, continuam reconhecendo um padrão que se encontra além da história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Há muitas formas de pensar a história a partir de um padrão situado além dela própria. O classicismo de Wilhelm von Humboldt considera a história como a perda e a decadência da perfeição da vida grega. A teologia histórica gnóstica da época de Goethe, cuja influência sobre o jovem Ranke tem sido exposta há pouco, pensa o futuro como a restauração de uma [205] perfeição dos tempos originais, que foi perdida. Hegel reconciliou o caráter estético modelar da antigüidade clássica com a autoconsciência do presente, caracterizando a religião da arte dos gregos como uma figura já superada do espírito, e proclamando na autoconsciência filosófica da liberdade a perfeição da história no presente. Todas estas são maneiras de pensar a história que pressupõem um paradigma situado fora dela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

No fundo, o que domina aqui é um ideal humanístico. Wilhelm von Humboldt tinha visto a perfeição específica da antigüidade grega na riqueza de grandes formas individuais que ela nos mostra. No entanto, os grandes historiadores não podem, certamente, restringir-se a um ideal classicista desse gênero. Eles seguem, antes, a Herder. Mas essa concepção histórica do mundo que vem ligada a Herder e que já não tem preferência especial por uma era clássica, que faz ela mais do que considerar o conjunto da história universal sob o mesmo paradigma que Humboldt empregou para fundamentar a primazia da antigüidade clássica? A riqueza das manifestações individuais não é somente o que caracteriza a vida grega, é a característica da vida histórica em geral, e é isso o que perfaz o valor e o sentido da história. A estremecedora pergunta pelo sentido desse drama de esplendorosos triunfos e ruínas cruéis, que abalam o coração humano, deveria encontrar aqui uma resposta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A idéia da compreensão infinita (intellectus infinitus), para a qual tudo é ao mesmo tempo (omnia simul), aparece aqui reformulada como imagem original da justiça histórica. O historiador se lhe aproxima quando sabe que todas as épocas e todos os fenômenos históricos se justificam igualmente perante Deus. Dessa maneira, a consciência do historiador é a representante da perfeição da autoconsciência humana. Quanto melhor consiga reconhecer o valor próprio e indestrutível de cada fenômeno, isto é, quando pensa historicamente, tanto mais semelhante a Deus pensará. É bem por isso que Ranke compara o ofício do historiador com o do sacerdócio. Para o luterano Ranke, o verdadeiro conteúdo da mensagem cristã é a imediatez para com Deus. A restauração dessa imediatez, que [215] precedeu a queda do pecado original, não somente se produz através dos meios da graça na igreja — também o historiador participa dela ao fazer objeto de sua investigação a essa humanidade caída na história e ao reconhecer a imediatez rumo a Deus, nunca perdida de todo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Naturalmente a aplicação desse esquema pressupõe que seja possível superar a vinculação a um ponto de vista verdadeiramente histórico para tudo. É nisso que vê a sua perfeição. Por isso concentra os seus esforços em desenvolver o “sentido histórico”, a fim de aprender a elevar-se para além dos preconceitos do próprio presente. E assim que Dilthey se considerou o autêntico realizador da concepção histórica do mundo, porque procurou legitimar a elevação da consciência à consciência [236] histórica. O que a sua reflexão epistemológica pretendia justificar não era, no fundo, mais do que o grandioso auto-esquecimento épico de um Ranke. Somente que em lugar do auto-conhecimento estético aparece aqui a soberania de uma compreensão holifacetária e infinita. A fundamentação da historiografia em uma psicologia da compreensão, tal como Dilthey a tinha em mente, desloca o historiador justamente a essa simultaneidade ideal com seu objeto, que chamamos de estética e da qual nos admiramos em Ranke. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Arremetendo contra a crença na perfeição do Aufklärung, que sonha com a plenitude da liberação de toda “superstição” e de todo preconceito do passado, agora, os tempos primitivos, o mundo mítico, a vida ainda não rompida nem dilacerada pela consciência numa “sociedade natural”, o mundo da cavalaria cristã, alcançam um feitiço romântico e inclusive preferencial com respeito à verdade. A inversão da premissa do Aufklärung tem como conseqüência a tendência paradoxal da restauração, isto é, uma tendência a repor o antigo porque é antigo, a voltar conscientemente ao inconsciente etc., e que culmina no reconhecimento de uma sabedoria superior nos tempos originários do mito. E essa inversão romântica do padrão de valor do Aufklärung consegue justamente perpetuar a premissa deste, a oposição abstrata do mito e da razão. Toda crítica do Aufklärung continuará agora o caminho dessa reconversão romântica do mesmo. A crença na perfectibilidade da razão se converte na crença na perfeição da consciência “mítica” e se reflete em um estado originário paradisíaco anterior à queda no pecado de pensar. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, o sentido desse círculo, subjacente a toda compreensão, possui uma nova conseqüência hermenêutica que gostaria de denominar de “concepção prévia da perfeição”. Também isso é, claramente, uma pressuposição formal, que orienta toda compreensão. O que pretende dizer é que somente é compreensível o que apresenta uma unidade perfeita de sentido. Fazemos tal pressuposição da perfeição quando lemos um texto, e somente quando esta se manifesta como insuficiente, isto é, quando o texto não é compreensível, duvidamos da transmissão e procuramos adivinhar como pode ser remetida. As regras que seguimos nessas considerações da crítica textual podem ser postas agora de lado pois o que importa, também aqui, é que sua aplicação correta não pode ser separada da compreensão do conteúdo do texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A concepção prévia da perfeição, que domina nessa compreensão, encontra-se, em cada caso, determinada com relação a algum conteúdo. Não se pressupõe somente uma unidade imanente de sentido que possa guiar o leitor, mas que a compreensão deste esteja guiada constantemente por expectativas de sentido transcendente, que surgem de sua relação com a verdade daquilo a que o texto intenciona. Da mesma forma que o receptor de uma carta compreende as notícias que esta contém e vê as coisas, de imediato, com os olhos de quem escreveu, dando como certo o que este escreve, e não procura, por exemplo, compreender, como tais, as opiniões particulares do escritor, também nós entendemos os textos transmitidos sobre a base de expectativas de sentido que extraímos de nossa própria relação precedente com o assunto. E tal como damos crédito às notícias de um repórter porque este estava presente ou até porque entende melhor da questão, estamos basicamente abertos à possibilidade de que um texto transmitido entenda do assunto mais do que nossas opiniões prévias nos induziram a supor. Só o malogro da tentativa de considerar verdadeiro o que foi dito conduz ao esforço de “compreender” o texto como a opinião de outro, psicológica e historicamente. O preconceito da perfeição contém, pois, não somente a formalidade de que um texto deve expressar perfeitamente sua opinião, mas também de que o que diz é uma verdade perfeita. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Também aqui vemos confirmado que compreender significa, primariamente, sentir-se entendido na coisa, e somente secundariamente destacar e compreender a opinião do outro como tal. Assim, a primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré-compreensão que surge do ter de se haver com a coisa em questão. A partir daí determina-se o que pode ser [300] realizado como sentido unitário, e, com isso, a aplicação da concepção prévia da perfeição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne que se ensina e aquela que se adquire por experiência [321]. O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará “teórico” o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, Aristóteles pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral. Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Naturalmente, a reflexão nos ensina que a aplicação das leis contém uma questionabilidade jurídica peculiar. A situação do artesão é nisso muito diferente. Este, que possui o desenho do objeto e as regras de sua execução, e a esta se aplica, pode ver-se obrigado também a se adaptar a circunstâncias e dados concretos, isto é, renunciar a executar seu plano inteiramente como estava concebido originalmente. Mas essa renúncia não significa, de modo algum, que com isso o seu saber daquilo que está em busca chegue à perfeição. Ele simplesmente faz reduções durante a execução. Isso é uma real aplicação de seu saber, vinculada a uma imperfeição dolorosa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

2. Nisso se torna patente uma modificação fundamental da relação conceitual entre meios e fins, que é a que constitui a diferença entre o saber ético e o saber técnico. A diferença não está no fato de que o saber ético não restringe a simples objetivos particulares, mas que afeta o viver corretamente, no seu todo — contra o que o saber técnico, naturalmente, é sempre particular e serve a fins particulares. Tampouco se trata só do caso de que o saber moral deve entrar em cena toda vez que seria desejável um saber técnico que, não obstante, não se encontra disponível. É verdade que o saber técnico, onde estivesse disponível, não teria necessidade de buscar conselho consigo mesmo sobre aquilo que lhe confere validez enquanto saber. Quando há uma techne, é preciso que a aprendamos, e com isso saber-se-á também eleger os meios idôneos. Pelo contrário, o saber ético requer sempre, ineludivelmente, esse buscar conselho consigo próprio. Ainda que se pensasse esse saber em um estado de perfeição ideal, esta seria a perfeição desse aconselhamento consigo próprio (euboulia), e não num saber do tipo técnico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não podemos tomar esta questão suficientemente a sério, se pensarmos a concepção histórica do mundo e seu desenvolvimento desde Schleiermacher até Dilthey. O fenômeno é sempre o mesmo. A exigência da hermenêutica somente parece se satisfazer na infinitude do saber, da mediação pensante da totalidade da tradição com o presente. Esta se apresenta baseada no ideal de um Aufklärung total, da ruptura definitiva dos limites de nosso horizonte histórico, da subsunção da finitude própria na infinitude do saber, em uma palavra, na onipresença do espírito que sabe historicamente. Não tem maior importância que no século XIX o historicismo não tenha reconhecido expressamente esta conseqüência. Em última instância o historicismo só encontra sua legitimação na posição de Hegel, ainda que os historiadores, animados pelo pathos da experiência, tenham preferido apelar a Schleiermacher e a Wilhelm von Humboldt. Mas nem um nem outro pensaram realmente até o final sua própria posição. Por muito que acentuassem a individualidade, a barreira da estranheza que a nossa compreensão tem que superar, a compreensão só alcança, em definitivo, sua perfeição, e a idéia da individualidade só encontra sua fundamentação, numa consciência infinita. É a inclusão panteísta de toda individualidade no absoluto o que torna possível o milagre da compreensão. Assim, também aqui o ser e o saber se interpretam [348] mutuamente no absoluto. Nem o kantismo de Schleiermacher nem o de Humboldt representam, pois, uma afirmação autônoma e sistemática face à perfeição especulativa do idealismo na dialética absoluta de Hegel. A crítica à filosofia da reflexão, pela mesma forma que alcança a Hegel, alcança a eles também. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isto prelineia-se o caminho da investigação que segue: deveremos indagar pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o significado que convinha ao conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se é assim ou de outro modo. A abertura que está na essência da experiência é, logicamente falando, esta abertura do “assim ou de outro modo”. Tem a estrutura da pergunta. E tal como a negatividade dialética da experiência encontrava sua perfeição na idéia de uma experiência consumada, na qual nos fazíamos inteiramente conscientes de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não se sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. Teremos, pois, que nos aprofundar na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Obviamente que também pode ocorrer que não se chame a alguém pelo seu nome correto, porque pode ser que o tenhamos confundido com outro, ou que não se empregue a “palavra correta” para uma coisa, porque esta não é conhecida. Mas então o que é incorreto não é a palavra, mas o seu emprego. Só aparentemente se refere à coisa para a qual é empregada. Na realidade ela é a palavra adequada para outra coisa diferente, e para esta, sim, é correta. Também aquele que aprende a língua estrangeira e procura fixar o vocabulário, isto é, o significado das palavras que lhe são desconhecidas, pressupõe sempre que essas possuam seu verdadeiro significado, que o dicionário extrai do uso lingüístico e transmite. Poderão ser confundidas essas significações, mas isso não significará senão [415] que as palavras “corretas” são mal empregadas. Por conseguinte, tem sentido falar de uma perfeição absoluta da palavra, pois que entre sua manifestação sensível e seu significado não existe, em absoluto, relação sensível, nem por conseqüência, distância. Tampouco Crátilo teria tido motivo para deixar-se submeter de novo ao jugo do esquema da cópia. Para a cópia, vale efetivamente quem sem ser mera duplicação do original, se parece com ele, e portanto, é outra coisa e remete para esse outro que representa, em virtude de sua similitude imperfeita. Entretanto, para a relação da palavra com o seu significado isso não tem, evidentemente, validez alguma. Nesse sentido, quando Sócrates reconhece que as palavras — diferentemente das pinturas (zoa) — não são somente corretas, mas também verdadeiras (alethe), é como se abrisse de repente uma verdade completamente oculta. Obviamente que a “verdade” da palavra não se apoia na correctura, em sua correta adequação à coisa, mas em sua perfeita espiritualidade, isto é, torna-se patente o sentido da palavra no seu som. Nesse sentido, todas as palavras “são” verdadeiras, isto é, seu ser se abre em seu significado, enquanto que as cópias são apenas mais ou menos parecidas, se se mede segundo o aspecto da coisa, são apenas mais ou menos corretas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Somente através do simbolismo matemático seria possível elevar-se fundamentalmente acima da contingência das línguas históricas e da indeterminação de seus conceitos: na arte combinatória de um sistema de signos desse tipo, levado a efeito, poderíamos ganhar verdades novas, dotadas de certeza matemática (essa era a idéia de Leibniz), pois o ordo reproduzido [420] por um sistema de signos dessa classe teria uma correlação em todas as línguas. É bastante claro que essa pretensão da characteristica universalis de ser uma ars inveniendi, como salienta Leibniz, repousa precisamente sobre o caráter artificial de seu simbolismo. Ele é o que torna possível calcular, no sentido de encontrar relações a partir das regularidades formais das leis combinatórias, independentemente se a experiência nos conduz a nexos correspondentes nas coisas. Adiantando-nos assim com o pensamento rumo ao reino das possibilidades, a razão pensante chega à sua perfeição absoluta. Para a razão humana não há maior adequabilidade do conhecimento do que a notitia numerorum, e todo cálculo procede segundo os esquemas desta. No entanto, devemos considerar como geralmente válido que a imperfeição do homem não estabelece um conhecimento adequado a priori, e que, por conseguinte, a experiência é imprescindível. O conhecimento não se torna claro e distinto através desses símbolos, porque o símbolo não significa uma forma conspícua de estar dado; esse conhecimento é “cego”, na medida em que o símbolo aparece no lugar de um verdadeiro conhecimento e mostra tão-somente a possibilidade de que este chegue a se produzir. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Não obstante, mesmo em Tomás não coincidem por completo os conceitos de logos e verbum. É verdade que a palavra não é o acontecimento do pronunciador, essa entrega inapelá-vel do próprio pensamento ao outro. Porém, o caráter ontológico da palavra é também um acontecer. A palavra interior fica referida à possibilidade de se exteriorizar. O conteúdo da coisa, tal como é concebido pelo intelecto, está ordenado para a sua conversão em som (similitudo rei concepta in intellectu et ordinata ad manifestationem vel ad se vel ad alterum). Por conseqüência, a palavra interior certamente não está referida a uma língua determinada, não são palavras que têm o caráter de pairar à nossa frente, que nos chegam a partir da memória, mas é a conjuntura (Sachverhalt) pensada até o final (forma excogitata). E na medida em que se trata de um pensar até o final, é forçoso reconhecer também nele um momento processual: comporta-se per modo egredientes. Claro que não é manifestação, mas pensar; porém o que se alcança nesse dizer-se-a-si-mesmo é a perfeição do pensar. A palavra interior, na medida em que expressa o pensar, reproduz ao mesmo tempo a finitude da nossa compreensão discursiva. Como a nossa compreensão não está em condições para abarcar num só golpe do pensar tudo o que sabe, não tem outro remédio que trazer para fora, a partir de si mesma, em cada caso, o que pensa, pondo-o diante de si, numa espécie de própria declaração interna. Nesse sentido todo pensar é um dizer-se. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

1. Em primeiro lugar vale dizer que a palavra humana é potencial antes de atualizar-se. É formável, mas não formada. O processo do pensar se inicia precisamente porque algo nos vem à mente a partir da memória. Também isso é uma [429] emanação, não implica que a memória seja despojada ou perca algo. No entanto, o que nos vem assim à mente não é ainda completo, nem está pensado até o final. Ao contrário, é agora que começa o verdadeiro movimento do pensar, no que o espírito se apressa de um ao outro, revoluteia daqui para lá, sopesa um e o outro e busca assim a expressão plena de suas idéias pelo caminho da investigação (inquisitio) e reflexão (cogitatio). A palavra plena forma-se, pois, primeiro no pensamento e, nessa medida, forma-se como uma ferramenta, mas quando emerge na plena perfeição do pensamento, então já não se produz com ela nada novo. Antes, é a própria coisa que então está presente nela; por conseqüência, a palavra não é propriamente uma ferramenta. Tomás encontrou para isso uma imagem esplêndida: a palavra é como um espelho, em que se vê a coisa. Mas o que há de especial nesse espelho é que em nenhum momento vai mais além da imagem da coisa. Nele não se reflete nada mais que essa coisa única, de maneira que no conjunto de si mesmo não faz senão reproduzir sua imagem (similitudo). O grandioso dessa imagem é que a palavra é concebida, aqui, como um reflexo perfeito da coisa, como expressão da coisa, e fica para trás o caminho do pensamento a que, na realidade, deve toda sua existência. No espírito divino não se dá nada análogo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Seu ponto de partida é que as línguas são produtos da “força do espírito” humano. Onde há linguagem está em ação a força lingüística originária do espírito humano, e cada língua está em condições de alcançar o objetivo geral que se procura com essa força natural do homem. Mas isso não exclui, e até legitima, o fato de que a comparação das línguas procura um padrão de perfeição, segundo o qual elas se diferenciam. Pois é comum a todas as línguas “o impulso a dar existência na realidade à idéia da perfeição lingüística”, e a tarefa do lingüista se orienta precisamente em investigar até que ponto e com que meios se aproximam as diversas línguas a esta idéia. Por conseqüência, para Humboldt há evidentemente diferenças de perfeição entre as línguas. Porém, não há um padrão prévio, sob o qual ele submeta à força os múltiplos fenômenos. Humboldt ganha esse padrão a partir da essência interna da própria linguagem e a partir da riqueza de suas manifestações. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O interesse normativo, sob o qual ele realiza a sua comparação da estrutura lingüística das línguas humanas, não suspende, pois, o reconhecimento da individualidade, e isso quer dizer, a perfeição relativa de cada uma. É sabido que Humboldt ensinou a compreender cada língua como uma determinada acepção do mundo, e que o fazia investigando a forma interior em que se diferencia, em cada caso, o acontecer humano originário da formação da linguagem. O que sustenta essa tese não é somente a filosofia idealista que destacava a participação do sujeito na apreensão do mundo, mas também a metafísica da individualidade, desenvolvida pela primeira vez por Leibniz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A palavra não é simplesmente a perfeição da species, como acreditava o pensamento medieval. Se no espírito pensante se representa o ente, isso não é a cópia de uma ordenação prévia do ser, cujas verdadeiras relações só serão presentes para um espírito infinito (o espírito do criador). Mas a palavra não é tampouco um instrumento capaz de construir, como a linguagem da matemática, um universo dos entes, objetivados e disponíveis graças ao cálculo. Nem um espírito infinito nem uma vontade infinita estão capacitados para superar a experiência do ser, adequada à nossa finitude. Somente o mediu da linguagem, por sua referência ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem consigo mesmo e com o mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer lingüístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição lingüística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, conseqüentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da lingüisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer lingüístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na filosofia grega, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Chamar o aprender a falar de processo de aprendizagem é apenas uma façon de parier. Na verdade, trata-se apenas de um jogo, um jogo de imitação e de intercâmbio. A formação do som e o prazer na formação do som, no impulso de imitação da criança receptiva coadunam-se com o aparecimento do sentido. Ninguém pode responder de um modo racional à pergunta pela primeira compreensão de sentido. Esta sempre já vem precedida por experiências de sentido anteriores à linguagem e principalmente o intercâmbio de olhares e gestos, de tal modo que todas as transições são fluentes. Igualmente incompreensível é a perfeição do fim. Ninguém pode construir, propriamente, isto que a lingüística de hoje chama de “competência para a linguagem”. O que isso significa não pode ser retratado objetivamente como a consistência do que é correto segundo a linguagem. Antes, a expressão “competência” indica que a capacidade de linguagem desenvolvida naquele que fala não se [6] deixa descrever como o emprego de regras e assim como um mero manejo correto da linguagem, segundo as regras. É preciso vê-la como o fruto de um processo no exercício da linguagem que seja de certo modo livre, de tal modo que uma pessoa acaba “sabendo” o que é correto a partir de sua competência própria. Um ponto nuclear de minha própria tentativa de conferir validade hermenêutica à universalidade do aspecto próprio da linguagem é minha concepção do aprendizado da fala e da conquista de orientação no mundo como uma trama inextricável da história da formação do homem. Mesmo sendo um processo infindável, isso pode fundamentar algo como competência. Compare-se por exemplo o aprendizado de línguas estrangeiras. Aqui, de modo geral, pode-se falar apenas de uma aproximação à dita competência para a linguagem, a não ser que alguém esteja inserido de modo duradouro e profundo no universo da língua estrangeira. No geral, só se pode alcançar competência na própria língua materna, ou na linguagem que se fala onde se cresceu e onde se vive. Com isso se diz que aprendemos a ver o mundo com os olhos da língua materna e que, pelo contrário, o primeiro passo na capacitação pessoal para a linguagem começa a articular-se na perspectiva do mundo que nos circunda. VERDADE E METODO II Introdução 1.

O sentido fundamental do círculo entre o todo e a parte, base para toda compreensão, pelo que me parece, precisa ser completado por uma outra determinação, que chamo de “concepção prévia da perfeição”. Com isso, estamos formulando uma pressuposição [62] que guia todo compreender. Significa que só é compreensível aquilo que realmente apresenta uma unidade de sentido completa. Pressupomos essa completude, por exemplo, quando lemos um texto. Somente quando esta pressuposição se mostra inverificável, isto é, quando o texto se torna incompreensível, é que a questionamos e duvidamos, por exemplo, da transmissão e procuramos corrigi-la. Aqui podemos deixar de lado as regras que seguimos na execução dessas reflexões de crítica de texto. Importa neste caso que para o seu emprego a legitimação não pode se desvincular da compreensão do conteúdo do texto. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na idéia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a idéia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa idéia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

A problemática ontológica do tempo consiste, portanto, no [136] fato de não ser possível expressar e nem conceber seu próprio ser com os recursos da filosofia do ser desenvolvida pela Antigüidade. Creio que o conceito de continuidade da história vem a refletir o mesmo problema. Isso não significa que o discurso da continuidade da história derive diretamente dessa experiência constante dos agoras que se sucedem ininterruptamente. Quiçá a experiência de continuidade tem uma base muito diferente da simples experiência do fluir incessante do tempo. A continuidade da história investigada na pergunta pelo ser da história culmina em última instância no fato de que, apesar de toda transitoriedade, todo passar implica necessariamente um devir. A verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transformações a continuidade de um nexo histórico. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.

O que existe propriamente é o perihodos, o “período”, as mudanças do céu dentro de uma ordem. O que existe propriamente são as verdades permanentes da convivência humana, as ordenações morais, as ordenações estatais, as ordens das nações e coisas similares. Nenhum pensador pode ver o ser da existência humana de outro modo a não ser à luz das constantes humanas. A historia é o desvio de tais ordens permanentes: a tabela dos conceitos de virtude da ética antiga, os ideais de um Estado ordenado, de urna polis ordenada, de uma ordem que o filósofo deve ter presente em sua máxima perfeição e propor como exemplo à ação humana. A história é o elemento inextirpável de desordem humana num todo ordenado. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.

A pergunta pelas formas de ordenamento de nosso mundo, tanto o de hoje como o futuro, coloca-se como uma pergunta puramente científica: Que podemos fazer? Como podemos organizar as coisas? Como se apresentam as bases sobre as quais podemos [160] planejar? Que devemos modificar e observar para que a administração de nosso mundo se torne cada vez melhor e menos conflituosa? A idéia de um mundo dotado de uma administração perfeita parece ser o ideal negado justamente aos países mais avançados, em virtude de sua concepção de vida e de suas convicções políticas. É interessante notar que esse ideal se apresenta como o ideal da administração perfeita e não como um ideal de futuro com um conteúdo definido, como por exemplo o estado da justiça, base para a utopia do Estado platônico, ou como o Estado mundial, formado pelo predomínio de um determinado sistema político, de um povo ou uma raça sobre outros sistemas, povos e raças. A base do ideal de administração é uma idéia de ordem que não comporta nenhum conteúdo específico. O objetivo declarado de toda administração não é o saber sobre que tipo de ordem deve dominar, mas saber que tudo deve ter sua ordem. Por isso, o ideal da neutralidade pertence essencialmente à idéia de administração. O que se busca é o bom funcionamento como um valor em si. É bem provável que o fato de os grandes impérios mundiais de hoje poderem se encontrar e alcançar um equilíbrio no terreno neutro de um tal ideal administrativo não chegue a representar nem sequer uma esperança utópica. A partir disso, torna-se óbvio considerar a idéia de uma administração mundial como a forma de ordem do futuro. Nela a objetivação da política encontraria sua verdadeira perfeição. Será então que o ideal formal da administração mundial representa a realização da idéia de ordem mundial? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Tudo isso já aconteceu no passado. Quem conhece os diálogos platônicos sabe que à época do iluminismo sofista a idéia de um saber objetivo desempenhou uma função universal parecida. Os gregos chamavam-na de techne, o saber a respeito do que é passível de ser produzido e feito, capaz de alcançar sua própria perfeição. O modo e a aparência do objeto a ser confeccionado conformam a perspectiva de todo processo. A escolha dos recursos corretos e do material apropriado, a sucessão artesanalmente correta das diversas fases do trabalho podem ser elevadas a um grau de perfeição ideal que fica contestada a frase citada por Aristóteles: “A techne ama a tychne e a tychne ama a techne”. “A arte ama a sorte e a sorte ama a arte.” Quem domina sua arte não precisa de sorte? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das conseqüências, consoante à idéia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Nosso problema, portanto, não é de modo algum o dualismo metodológico. Refere-se à questão específica da medicina, que parece representar um caso paradigmático para o tema da ordenação do mundo moderno pela ciência. Os espantosos progressos alcançados pela medicina moderna para a solução de situações realmente [168] críticas da enfermidade humana dão origem a confusões bastante problemáticas, das quais terão que prestar conta um dia os comprometidos com o juramento hipocrático. Não se trata apenas de a necessidade prática de ajuda e de cura colocar em evidência o modelo de aplicação técnica da ciência como excessivamente particular. Sem dúvida, também o nível de nosso saber, isto é, sua limitação, acaba obrigando o médico a confiar no seu tato e intuição e, onde estes não bastam, a fazer novas tentativas. Nesse sentido, não me parece nada contraditório supor uma biologia perfeita capaz de possibilitar o alcance de uma perfeição na medicina, que hoje mal podemos imaginar. Acho que justamente então tornar-se-iam patentes as confusões, cujos indícios já estamos percebendo hoje. Penso, por exemplo, no retardamento da morte, hoje praticada pela técnica médica. Em situações dessa natureza, a unidade da pessoa do doente, que é um verdadeiro interlocutor para o médico que o ajuda, não terá mais lugar. Algo parecido já havia sido mencionado acima a respeito das possibilidades de criação da biologia genética. Parece que a limitação e finitude da vida tornam inevitável o conflito existente entre a ciência natural, em suas possibilidades extremas, e a autocompreensão humana. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Vamos aplicar essas reflexões à situação do mundo moderno e à tarefa que vislumbramos. Trata-se de algo bem diferente do domínio científico com suas tarefas de um ordenamento político planetário que nos esperam. Sublinhemos expressamente que a ciência tem um amplo futuro também nesse sentido; mesmo não sendo certo que a civilização ocidental se prolongue indefinidamente e acabe expulsando ou sufocando todas as outras formas de ordenação humana. Mas é justamente aí que está o problema. A produção de um homem marcado pela civilização unitária da técnica, que aprende a utilizar-se igualmente de uma linguagem unitária de civilização — e o inglês está bem adiantado em assumir essa função — poderia certamente facilitar o ideal de um governo científico mundial. Mas a verdadeira pergunta é se esse ideal pode ser realmente desejável. Quem sabe já possamos perceber em alguns fatos de linguagem as conseqüências do processo de equilíbrio civilizatório em nosso planeta. O sistema de signos, que exige e possibilita a utilização de um aparelho técnico, desenvolve uma dialética característica. Deixa de ser um mero meio para a obtenção de objetivos técnicos. Exclui os objetivos que não podem ser indicados e comunicados com seus meios. O perfeito funcionamento da linguagem do tráfico internacional, por exemplo, baseia-se na limitação do que se comunica. O aperfeiçoamento lógico-epistemológico de uma linguagem comum da ciência, como o que preside os esforços da unity ofscience, apresentaria exatamente a mesma fisionomia. Sua perfeição talvez pudesse eliminar todas as imprecisões e ambigüidades que atrapalham o entendimento inter-humano. Por isso, não precisaríamos aspirar por uma linguagem mundial do futuro. Bastaria que as linguagens vivas dos povos fossem articuladas num sistema de equações transformadoras, de modo que uma máquina de tradução ideal garantisse a unicidade do entendimento. Tudo isso seria possível e quem sabe até não esteja longe de acontecer. Mas também aqui seria inevitável que esse meio universal se degenerasse num fim universal. Desse modo, não se teria alcançado propriamente um meio para comunicar e dizer tudo que possa ser pensado, mas um meio para garantir que só haveremos de pensar o que se capta e comunica pela programação. No fundo já estamos imersos nesse processo. O estranho fenômeno da “versão oficial”, que com a difusão dos meios modernos de comunicação de massa começa a experimentar uma nova envergadura, já mostra com clareza a dialética de meio e fim aqui presente. Isso pode ser visto com freqüência na exposição de uma linha de combate. O que numa parte do mundo se chama democracia e liberdade aparece como uma versão oficial, denunciada pela outra parte do mundo como mera manipulação da formação de opinião e domesticação das massas. Mas essa é apenas uma expressão da imperfeição desse sistema. Abarcando tudo, a idéia de versão oficial erigiu a si própria como objetivo, passando adiante inadvertidamente. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Cabe ainda questionar a função da filosofia na situação descrita. Terá a filosofia ainda alguma função numa cultura científica que alcançou a perfeição? Para respondermos a essa pergunta é preciso discutir certas tendências amplamente difundidas na concepção e autoconcepção da filosofia. Seria um diletantismo científico querer exigir do filósofo uma espécie de superciência que fornecesse um quadro sintetizador da especialização das ciências particulares. Uma tarefa dessa natureza seria apenas um derivativo dos tempos clássicos da filosofia, quando esta ainda representava toda a ciência. Esperar que a filosofia seja o órgão geral de uma lógica e de uma metodologia parece ser não menos diletante. É como se as ciências particulares pudessem ganhar alguma coisa com isso. Na verdade, elas sempre adotarão, ao seu modo e já de há muito, métodos e sistemas de signos das outras ciências, sempre que os julgarem úteis. Para isso não é necessária nenhuma metodologia filosófica das ciências. Essa metodologia é certamente uma tarefa legítima da filosofia. Mas a pergunta sobre a função que a filosofia desempenha hoje na conscientização universal não pode ser por ela respondida. A conscientização do real implica necessariamente também a conscientização do que a ciência significa, embora também inclua a atitude de abertura e atenção de que nem tudo é ou pode ser objeto da ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Se prestarmos bem atenção à tendência de individualização, inerente à linguagem viva em sentido próprio, reconheceremos a perfeição dessa tendência na figura poética. E se isso estiver correto, então é preciso questionar se a teoria da substituição realmente convém ao conceito de sentido da expressão de linguagem. A intradutibilidade, caracterizada em última instância pela poesia lírica, uma vez que aí uma língua não se deixa traduzir para outra sem perder sua força de expressão poética, faz fracassar a idéia de substituição, de introdução de uma expressão em lugar de outra. Isso parece ser independente do fenômeno específico de geral independentemente do fenômeno especial de uma linguagem poética altamente individualizada e de importância universal. Parece-me que a possibilidade de substituição se opõe ao momento individualizante inerente ao ato de linguagem. Mesmo quando, no dizer, substituímos uma expressão por outra ou a justapomos a outra, seja por abundância retórica ou para ajustar a expressão, quando o orador não a encontra de imediato, o sentido do discurso se constrói no processo das expressões sucessivas, jamais saindo do acontecimento único dessa fluência. Deixamos esse acontecimento único quando introduzimos no lugar de uma palavra usual uma outra de sentido idêntico. Esse é o ponto onde a semântica supera a si mesma, [178] passando a ser outra coisa. A semântica é uma teoria de signos, sobretudo de signos de linguagem. Signos são, porém, meios. Os signos são usados aleatoriamente e deixados de lado como qualquer outro meio empregado na atividade humana. A expressão “ele domina os meios” significa: “ele emprega-os corretamente com vistas a um fim”. Também dizemos que devemos dominar uma língua, se quisermos nos comunicar nessa língua. Mas o verdadeiro falar é mais que a escolha dos meios para alcançar determinados objetivos de comunicação. A língua que dominamos é onde vivemos, isto é, onde o que queremos comunicar só pode ser “conhecido” na forma da linguagem. O fato de “escolhermos” as palavras é uma ilusão ou um efeito da linguagem criado quando o dizer sofre uma inibição. O dizer “livre” flui na entrega abnegada à questão evocada através da linguagem. Isso também vale para a compreensão de discursos fixados em textos escritos, pois também os textos, quando compreendidos, são reinseridos no movimento de significação do discurso. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

Mas isso significa que a matemática, com a qual o físico adquire e formula seu conhecimento, não é uma linguagem própria. Pertence ao instrumentado de muitas linguagens com o qual expressa o que quer dizer. Em outras palavras, o dizer filosófico constitui sempre uma intermediação entre a linguagem técnica ou das expressões técnicas — chamada terminologia erudita — e a vida da linguagem que cresce e se transforma nela mesma. Essa tarefa de integração e mediação encontra sua culminação específica no físico, por ser aquele que, dentre os pesquisadores da natureza, é o que [192] mais fala em termos matemáticos. É especialmente instrutivo justamente por ser o caso extremo do uso de uma simbologia amplamente matemática. Essa estrutura poético-metafórica mostra que, para a física, a matemática representa apenas uma parte não autônoma da linguagem. A linguagem é autônoma onde por exemplo as línguas desenvolvidas nutrem sua realidade como aspectos do mundo das diversas culturas. A questão é porém saber como se dá a relação entre o dizer e o pensar científico e o dizer e pensar extra-científico. Será que a liberdade maleável de nosso dizer cotidiano não passa de um estágio aproximado da linguagem científica? A quem nega isso poderíamos objetar que as línguas naturais ainda hoje em dia parecem indispensáveis. Se nos esforçássemos um pouco mais, acabaríamos compreendendo as equações da física que prescindem do uso de palavras, seríamos até mesmo capazes de calcular nossas ações e nós mesmos mediante equações. Nesse caso, não precisaríamos de nenhuma outra linguagem a não ser a científica. Na realidade, o objetivo do cálculo lógico moderno é essa linguagem artificial inequívoca. Todo esse ideal é, no entanto, motivo de muita discussão. Para Vico e Herder, ao contrário, é a poesia que representa a linguagem originária do gênero humano. Para ambos a intelectualização dos idiomas modernos está longe de ser a perfeição do ideal de linguagem, não passando de um destino medíocre. A questão que se há de formular é a seguinte: Será correto afirmar que o ideal de perfeição de toda linguagem é a crescente aproximação de uma linguagem científica? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

Esse caminho de toda experiência para o conceito e o universal já foi descrito magistralmente por Aristóteles numa esplêndida imagem. Ele descreve como a partir de muitas percepções forma-se a unidade de uma experiência e como a partir da multiplicidade das experiências lentamente acaba formando-se algo como a consciência do universal que se conserva nesse fluxo de aspectos cambiantes da vida da experiência. Para tanto, Aristóteles encontrou uma bela comparação. Ele pergunta: Como se chega ao saber do universal? Pelo acúmulo de experiências, pelo fato de fazermos sempre de novo as mesmas experiências e reconhecê-las como tais? Certamente. Mas exatamente ali está o problema. O que significa reconhecê-las “como tais”? Quando se estabelece a unidade desse universal? A imagem dada por Aristóteles é a de um exército em fuga. Num determinado momento, um soldado olha para trás e começa a ver quão distante encontra-se o inimigo, dando-se conta que este já não está tão próximo. Arrisca-se então a parar um instante. Um segundo soldado também pára. O primeiro, o segundo, o terceiro ainda não representam o todo… e por fim acaba que todo o exército se detém. O mesmo ocorre com o aprendizado da fala. Não existe uma primeira palavra; e no entanto, aprendendo, crescemos na linguagem e no mundo. Não concluímos dali que tudo depende de como assimilamos e crescemos nas esquematizações prévias de nossa futura orientação no mundo mediante o aprendizado da linguagem e de tudo que aprendemos pela via do diálogo? Trata-se do processo que hoje chamamos de “socialização”: a maturação na conduta social. É necessariamente também uma assimilação de convenções, de uma vida social ordenada por convenções, estando sempre submetida à suspeita de ideologia. Assim como o aprendizado da fala no fundo é um constante exercício de expressões e de argumentos, também o conjunto que forma nossas convicções e opiniões é um caminho para movimentar-nos numa estrutura preformada de articulações significativas. O que há de verdade nisso? Como se chega a fluidificar por completo esse material pré-formado de expressões e formulações, de modo a alcançar aquela perfeição em que experimentamos a rara sensação de realmente ter dito o que tínhamos em mente? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15.

Em nossa comparação podemos sentir pela primeira vez quais as reais condições para um verdadeiro diálogo, para que esse possa atingir a profundidade da comunhão humana e quais as forças contrárias, que criam resistência ao diálogo na civilização moderna. As técnicas modernas da informação, que podem estar apenas nos inícios de sua perfeição, e que, a crer-se nos profetas da técnica, logo tornarão obsoletos tanto o livro e o jornal quanto mais os ensinamentos que procedem dos encontros humanos, fazem-nos lembrar aqueles que são o seu oposto mais radical. Refiro-me aos carismáticos do diálogo que mudaram o mundo: Confúcio, Buda, Jesus e Sócrates. Lemos os seus diálogos. Mas esses textos são transcrições feitas por outros, que não conseguem conservar e reproduzir o verdadeiro carisma do diálogo, apenas presente na espontaneidade viva da pergunta e resposta, no dizer e deixar-se dizer. Mesmo assim, essas transcrições apresentam uma força documental peculiar. São, em certo sentido, literatura, isto é, pressupõem a arte de escrever, essa capaz de formular e evocar, com os recursos literários, uma realidade viva. Mas, distintas dos jogos poéticos da imaginação, essas transcrições possuem uma transparência singular, deixando entrever ao fundo a verdadeira realidade, o autêntico acontecer. O teólogo Franz Overbeck percebeu isso com muita clareza e na aplicação ao Novo Testamento cunhou o conceito de “literatura originária”, que precede a literatura propriamente dita como o tempo primordial precede o tempo histórico. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

Nietzsche é certamente um testemunho extático, mas a experiência histórica que fizemos nos últimos cem anos com essa consciência histórica nos ensinou de modo impressionante que essa consciência, com sua pretensão a uma objetividade histórica, é acometida de dificuldades bem características. Um dos pontos mais [222] óbvios de nossa experiência científica é o fato de, com certeza inabalável, podermos subordinar as magistrais obras da investigação histórica — nas quais Ranke parece ter elevado a pretensão de auto-anulação da individualidade a uma espécie de perfeição — às tendências políticas de sua própria época. Quando lemos a história romana de Mommsen, sabemos quem pode tê-la escrito, isto é, qual a situação política de sua época que levou o historiador a compilar as vozes do passado numa formulação racional. Podemos comprovar isso também em Treitschke ou em Sybel, para citar apenas alguns exemplos marcantes da historiografia prussiana. Isso significa de imediato que a autoconcepção do método histórico não revela toda a realidade da experiência histórica. Poder controlar os preconceitos da própria atualidade para que não prejudiquem a compreensão dos testemunhos do passado é incontestavelmente um objetivo justificado. Mas o que assim se realiza não esgota toda a tarefa da compreensão do passado e sua tradição. Poderia ser, também — e o rastreamento dessa questão é na realidade uma das primeiras tarefas a serem feitas pela ciência histórica no exame crítico de sua autoconcepção — , que o que permite à investigação histórica aproximar-se desse ideal de uma total anulação da individualidade não passe de matéria irrelevante, enquanto que os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente. Também essa segunda experiência, que representa o ponto de partida de minha investigação, a ciência histórica, só revela uma parte do que é a verdadeira experiência, isto é, do que significa para nós o encontro com a tradição histórica, limitando-se a conhecer, assim, apenas numa configuração alienada. VERDADE E METODO II OUTROS 17.

Se isso for correto, o que descrevemos inicialmente como a postura de nosso mundo moderno da indústria e do trabalho, fundado pela ciência, espelha-se sobretudo no plano da linguagem. Vivemos numa época de nivelamento crescente de todas as formas de [231] vida. Trata-se de um imperativo da necessidade racional de conservação da vida em nosso planeta. O problema da alimentação da humanidade, por exemplo, só será resolvido se contermos o grande desperdício que se dá no cultivo da terra desde antigamente. É impossível impedir que o universo industrial das máquinas atinja também a vida do indivíduo como uma espécie de esfera de perfeição técnica, e hoje, quando ouvimos casais de namorados conversando, perguntamo-nos se o que dizem são realmente palavras com as quais se entendem ou marcas de propagandas e expressões técnicas, tiradas da linguagem dos signos do mundo industrial moderno. Não existem meios de impedir que as niveladoras formas de vida da era industrial não exerçam sua influência também na linguagem, como é o caso do crescente e espantoso empobrecimento do vocabulário da linguagem e a conseqüente aproximação da linguagem a um sistema técnico de signos. As pessoas que usam a preposição trotz (apesar de) ainda com dativo, como ainda faço, em breve vão ser peça de museu. Esse tipo de tendência ao nivelamento é difícil de ser detido. E apesar disso a construção do próprio mundo continua se dando sempre e simultaneamente na linguagem, sempre que queremos dizer-nos algo uns aos outros. O que constitui uma autêntica associação entre as pessoas é o fato de cada um ser primeiramente uma espécie de círculo de linguagem para si. Só então esses círculos se tocam e vão fundindo-se cada vez mais. Nesse caso o que fica de pé é sempre de novo a linguagem, com seu vocabulário e gramática, como antes e agora, e jamais sem a infinitude interna do diálogo que está em curso entre o que fala e seu interlocutor. É a dimensão fundamental do elemento hermenêutico. A tarefa comum dos homens é criar uma linguagem autêntica, que tem algo a dizer e por isso não dá sinais previsíveis, mas procura palavras pelas quais possa alcançar o outro. Criar essa linguagem autêntica é uma tarefa especial para quem busca trazer à fala uma tradição escrita, como o teólogo, por exemplo, que está encarregado de comunicar uma mensagem escrita. VERDADE E METODO II OUTROS 17.

Com isso, expresso-me com a linguagem do próprio Hegel. Isso foi objeto de observações críticas, sobretudo por parte de Bormann, que classifica como ilegítimo tanto meu uso dos conceitos de Kierkegaard quanto os de Nicolau de Cusa e especialmente os de Hegel, porque eu estaria separando de seu contexto sistemático os recursos da linguagem conceitual que utilizo. Essa crítica está bem fundamentada e é muito óbvia sobretudo no caso de Hegel, visto que meu confronto com Hegel em Verdade e método foi inegavelmente insatisfatório. Mesmo nesse caso gostaria de defender a vantagem descritiva de um pensamento em diálogo com os clássicos. Parece-me que meu ponto crítico frente a Hegel se mostra objetivamente quando emprego a descrição que Hegel faz do “conceito de experiência dialética da consciência” a um sentido mais abrangente de experiência. A experiência perfeita não é perfeição do saber, mas abertura perfeita para uma nova experiência. Essa é a verdade que a reflexão hermenêutica reivindica frente ao conceito do saber absoluto. Nesse caso ela não é ambígua. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a “linguagem” retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de “mundear” (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária idéia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E METODO II OUTROS 25.