Gadamer (VM): originária

A sã razão, o common sense, se apresenta principalmente nos julgamentos sobre justo e injusto, factível e infactível, que ela vem a baixar. Quem possui um juízo são não está apto, como tal, a julgar o particular a partir de pontos de vista universais, mas sabe o que é que realmente importa, isto é, vê as coisas com base em pontos de vista corretos, justificados e sadios. Um chantagista, que calcula corretamente as fraquezas das pessoas e que, para suas fraudes, sempre age correto não possui, mesmo assim (no sentido eminente da palavra) um “juízo são”. A universalidade, que é atribuída à capacidade de julgamento, não é tão “comum” como Kant a vê. Juízo é, enfim, não tanto uma faculdade mas uma exigência a ser apresentada a todos. Todos possuem suficiente “senso comum”, isto é, capacidade de julgamento, tanto que se pode exigir deles a prova de “senso comum”, de genuína solidariedade ético-civil, isto significa, porém: julgamento sobre justiça e injustiça, e preocupação pela “utilidade comum”. É isso que torna tão importante o apelo de Vico à tradição humanística, a ponto de ele manter, em face da logização do conceito de senso comum, toda a abundância de seu conteúdo, o que estava vivo na tradição romana dessa palavra (e que até os nossos dias caracteriza a raça latina). Da mesma forma, a apreensão desse conceito por parte de Shaftesbury, como vimos, foi ao mesmo tempo uma vinculação à tradição político-social do humanismo. O sensus communis é um momento do ser burguês-ético. Também onde esse conceito, como no pietismo ou na filosofia dos escoceses, significa uma virada polêmica contra a metafísica, ele permanece ainda na sua função originária e crítica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

E justamente isso o que perfaz a amplitude originária do conceito de gosto, ou seja, que através dele designa-se uma forma própria de conhecimento. Ele pertence ao âmbito que, no modo do juízo reflexo, abrange, no particular, o universal, o qual deve ser subsumido. O gosto, assim como o juízo, são julgamentos do individual com vistas a um todo, a ver se ele se ajusta a todos os outros, a ver se, portanto, “combina”. É preciso ter “sentidos” para isso — pois ele não é demonstrável. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A doutrina do ideal da beleza alicerça-se sobre a diferença entre a idéia normal e a idéia racional ou ideal da beleza. A idéia normal estética encontra-se em todos os gêneros da natureza. Como deve ser a aparência de um belo animal (p. ex., uma vaca: Myron), isso depende de um padrão de julgamento do exemplar individual. Essa idéia normal é, portanto, uma concepção da força de imaginação, como “imagem do gênero que paira entre todos os indivíduos singulares”. Mas a representação de uma tal idéia normal não agrada através da beleza, mas, só “porque não contradiz nenhuma condição sob a qual, unicamente, uma coisa desse gênero pode ser bela”. Ela não é a imagem originária da beleza, mas, somente da exatidão. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Foram sobretudo dois princípios a partir dos quais se apresentou esse tema abrangente, que diz respeito à correlação entre a vida e a vivência; e veremos mais tarde como Dilthey, e especialmente Husserl, se enredaram na presente problemática. De um lado, trata-se do significado fundamental que possui a crítica de Kant sobre toda a doutrina substancial da alma e sobre a unidade transcendental da autoconsciência, que é diferente daquela, e que é a unidade sintética da aperception. Nessa crítica da psicologia racionalista foi possível vincular a idéia de uma psicologia baseada num método crítico, iniciativa que Paul Natorp já havia tomado em 1888127 e a partir do que Richard Hõnigswald viria a fundamentar, mais tarde, o conceito da psicologia do pensamento. Através do conceito do estar-consciente, que proclama a imediaticidade da vivência, Natorp designou o objeto da psicologia crítica e desenvolveu o método de uma subjetivação universal como sendo a forma de pesquisa da psicologia reconstrutiva. Natorp apoiou e continuou desenvolvendo, mais tarde, seu princípio fundamental através de uma crítica pormenorizada à formação do conceito da pesquisa psicológica contemporânea. Mas já em 1888 estava fixado o pensamento básico de que a concreção da vivência originária, isto é, a totalidade da consciência, constitui uma unidade indivisível, que somente se diferencia e determina através do método objetivador do conhecimento. “O consciente, porém, significa vida, isto é, relações recíprocas generalizadas.” Isso se observa principalmente na relação entre o consciente e o tempo: “O dado não é o consciente como fenômeno no tempo, mas o tempo como forma do consciente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No conceito do símbolo ressoa, porém, um pano de fundo metafísico, que se afasta totalmente do uso retórico da alegoria. É possível ser conduzido, a partir do sensorial, ao divino. Pois o sensorial não é mera nadidade e treva, mas emanação e reflexo do verdadeiro. O conceito moderno de símbolo é desprovido dessa sua função gnóstica, e não é o seu bastidor metafísico compreensível. A palavra “símbolo” só pode ser elevada da sua aplicação originária, enquanto documento, sinal de reconhecimento, senha, conceito filosófico de um misterioso sinal, indo parar, com isso, na proximidade do hieróglifo, cuja decifração só alcançam os iniciados, porque o símbolo não é adoção qualquer de um signo ou a criação de um signo, mas pressupõe uma correlação metafísica do visível com o invisível, essa “coincidência” de duas esferas, encontra-se na base de todas as formas do culto religioso. Da mesma forma, a versão encontra-se nas proximidades da estética. O simbólico, segundo Solger, caracteriza uma “existência em que, de alguma forma, a idéia é reconhecida”, portanto, a íntima unidade do ideal e do fenômeno, que é específica para a obra de arte. O alegórico, ao contrário, só deixa surgir essa unidade significante através da indicação a um outro, fora de si. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O conceito da imitação, porém, só consegue descrever o jogo da arte, se não se perder de vista o sentido do conhecimento, que se encontra na imitação. Aí, encontra-se o que é representado — é a relação mímica originária. Quem imita alguma coisa deixa isso ser aí o que ele conhece e como o conhece. E imitando que a criança começa a brincar, fazendo o que [119] conhece e confirmando assim a si mesma. Também o prazer com que as crianças se fantasiam, a respeito do que já se manifesta Aristóteles, não pretende ser um esconder-se, uma simulação, a fim de que se adivinhe e se reconheça quem está por trás disso, mas, ao contrário, um representar, de tal modo que apenas o representado é. Por nada desse mundo a criança vai querer ser adivinhada por trás de sua fantasia. O que ela representa deve ser, e se há algo que deva ser adivinhado, é exatamente isso. Terá de ser reconhecido o que ali “está”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A relação mímica originária, que já examinamos, inclui não somente o fato de que o representado está aí, mas também, mais propriamente, que tenha chegado no aí (ins Da). A imitação e a representação não são apenas uma repetição figurativa, mas conhecimento da natureza. Como não são mera repetição (Wiederholung), mas extração (Hervorholung), o espectador também está nelas subentendido. Contêm em si a vinculação essencial com cada pessoa, para qual a representação se faz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A intermediação total significa que o intermediante, enquanto intermediante, suspende-se. Isso quer dizer que a reprodução (no caso de peça teatral ou de música, mas também na palestra épica ou lírica), não será, como tal, temática, mas através dela, perpassando-a, e nela, a obra torna-se representação. Veremos que a mesma coisa vale para o caráter de acesso e de encontro, em que, construções e quadros se representam. Também aqui o acesso, como tal, não será ele mesmo temático, mas, ao contrário, também não é o caso de que se tenha de abstrair dessas relações de vida, a fim de compreender a própria obra. Antes, está nelas próprias. O fato de que existem obras que se originam num passado, do qual penetram no presente como monumentos duradouros, ainda não torna o seu ser, nem de longe, um objeto da consciência estética ou histórica. Enquanto mantêm-se em suas funções, elas são contemporâneas a todo e qualquer presente. Mesmo quando, como obras de arte, ainda somente encontram seu lugar nos museus, não estão totalmente alheados de si mesmas. Não somente porque uma obra de arte jamais deixa apagar inteiramente os indícios de sua função originária, tornando possível ao perito, em reconhecendo-as, vir a restaurá-la, — a obra de arte, que recebe a indicação de seu lugar na justaposição de uma galeria, continua a ser sempre uma origem própria. Dá validade a si mesma, e como o faz — ao “matar” uma outra ou tornar-se bom complemento de uma outra — é algo ainda de si mesma. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que, por outro lado vem a ser um quadro não é determinado, de forma alguma, pela sua auto-anulação. Pois não é um meio para um fim. Aqui é o próprio quadro o intensionado, na medida em que, o que importa é como nele se representa o representado. Isso significa, de imediato, que não ficamos simplesmente remetidos para além dele, na direção do representado. A representação continua, antes, vinculada essencialmente ao representado, e até, é parte integrante dele. Essa é também a razão, porque o espelho reflete a imagem e não uma cópia: é a [144] imagem daquilo que se representa no espelho e inseparável de sua presença. O espelho pode, certamente, dar uma imagem distorcida, mas isso é apenas deficiência sua: Não está desempenhando corretamente sua função. Nesse caso, o espelho confirma o que aqui se há de dizer fundamentalmente, isto é, que em contraposição ao quadro, a intenção se volta para a unidade originária e a não-diferenciação da representação e do representado. É a imagem do representado — é “sua” imagem (e não a do espelho) que se mostra no espelho. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Pode-se demonstrar isso facilmente no caso especial da imagem de re-presentação. Tal qual o soberano, o estadista, o herói se mostra e se apresenta, isso torna-se representação na imagem. O que significa isso? Não será, com certeza, que, através da imagem, o representado ganha uma forma de manifestação nova e mais própria. Antes, é o contrário disso: Porque o soberano, o estadista, o herói tem de se mostrar, apresentar aos seus, porque ele tem de representar, a imagem ganha sua própria realidade. Apesar disso, há aqui um ponto de virada. Ele próprio, quando se mostra, terá de corresponder à expectativa da imagem que lhe é atribuída. Somente porque ele, dessa maneira, tem um ser no mostrar-se, passará ele mesmo a ser representado na imagem. A primeira coisa, portanto, é certamente o representar-se; a segunda é a representação na imagem, que encontra esse representar-se. A re-presentação da imagem é um caso especial da re-presentação como acontecimento público. Mas a segunda retroage também sobre a primeira. O ser daquele que comporta tão substancialmente o mostrar-se, não pertence mais a si mesmo. Não pode, p. ex., evitar de forma alguma de ser representado em imagem — e, dado que essas representações determinam a imagem que se tem dele, ele terá de mostrar-se, finalmente, como sua imagem prescreve. Por mais paradoxal que isso soe: a imagem originária (quadro) somente se torna uma imagem (quadro) a partir da imagem (quadro) — e, contudo, o quadro não é mais do que a manifestação da imagem (quadro) original. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que aqui continua sendo decisivo é que essa ocasionalidade referida está incluída na exigência da própria obra e que, por exemplo, não é imposta a ela, como necessidade, primeiramente por seus intérpretes. É justamente por isso que tais formas de arte, como o portrait, nas quais isso já está fixado, não encontram um lugar certo na estética fundamentada sobre o conceito de vivência. Um portrait, p. ex., contém em seu próprio conteúdo de imagem a relação para com a imagem originária. Com isso não se pensa apenas que o quadro foi pintado realmente segundo esta imagem originária, mas que intenciona a esta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

E se isso é assim, já não se pode evitar a conseqüência, de que a literatura — por exemplo, nessa forma artística, tão peculiarmente sua, que é o romance — tem, na leitura, uma existência tão originária, como a épica, na declamação do rapsodo ou o quadro, na contemplação do observador. Também a leitura do livro permaneceria, segundo isso, uma ocorrência em que o conteúdo lido se torna representação. É verdade que a literatura e sua recepção na leitura mostram um grau máximo de desvinculação e mobilidade. Sinal disso, já é o fato de que não nos é necessário ler um livro de uma só vez, de tal modo que o fato de deixá-lo de lado representa uma tarefa própria da retomada, coisa que não possui correlato no escutar ou no contemplar. Justamente isso permite notar, que a “leitura” corresponde à unidade do texto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Como se vê, o conceito da força é, também para Droysen, o lugar onde se torna visível o limite de toda metafísica especulativa da história. Nesse sentido critica o conceito hegeliano do desenvolvimento — tal como Ranke — , na medida em que no curso da história não se dá meramente o desembrulhar de uma pré-disposição germinal. Ele, porém, determina com maior nitidez o que significa “força” nesse contexto: “Com o trabalho crescem as forças”. A força moral do indivíduo se converte num poder histórico, na medida em que atua no trabalho em vista dos grandes objetivos comuns. Converte-se em um poder histórico, na medida em que a esfera moral é permanente e poderosa no curso das coisas. A força já não é, pois, como em Ranke, uma manifestação originária e imediata do todo da vida, mas que só existe nessa mediação e somente através dessas mediações chega a ser realidade histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Naturalmente que a demonstração husserliana da idealidade do significado era o resultado de investigações puramente lógicas. O que Dilthey faz disso é algo completamente diferente. Para ele o significado não é um conceito lógico, mas é entendido como expressão da vida. A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das ciências do espírito. A hermenêutica não é uma herança romântica no pensamento de Dilthey, mas dá-se conseqüentemente a partir da fundamentação da filosofia na “vida”. Dilthey pensa que com isso superou fundamentalmente o “intelectualismo” de Hegel. Igualmente não podia satisfazer-lhe o conceito de individualidade romântico-panteísta de origem leibniziana. A fundamentação da filosofia na vida distancia-se também de uma metafísica da individualidade e sabe-se muito distante da monada sem janelas que desenvolve sua própria lei, segundo o aspecto destacado por Leibniz. Para ela a individualidade não é uma idéia originária enraizada no fenômeno. Antes, Dilthey insiste em que toda “vitalidade da alma” se encontra “sob circunstâncias”. Não há uma força originária da individualidade. Esta é o que é na medida em que se impõe. A limitação pelo decurso dos efeitos pertence à essência da individualidade — como é próprio de todos conceitos históricos. Também conceitos como objetivo e significado não fazem referência, em Dilthey, a idéias no sentido do platonismo ou da escolástica. Também eles são conceitos históricos, na medida em que estão referidos a uma limitação pelo decurso dos efeitos: eles têm que ser conceitos de energia. Para isso, Dilthey se reporta a Fichte, que também havia exercido uma influência determinante sobre Ranke. Nesse sentido, sua hermenêutica da vida procura permanecer sobre o solo da concepção histórica do mundo. A filosofia lhe proporciona unicamente as possibilidades conceituais de expressar a verdade daquela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “vida da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente conseqüente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Esse é, na minha opinião, o ponto onde a investigação de Yorck engata de maneira particularmente fecunda. Da correspondência de vida e autoconsciência a investigação obtém uma diretriz metódica a partir da qual determina a essência e a tarefa da filosofia. Projeção e abstração são os seus conceitos-guia [258]. Projeção e abstração perfazem o comportamento vital primário. Mas valem também para o comportamento histórico recorrente. E a reflexão filosófica somente alcança a sua própria legitimação, na medida em que também ela corresponde a essa estrutura da vitalidade e só na medida em que faz isso. Sua tarefa é compreender os resultados da consciência a partir da sua origem, compreendendo-os como resultado, isto é, como projeção da vitalidade originária e de sua cisão originária. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria idéia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da “consciência” ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um “pré” (“dá”), uma clareira no ser, isto é, a [262] diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que “há” tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, “que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua [264] incompreensibilidade essencial”. Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e “possibilidade”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas o que importa agora, naturalmente, é compreender corretamente essa reiterada constatação. Essa constatação não significa uma mera “homogeneidade” do conhecedor e do conhecido, sobre o que se poderia alicerçar a especificidade da transposição psíquica, como “método” das ciências do espírito. Nesse caso a hermenêutica histórica tornar-se-ia uma parte da psicologia (no que, de fato, Dilthey pensava). Na verdade, a adequação de todo conhecedor ao conhecido não se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que receba seu sentido da especificidade do modo de ser que é comum a ambos. E esta consiste em que nem o conhecedor nem o conhecido estão simplesmente dados “onticamente”, mas “historicamente”, isto é, são do mesmo modo de ser que a historicidade. Nesse sentido, como dizia o conde Yorck, tudo depende da “diferença genérica entre o ôntico e o histórico”. Quando o conde Yorck faz frente ao conceito da “homogeneidade” com o conceito da “pertença”, torna-se claro o problema que somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: o fato de que somente fazemos história na medida em que nós mesmos somos “históricos”, significa que a historicidade da pre-sença humana em toda a sua mobilidade do atender e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do vigor-de-ter-sido, como tal. O que a princípio parecia somente uma barreira que atrapalhava o conceito usual de ciência e método, ou uma condição subjetiva de acesso ao conhecimento histórico, passa agora a ocupar o lugar central de um questionamento fundamental. A pertença é condição para o sentido originário do interesse histórico, não porque a eleição de temas e o questionamento estejam submetidos a motivações subjetivas e extracientíficas (nesse caso a pertença não seria mais um caso especial de dependência emocional do tipo da simpatia), mas porque a pertença a tradições pertence à finitude histórica da pre-sença tão originária e essencialmente como seu estar-projetado para possibilidades futuras de si mesmo. Foi com razão que Heidegger se manteve firme na afirmação de que aquilo que ele chama de estar-lançado (Geworfenheit), e o que é projeto, encontra-se numa pertença mútua. Assim, [267] não existe compreensão nem interpretação em que não entre em funcionamento a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas a de ler “o que está aí”, e de extrair das fontes “como realmente foi”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na realidade, a premissa da misteriosa obscuridade, onde se encontra uma consciência coletiva mítica anterior a todo pensar, é tão dogmático-abstrata como o de um estado perfeito de esclarecimento total ou de saber absoluto. A sabedoria originária não é mais que a outra face da “ignorância originária”. Toda consciência mítica já é sempre um saber, e na medida em que se sabe de poderes divinos, já está posicionada além do simples tremer ante o poder (se é que se pode supor tal coisa num estágio originário), mas também além de uma vida coletiva presa a rituais mágicos (como se encontra, por exemplo, no velho oriente). A consciência mítica sabe de si própria, e nesse saber já não se encontra simplesmente fora de si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso deve ser esclarecido primeiramente, através da distinção face à teoria hermenêutica do romantismo. Basta recordar que esta pensava a compreensão como a re-produção de uma produção originária. Foi por isso que ela pôde se colocar sob a divisa de que temos de chegar a compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendia. Já investigamos a origem dessa frase e sua ligação com a estética do gênio, mas teremos que voltar agora a isso, pelo novo significado que a mesma alcança à luz de nossas últimas considerações. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O fato de que a compreensão ulterior possua uma superioridade de princípio face à produção originária e possa, por isso, ser formulada como um “compreender melhor”, não repousa, na verdade, sobre um tornar consciente posterior, capaz de equiparar o intérprete com o autor original (como opinava Schleiermacher), mas, ao contrário, reporta a uma diferença insuperável entre o intérprete e o autor, diferença que é dada pela distância histórica. Cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um interesse pautado na coisa e onde também ela procura compreender-se a si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete, e, por conseqüência, por todo processo objetivo histórico. Um autor como Chladenius, que, no entanto, não relegou ainda a compreensão à história, leva isso em conta, de uma maneira completamente espontânea e ingênua, quando opina que um autor não necessita ter reconhecido por si mesmo todo o verdadeiro sentido de seu texto, e que, por conseqüência, o intérprete pode e deve entender, com freqüência, mais do que aquele. Entretanto, isso tem um significado realmente fundamental. O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo. Talvez não seja correto falar de “compreender melhor” em relação a esse momento produtivo inerente à [302] compreensão. Pois já vimos que essa fórmula é a conversão de um postulado básico da crítica objetiva da época do Aufklärung sob o fundamento da estética do gênio. Compreender não é compreender melhor, nem de saber mais, no sentido objetivo, em virtude de conceitos mais claros, nem no da superioridade básica que o consciente possui com respeito ao inconsciente da produção. Bastaria dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um modo diferente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Que existe uma diferença é evidente. O jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. O historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso de que partir, mas procura determinar o sentido da lei, na medida em que coloca construtivamente a totalidade do âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Somente no conjunto dessas aplicações torna-se concreto o sentido de uma lei. O historiador não pode contentar-se, portanto, em oferecer a aplicação originária da lei para determinar seu sentido originário. Enquanto historiador, ele está obrigado a fazer justiça às mudanças históricas pelas quais a lei passou. Sua tarefa será de intermediar compreensivamente a aplicação originária da lei com a atual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Também a teoria aristotélica da demonstração e da conclusão — consoante a questão em causa, a degradação da dialética a um momento subordinada do conhecimento — permite reconhecer esta mesma primazia da pergunta, como mostraram brilhantemente e de modo especial, as constatações de Ernst Kapp sobre a gênese da silogística aristotélica. Na primazia da pergunta para a essência do saber, mostra-se da maneira mais originária aquele limite da idéia do método para o saber, que foi o ponto de partida de todas as nossas reflexões. Não há método que ensine a perguntar, a ver o que é o questionável. O exemplo de Sócrates ensina que nisso tudo depende de que se saiba que não se sabe. A dialética socrática, que conduz a esse saber através de sua arte de desconcertar, cria, com isso, os pressupostos para o perguntar. Todo perguntar e todo querer saber pressupõem um saber que não se sabe, mas de maneira tal que é um não saber determinado o que conduz a uma pergunta determinada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A esta arte de reforçar é que os diálogos platônicos devem sua surpreendente atualidade. Pois nela, o que foi dito transforma-se sempre nas possibilidades extremas de seu direito e de sua verdade, e sobrepuja toda contra-argumentação que pretenda pôr limites à vigência de seu sentido. Evidentemente, que aí não se trata de um mero deixar as coisas como estão. Pois aquele que quer conhecer não pode deixar o assunto na versão de simples opiniões, isto é, não lhe é permitido distanciar-se das opiniões que estão em questão. Aquele que fala é sempre, ele mesmo, aquele que se põe a falar até que apareça por fim a verdade daquilo de que se fala. A produtividade maiêutica do diálogo socrático, sua arte de parturiente da palavra orienta-se, obviamente, às pessoas humanas que constituem os companheiros do diálogo, porém limita-se a manter-se nas opiniões que estes exteriorizam e cuja conseqüência imanente e objetiva desenvolve-se no diálogo. O que vem à tona, na sua verdade, é o logos, que não é nem meu nem teu, e que por isso sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros de diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe. A dialética, como arte de conduzir uma conversação, é ao mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva (auvopav eia ev a Soa) isto é, a arte da formação de conceitos como elaboração da intenção comum. O que caracteriza a conversação, face à forma endurecida das proposições que urgem sua fixação escrita, é precisamente que, aqui, em perguntas e respostas, no dar e tomar, no passar ao largo de outro na conversa e no pôr-se de acordo, a língua realiza aquela comunicação de sentido cuja elaboração artística face à tradição literária, é a tarefa da hermenêutica. Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrário, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O caso da tradução nos faz conscientes da lingüisticidade como o médium do acordo, através do fato de que este meio tem de ser produzido artificialmente através de uma mediação expressa. Este agenciamento artificial não é, evidentemente, o caso normal das conversações. Tampouco a tradução é o caso normal de nosso comportamento com respeito a uma língua estrangeira. Antes, o fato de depender da tradução é como que uma renúncia da autonomia por parte do interlocutor. Quando a tradução é necessária, não há outro remédio a não ser dar-se conta da distância entre o espírito da literalidade originária do que é dito e o de sua reprodução, distância que nunca chegamos a superar por completo. Neste caso o acordo não se dá realmente entre os companheiros de diálogo mas entre os intérpretes, que estão realmente capacitados para se encontrar realmente num mundo comum de compreensão. (É sabido que não há nada mais difícil do que um diálogo em duas línguas diferentes, em que um usa uma língua, o outro, outra, visto que cada um dos dois entende a outra, mas sem saber falá-la. Em tais casos uma das línguas procura, como através de um poder superior, impor-se à outra como o médium para se chegar ao acordo.) VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Na escrita, a linguagem chega à sua verdadeira espiritualidade, pois, face à tradição escrita, a consciência compreensiva alcançou sua plena soberania. Em seu ser, já não depende de nada. Assim, a consciência leitora se encontra na possessão potencial de sua história. Não é em vão que o conceito da filologia, do amor aos discursos, se transformou com o aparecimento da cultura literária na arte oni-abrangente da leitura, [395] perdendo sua relação originária com o cultivo do falar e argumentar. A consciência leitora é necessariamente histórica, é consciência que se comunica livremente com a tradição histórica. Nesse sentido está justificada a idéia hegeliana de equiparar o começo da historia com o surgir de uma vontade de tradição, de “permanência da recordação”. A escrita não é um simples acaso ou uma mera adição que não altera qualitativamente nada no progresso da tradição oral. É claro que também sem escrita pode dar-se uma vontade de sobrevivência, de permanência. Mas somente a tradição escrita pode ir mais além da mera permanência de resíduos de uma vida passada, a partir dos quais é possível à existência (Dasein) reconstruir outra existência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Temos que admitir, também, que qualquer acusação de [419] uma terminologia científica, por mais compartilhado que seja o uso da mesma, representa uma fase desse processo. Afinal, o que é, na realidade, um termo? Uma palavra, cujo significado está delimitado univocamente, na medida em que se refere a um conceito definido. Um termo sempre é algo artificial, seja porque a própria palavra é formada artificialmente, seja — o que é mais freqüente — porque uma palavra, já encontrada em uso, é recortada da plenitude e largueza de suas relações de significado e fixada em um determinado sentido conceitual. Face à vida do significado das palavras da linguagem falada, sobre o que Wilhelm von Humboldt mostra, com toda a razão, que lhe é essencial um certo espaço de jogo, o termo é uma palavra rígida, e o uso terminológico de uma palavra é um ato de violência contra a linguagem. Todavia, diferentemente da linguagem puramente simbólica do cálculo lógico, o uso de uma terminologia continua fundido no falar uma língua (ainda que freqüentemente sob a forma de um estrangeirismo). Não existe uma fala puramente terminológica e até as expressões artificiais e contrárias à língua (bom exemplo disso são todas as expressões artificiais do universo da publicidade moderna) acabam sempre voltando à vida da linguagem. Uma confirmação indireta disso é o fato de que às vezes uma determinada distinção terminológica não consegue impor-se e se vê constantemente desautorizada pelo uso lingüístico normal. Isso quer dizer, com toda evidência, que tem de se submeter às exigências da linguagem. Recorde-se, por exemplo, a impotência da pedantería escolástica com a qual o neokantismo difamou o uso de “transcendental” por “transcendente”, ou no uso de “ideologia” no sentido dogmático-positivo, que se impôs, apesar de sua cunhagem originária polêmico-instrumentalista. Por isso, também como intérprete de textos científicos, temos de contar normalmente com essa coexistência de um uso terminológico e um uso corrente de uma palavra. Os intérpretes modernos dos textos antigos se incluam facilmente a menosprezar essa exigência, porque o conceito no uso científico moderno é mais artificial e portanto mais fixo do que na Antigüidade, na qual não se conheciam estrangeirismos e havia menos palavras artificiais. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Nem mesmo Nicolau de Cusa se refere com sua palavra natural à de uma linguagem originária, anterior à confusão das línguas. Uma tal linguagem de Adão, no sentido de uma doutrina do estado originário, lhe é completamente alheia. Ao contrário, seu ponto de partida é a imprecisão fundamental de todo saber humano. Nisso consiste, reconhecidamente, sua teoria do conhecimento, na qual se cruzam motivos platônicos e nominalistas: todo conhecimento é pura conjectura e opinião (coniectura, opinio). É essa doutrina que ele aplica à linguagem. Isso lhe permite reconhecer a diversidade das línguas nacionais e a aparente arbitrariedade de seu vocabulário, sem ter que cair necessariamente numa teoria convencionalista e num conceito instrumental da linguagem. Assim como o conhecimento humano é essencialmente “impreciso”, isto é, admite um mais e um menos, o mesmo ocorre com a linguagem humana. O que, numa língua, possui sua expressão autêntica (própria vocabula) pode ter, noutra, uma expressão mais bárbara e distanciada (magis barbara et remotiora vocabula). E-xistem pois expressões mais autênticas ou menos autênticas (própria vocabula). Todas as denominações fácticas são, de um certo modo, arbitrárias, e, no entanto, têm uma relação necessária com a expressão natural (nomen naturale), que corresponde à própria coisa (forma). Toda expressão é congruente (congruum), mas nem todas são precisas (precisum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Seu ponto de partida é que as línguas são produtos da “força do espírito” humano. Onde há linguagem está em ação a força lingüística originária do espírito humano, e cada língua está em condições de alcançar o objetivo geral que se procura com essa força natural do homem. Mas isso não exclui, e até legitima, o fato de que a comparação das línguas procura um padrão de perfeição, segundo o qual elas se diferenciam. Pois é comum a todas as línguas “o impulso a dar existência na realidade à idéia da perfeição lingüística”, e a tarefa do lingüista se orienta precisamente em investigar até que ponto e com que meios se aproximam as diversas línguas a esta idéia. Por conseqüência, para Humboldt há evidentemente diferenças de perfeição entre as línguas. Porém, não há um padrão prévio, sob o qual ele submeta à força os múltiplos fenômenos. Humboldt ganha esse padrão a partir da essência interna da própria linguagem e a partir da riqueza de suas manifestações. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem não é somente um dos dotes, de que se encontra apetrechado o homem, tal como está no mundo, mas nela se baseia e representa o fato de que os homens simplesmente têm mundo. Para o homem, o mundo está aí como mundo [447], numa forma sob a qual não tem existência para nenhum outro ser vivo, nele posto. Essa existência do mundo, porém, está constituída linguisticamente. Esse é o verdadeiro miolo de uma frase expressada por Humboldt com outra intenção, a de que as línguas são acepções de mundo. Com isso, Humboldt quer dizer que a linguagem afirma, face ao indivíduo pertencente a uma comunidade lingüística, uma espécie de existência autônoma, e que introduz o indivíduo, quando este nela cresce, numa determinada relação com o mundo e num determinado comportamento com relação a ele. Porém, mais importante ainda é o que subjaz a essa assertiva: que a linguagem não afirma, por sua vez, uma existência autônoma, face ao mundo que fala através dela. Não somente o mundo é mundo, apenas na medida em que vem à linguagem — a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo. A humanidade originária da linguagem significa, pois, ao mesmo tempo, a lingüisticidade originária do estar-no-mundo do homem. Teremos de perseguir um pouco mais a relação de linguagem e mundo, se quisermos ganhar um horizonte adequado para a lingüisticidade da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Uma vez que esteja esclarecido o alcance disso, torna-se compreensível porque, à relação geral lingüística do homem com o mundo, se lhe opõe uma multiplicidade de línguas diversas. Com a liberdade humana face ao mundo circundante está dada a capacidade lingüística livre, como tal, e com esta a base para a multiplicidade com que se comporta o falar humano com respeito ao mundo uno. Quando o mito fala de uma linguagem originária e da erupção da confusão das línguas, essa representação mítica reflete com muito sentido o verdadeiro enigma que representa, para a razão, a pluralidade das línguas. Mas na sua verdadeira intenção, esse relato mítico põe as coisas de pernas para o ar, quando imagina a desintegração da unidade originária da humanidade, com seu uso de uma língua originária, através da confusão das línguas. Na realidade as coisas se explicam de outro modo: porque o homem está capacitado a elevar-se sempre acima de seu mundo circundante casual, e porque seu falar traz o mundo à fala, está dada, desde o princípio, sua liberdade para um exercício variado de sua capacidade lingüística. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O pensamento mais antigo levou isso em conta, atribuindo à idéia da teleología uma função ontológica universal. Pois quando se pensa em objetivos, as mediações pelas quais algo é agenciado não se mostram casualmente adequadas à consecução de um fim, mas são eleitas e adotadas, desde o princípio, como meios adequados. A subordinação do meio a um fim é, portanto, prévia. A isso chamamos sua “idoneidade”, e é sabido que a ação humana racional é idônea para seus fins não somente nesse sentido, mas inclusive onde não se trata de colocar objetivos nem de escolher meio. Assim ocorre também em todas as relações vitais: Estas somente podem ser pensadas sob a idéia da idoneidade para um fim, ou seja, como a congruência recíproca de todas as partes entre si. Também aqui a relação do todo é mais originária do que as partes. Aliás, na teoria da evolução, o conceito da adaptação só pode ser utilizado com precaução, já que pressupõe, de sua parte, a inadaptação como relação natural, como se os seres tivessem sido postos num mundo a que teriam de se adaptar posteriormente. Tal como neste caso, a adaptação perfaz a própria relação vital, assim também o conceito do conhecimento se determina, sob o domínio da idéia do fim, como a subordinação natural do espírito humano à natureza das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ser uma e a mesma coisa e, ao mesmo tempo, ser distinto, esse paradoxo aplicável a todo conteúdo da tradição põe a descoberto que toda a tradição é, na realidade, especulativa. Por isso, a hermenêutica tem que deixar o olhar atravessar o dogmatismo de todo “sentido em si”, tal como o fez a filosofia crítica com relação ao dogmatismo da experiência. Isso não quer dizer que cada intérprete seja especulativo para sua própria consciência, isto é, possua consciência do dogmatismo implicado na sua própria intenção interpretadora. Ao contrário, trata-se de que toda interpretação é especulativa em sua própria realização efetiva e acima de sua autoconsciência metodológica; isso é o que emerge da lingüisticidade da interpretação. Pois a palavra interpretadora é a palavra do intérprete, não a linguagem nem o vocabulário do texto interpretado. Nisso se torna patente que a apropriação não é mera reprodução ou mero relato posterior do texto interpretado, mas é como uma nova criação do compreender. Quando se destacou, com toda a razão, a referência de todo sentido ao eu, essa referência significa, para o fenômeno hermenêutico, que todo sentido da tradição alcança aquela concreção em que é compreendido, na relação com o eu que a compreende, e não, por exemplo, na reconstrução de um eu, pertencente à intenção de sentido originária. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nossa reflexão tem sido guiada pela idéia de que a linguagem é um centro em que se reúnem o eu e o mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua unidade originária. Elaboramos também o modo como se representa esse centro especulativo da linguagem, como um acontecer finito, face à mediação dialética do conceito. Em todos os casos que estivemos analisando, tanto na linguagem da conversação, quanto na da poesia e na da interpretação, tornou-se patente a estrutura especulativa da linguagem, que consiste não em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala, onde se anuncia um todo de sentido. Isso nos tinha aproximado da dialética antiga, porque tampouco nela se dava uma atividade metodológica do sujeito, mas um fazer da própria coisa, fazer que o pensamento “padece”. Esse fazer da própria coisa é o verdadeiro movimento especulativo que capta o falante. Rastreamos o seu reflexo subjetivo no falar. Agora estamos em condições de compreender que essa cunhagem da idéia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta a uma estrutura universal-ontológica, à constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem. O fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ôntica do compreendido, quando a determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente, como interpretação. Por isso não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Decerto, precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria [30] concepção de método. Aparentemente, os trabalhos de Dilthey partilhavam o mesmo ponto de partida que questionamento epistemológico neokantiano. Também ele procurou ajudar as ciências do espírito a encontrar uma fundamentação autônoma, filosófica, demonstrando seus princípios próprios. Concebeu a base de todas as ciências do espírito numa psicologia descritiva e analítica. Num trabalho clássico de 1892, intitulado Idéias para uma psicologia descritiva e analítica, Dilthey supera a metodologia das ciências naturais, no âmbito da psicologia, fornecendo assim às ciências do espírito sua própria consciência metodológica. Desta forma, ele também parece estar dominado pelo questionamento epistemológico, que pergunta pela possibilidade da ciência, e não pelo que é a história. Na verdade, porém, Dilthey não se restringe a refletir a respeito de nosso saber sobre a história, como acontece na ciência da história, mas pensa sobre o ser humano, que determina pelo seu próprio saber sobre sua história. Ele caracteriza o caráter fundamental da existência humana como “vida”. Esta é para ele a realidade originária “nuclear”, na qual também radica todo conhecimento histórico. Tudo que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não num sujeito epistemológico. Arte, Estado, sociedade, religião, todos os valores, bens e normas incondicionais, que encontram sua consistência nesta esfera, provêm em última instância do trabalho da vida, formador de pensamento. Se estas realidades objetivas reivindicam uma validade incondicional, isso só pode ser esclarecido pela “limitação do horizonte do tempo”, isto quer dizer, pela falta de um horizonte histórico. Aquele que conhece história sabe, por exemplo, que o homicídio não é incondicionalmente um delito maior do que o roubo. Ele sabe que o antigo direito germânico punia o roubo de modo mais severo do que o homicídio, por ser, aquele, covarde e pouco viril. Somente quem não sabe disto é que pode acreditar numa hierarquia absoluta das coisas. O Iluminismo histórico leva à idéia da condicionalidade do incondicional, à idéia da relatividade histórica. Nem por isso, Dilthey torna-se o representante de um relativismo histórico, pois o seu pensamento não se ocupa da relatividade, mas da realidade “nuclear” da vida, que serve de fundamento para toda relatividade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Não me parece um acaso que o fenômeno da linguagem nas últimas décadas tenha ocupado o centro do questionamento filosófico. Talvez possamos dizer que, sob este signo, começa-se a transpor o maior abismo filosófico hoje existente entre os povos, qual seja, a oposição entre o extremo do nominalismo anglo-saxão, por um lado, e a tradição metafísica do continente, por outro. Em todo caso, a análise da linguagem, que começa refletindo sobre a problemática das lógicas das linguagens artísticas na Inglaterra e na América, aproxima-se surpreendentemente da reflexão e investigação da escola fánomenológica de E. Husserl. Assim como o reconhecimento da finitude e historicidade da pre-sença humana, desenvolvidas por M. Heidegger, transformou essencialmente a tarefa da metafísica, da mesma forma, o reconhecimento da significação autônoma da linguagem falada acabou por dissolver o afeto [72] antimetafísico do positivismo lógico (Wittgenstein). Da informação ao mito e à saga, que é igualmente uma “mostração” (Zeige) (Martin Heidegger), a linguagem perfaz o tema comum de todos. Quando se quer pensá-la verdadeiramente, parece-me que devemos nos perguntar se no fundo a linguagem não precisa significar “linguagem das coisas”. Se não é na linguagem das coisas que se revela a correspondência originária entre alma e ser, de tal modo que até uma consciência finita pode tomar conhecimento dela. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Sob o ponto de vista dessa questão, passa a despertar interesse a pertença interna de palavra e coisa, tal como foi problematizada no começo da reflexão sobre a linguagem. De certo, a questão pela justeza dos nomes, abordada pelos gregos, constitui um último eco daquela magia da palavra, que a compreende como a coisa (Sache) ela mesma, ou como o seu ser representante. Também o filosofar dos gregos começa com a dissolução dessa magia da palavra, dando seus primeiros passos como crítica da linguagem. Apesar disso, conserva em si tanto daquele auto-esquecimento ingênuo que constitui a experiência originária de mundo que a essência das coisas que se manifestam no logos parece-lhe ser a auto-apresentação dos próprios entes. Trata-se de uma clara ironia, quando Platão, no Fédon, caracteriza a fuga para os logoi como uma “viagem de segunda”, porque aqui se considera o ente apenas numa imagem refletida do logos, ao invés de considerá-lo em sua realidade corpórea. No fim, o verdadeiro ser das coisas torna-se acessível justamente em sua manifestação pela linguagem, quer dizer, na idealidade de um ter em mente, desprovido de pensamento, e se fecha de tal modo para o olhar da experiência que o próprio ter em mente e o caráter de linguagem da manifestação das coisas acabam não sendo experimentados como tais. À medida que compreende o verdadeiro ser das coisas como as essências acessíveis ao “espírito”, a metafísica encobre o caráter próprio de linguagem dessa experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na idéia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a idéia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa idéia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Isso se deixa esclarecer de uma maneira muito bela no fenômeno do ritmo, que é em si mesmo um momento estrutural de todo o fenômeno de linguagem. Como já havia destacado Richard Hönigswald, em sua análise da psicologia do pensamento, a essência do ritmo encontra-se num âmbito intermédio entre ser e alma. A seqüência marcada pelo ritmo não representa necessariamente o ritmo próprio dos fenômenos. Mesmo numa seqüência uniforme, a ritmação só pode ser ouvida interiormente, de tal forma que a seqüência aparece como algo articulado ritmicamente. Ou melhor, quando se pretende que a sensibilidade perceba uma seqüência uniforme, não apenas pode como deve acabar surgindo sempre uma tal ritmação. O que significa aqui “deve”? Será contra a natureza das coisas? Certamente não. Então, o que poderá significar ainda “ritmo próprio dos fenômenos”? Eles não são exatamente o que são, apenas porque são percebidos de forma rítmica ou [75] ritmada? Isso significa que a correspondência que reina entre ambos é ainda mais originária do que aquela seqüência acústica, de um lado, e aquela percepção ritmizante, de outro. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

A refutação do ter em mente, que assumimos como o traço comum no discurso da “natureza da coisa (Sache)” e da “linguagem das coisas”, acabou adquirindo um sentido positivo e um conteúdo concreto. Apenas por isso a tensão que havia entre esses dois modos de fala veio realmente à luz. O que parecia ser o mesmo, mostrou-se não sê-lo. É algo bem diferente experimentar um limite a partir da subjetividade do que se tem em mente da prepotência do querer, do que pensar a partir do prévio lançar-se do ente num mundo aberto pela linguagem. Parece-me que é na linguagem das coisas, que quer ser ouvida como vêm à linguagem, e não na natureza da coisa (Sache), que se contrapõe à opinião diferente e força o respeito, que se pode fazer a experiência — adequada à nossa finitude — daquela correspondência ensinada antigamente pela metafísica como a adequação originária de todo criado entre si e, especialmente, como a adequação da alma criada com as coisas criadas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant e Fichte privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do “eu penso”, na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel. Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na “hermenêutica” mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de idéias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter “paradigmático” do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Dá-se, pois, uma certa descontinuidade no acontecer. Conhecemos uma descontinuidade no acontecer ao modo da experiência epocal. Os recursos fenomenológicos permitem mostrar que isso se dá realmente, ou seja, que não se trata somente de uma derivação de nosso interesse cognitivo que ordena e classifica a posteriori algo para poder dominá-lo, mas que designa uma autêntica realidade da própria história. Dá-se uma certa experiência originária de um recorte epocal. As épocas da história diferenciadas pelo historiador enraízam-se em verdadeiras experiências epocais e no fundo devem comprovar-se nelas. É certo que, em suas origens, o conceito de época era simplesmente astronômico e designava uma constelação que servia de base para o cálculo aritmético. Em sentido [137] histórico, a época significa um recorte a partir do qual se computa uma nova época. Mas será isso mera convenção e arbitrariedade? A constelação histórica que caracteriza um recorte epocal não é um parâmetro externo para medir o tempo, mas define o próprio conteúdo temporal, quer dizer, isso que chamamos história. Sempre me impressionou — quiçá por sua fraseologia arcaica — o que Kant escreveu sobre a Revolução Francesa: “Um acontecimento assim não se esquece”. O fato de que um acontecimento não se esquece — é óbvio que a frase somente quer dizer que ninguém pode esquecê-lo — depende evidentemente da importância desse acontecimento. Aconteceu de tal modo que ninguém pode esquecê-lo e por isso a linguagem pode considerar o acontecimento como um ser atuante e dizer: esse acontecimento não se esquece. A linguagem faz aqui uma sugestão. Dá-se algo que permanece na consciência do ser humano, que tantas coisas esquece. Subjaz ali a experiência de uma diferença e de uma descontinuidade, de uma permanência em meio às mudanças incessantes. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

O terceiro exemplo que tenho em mente é a “época absoluta” da virada dos tempos, essa experiência epocal que entrou na consciência histórica antiga com o nascimento de Cristo. Se faço alusão a esta experiência, é porque merece chamar-se uma experiência epocal absoluta, não somente por razões de verdade religiosa, mas em virtude da história dos conceitos. Com esta experiência da nova aliança e com a mensagem da salvação cristã descobriu-se a história como tal num novo sentido. Que a história é uma experiência do destino humano, como uma flutuação de ventura e desventura, como facilidade e dificuldade das circunstâncias em vista de uma obra realizada e fecunda ou de um doloroso fracasso… isso tudo é [139] obviamente uma experiência originária do homem. Mas a questão é saber que novos aspectos significativos são possíveis para a interpretação destas experiências e que novo aspecto interpretativo nos legou a experiência epocal absoluta do cristianismo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Na verdade, a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do Ocidente. É bem verdade que sempre chamou a atenção que na história da criação, narrada no Antigo Testamento, Deus outorgou ao primeiro homem o domínio do mundo, ao lhe permitir nomear os seres do modo que melhor lhe conviesse. Também a história da Torre de Babel atesta o significado fundamental da linguagem para a vida do homem. Mesmo assim, foi justamente a tradição religiosa do Ocidente cristão que acabou paralisando de certo modo o pensamento sobre a linguagem. De fato foi só a época do Iluminismo que se colocou de maneira nova a pergunta pela origem da linguagem. Deu-se um grande passo quando se deixou de responder a questão da origem da linguagem sob a perspectiva do relato da criação, mas a partir da natureza do homem. Pois só assim tornou-se inevitável um passo adiante, ou seja, admitir que a naturalidade da linguagem não permite colocar a questão de um estado anterior do homem, destituído de linguagem, e conseqüentemente a questão da origem da linguagem. Herder e W. von Humboldt caracterizaram a humanidade originária da linguagem como linguagem originária do homem, desenvolvendo o significado fundamental desse fenômeno para a visão humana do mundo. A diversidade da estrutura da linguagem humana foi o campo de investigação do antigo ministro da cultura, o sábio de Tege retirado da vida pública que pela obra produzida em sua velhice tornou-se o fundador da moderna ciência da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas idéias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se, uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Mas isso significa que a matemática, com a qual o físico adquire e formula seu conhecimento, não é uma linguagem própria. Pertence ao instrumentado de muitas linguagens com o qual expressa o que quer dizer. Em outras palavras, o dizer filosófico constitui sempre uma intermediação entre a linguagem técnica ou das expressões técnicas — chamada terminologia erudita — e a vida da linguagem que cresce e se transforma nela mesma. Essa tarefa de integração e mediação encontra sua culminação específica no físico, por ser aquele que, dentre os pesquisadores da natureza, é o que [192] mais fala em termos matemáticos. É especialmente instrutivo justamente por ser o caso extremo do uso de uma simbologia amplamente matemática. Essa estrutura poético-metafórica mostra que, para a física, a matemática representa apenas uma parte não autônoma da linguagem. A linguagem é autônoma onde por exemplo as línguas desenvolvidas nutrem sua realidade como aspectos do mundo das diversas culturas. A questão é porém saber como se dá a relação entre o dizer e o pensar científico e o dizer e pensar extra-científico. Será que a liberdade maleável de nosso dizer cotidiano não passa de um estágio aproximado da linguagem científica? A quem nega isso poderíamos objetar que as línguas naturais ainda hoje em dia parecem indispensáveis. Se nos esforçássemos um pouco mais, acabaríamos compreendendo as equações da física que prescindem do uso de palavras, seríamos até mesmo capazes de calcular nossas ações e nós mesmos mediante equações. Nesse caso, não precisaríamos de nenhuma outra linguagem a não ser a científica. Na realidade, o objetivo do cálculo lógico moderno é essa linguagem artificial inequívoca. Todo esse ideal é, no entanto, motivo de muita discussão. Para Vico e Herder, ao contrário, é a poesia que representa a linguagem originária do gênero humano. Para ambos a intelectualização dos idiomas modernos está longe de ser a perfeição do ideal de linguagem, não passando de um destino medíocre. A questão que se há de formular é a seguinte: Será correto afirmar que o ideal de perfeição de toda linguagem é a crescente aproximação de uma linguagem científica? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

Em nossa comparação podemos sentir pela primeira vez quais as reais condições para um verdadeiro diálogo, para que esse possa atingir a profundidade da comunhão humana e quais as forças contrárias, que criam resistência ao diálogo na civilização moderna. As técnicas modernas da informação, que podem estar apenas nos inícios de sua perfeição, e que, a crer-se nos profetas da técnica, logo tornarão obsoletos tanto o livro e o jornal quanto mais os ensinamentos que procedem dos encontros humanos, fazem-nos lembrar aqueles que são o seu oposto mais radical. Refiro-me aos carismáticos do diálogo que mudaram o mundo: Confúcio, Buda, Jesus e Sócrates. Lemos os seus diálogos. Mas esses textos são transcrições feitas por outros, que não conseguem conservar e reproduzir o verdadeiro carisma do diálogo, apenas presente na espontaneidade viva da pergunta e resposta, no dizer e deixar-se dizer. Mesmo assim, essas transcrições apresentam uma força documental peculiar. São, em certo sentido, literatura, isto é, pressupõem a arte de escrever, essa capaz de formular e evocar, com os recursos literários, uma realidade viva. Mas, distintas dos jogos poéticos da imaginação, essas transcrições possuem uma transparência singular, deixando entrever ao fundo a verdadeira realidade, o autêntico acontecer. O teólogo Franz Overbeck percebeu isso com muita clareza e na aplicação ao Novo Testamento cunhou o conceito de “literatura originária”, que precede a literatura propriamente dita como o tempo primordial precede o tempo histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.

O que é hermenêutica? Gostaria de partir de duas experiências de estranhamento que encontramos no âmbito de significações que atingem nossa existência. Refiro-me à experiência de [220] estranhamento da consciência estética e da consciência histórica. O que quero dizer com isso pode ser expresso com poucas palavras: A consciência estética realiza a possibilidade, cujo valor não podemos negar nem minimizar, de relacionar-nos com a qualidade de uma obra de arte de forma crítica ou afirmativa. Mas isso significa que o que decide sobre a força enunciativa e a validade do que assim julgamos é, em última instância, nosso próprio juízo. Aquilo que recusamos não tem nada a nos dizer ou então recusamo-lo justo porque não tem nada a nos dizer. É isso que caracteriza nossa relação com a arte, no sentido amplo da palavra. Como mostrou Hegel, a arte também abarca todo o mundo religioso greco-pagão, enquanto arte-religião, como modo de experimentar o divino na resposta artística do homem. Quando esse mundo da experiência no seu todo se aliena como objeto de um julgamento estético, acaba perdendo sua autoridade originária e inquestionável. Nesse sentido, é preciso reconhecer que o mundo da tradição artística, a extraordinária simultaneidade com tantos mundos humanos proporcionada pela arte, é para nós bem mais que um mero objeto de aceitação ou rejeição livre. Ao contrário, o que se apodera de nós como obra de arte já não nos dá liberdade de distanciá-lo, de aceitá-lo ou recusá-lo a partir de nós mesmos. Será também que essas criações do engenho artístico humano, atravessando os milênios, foram feitas para prestar-se a essa aceitação ou recusa estética? Todo artista das culturas religiosas do passado expunha sua obra de arte com o único objetivo de ser aceita no que ela diz e representa e como pertencente ao mundo da convivência humana. A consciência da arte, a consciência estética é sempre uma consciência secundária. É secundária frente à imediata pretensão de verdade que provém da obra de arte. Nesse sentido, quando julgamos algo a partir do ponto de vista de sua qualidade estética, estamos deixando de lado alguma outra coisa que nos atinge muito mais intimamente. Essa alienação ao juízo estético instala-se sempre que alguém se subtrai negligentemente, quando não atende o apelo imediato do que o atinge. É por isso que um dos pontos de partida de minhas reflexões afirma que a soberania estética instalada no âmbito de experiência da arte representa uma alienação frente à verdadeira realidade da experiência que encontramos nas configurações onde se enuncia a arte. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra conseqüência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O “nada nadificante”, p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, essa determinação originária da hermenêutica ganhou mais definição quando a modernidade rompeu com a tradição, surgindo um ideal de conhecimento completamente diverso, baseado na exatidão. Mas o pressuposto fundamental para se estabelecerem as tarefas da hermenêutica, que não se queria ver corretamente e que eu procurei recuperar, foi desde sempre a apropriação de um sentido superior. Nesse sentido, nada tem de original quando em minha investigação reivindico a produtividade hermenêutica da distância temporal, ressaltando de modo essencial a finitude e inconclusividade de todo compreender e de toda reflexão da história dos efeitos. Isso nada mais é que a liberação da verdadeira temática hermenêutica. Ela encontra sua real legitimação na experiência da história. O que nada tem a ver com a transparência de sentido. A “historiografia” precisa desviar-se constantemente da diluição humanista. A experiência da história não é a experiência do [265] sentido, do plano e da razão. E foi só sob o olhar perenizante da filosofia do saber absoluto que se pôde pretender conceber a razão na história. Assim, a experiência da história reconduz a tarefa da hermenêutica, de fato, ao seu verdadeiro lugar. Ela precisa decifrar sempre de novo os fragmentos de sentido da história, que se limitam e se quebram na escura contingência dos fatos e sobretudo no crepúsculo onde se encontra mergulhado o futuro para toda consciência presente. Também a “concepção prévia da plenitude”, própria da estrutura da compreensão, chama-se enfaticamente assim porque a superioridade daquilo que deve ser compreendido não pode ser esgotada por nenhuma interpretação. Assim ficamos surpresos que em Apel, em Habermas e com uma importante modificação em Giegel, a reflexão hermenêutica precise elevar-se a uma plena transparência idealista de sentido, pela luz brilhante de uma ciência explicativa. Isso se encontra na função paradigmática que esses autores atribuem à psicanálise. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Isso pode ser melhor ilustrado numa investigação histórico-conceitual, acrescentada por Jaeger, sobre a aparição da palavra hermeneia na época do humanismo (65-73). A pré-história da nomenclatura sistemática de Dannhauer torna-se ainda mais clara. Também daí podemos tirar lições muito instrutivas. Para mim foi especialmente interessante ali o papel desempenhado por Ammonios Hermeiu. Esse autor considera o escrito aristotélico Peri hermeneias como a versão originária do pensamento em palavra, quer dizer, não apenas a mera tradução de um idioma a outro ou da expressão obscura à clara, mas como a articulação em linguagem do pensamento em geral (64s). Apesar da referência à “alma” hermenêutica ao final do artigo de Jaeger (81s), esse motivo parece não ter nenhuma importância para Dannhauer. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Somente à luz da interpretação algo se converte em fato e uma observação possui força enunciativa. A crítica de Heidegger denunciou de modo radical o dogmatismo presente no conceito fenomenológico de consciência. Com Scheler, desmascarou o dogmatismo presente no conceito de “percepção pura”. Assim na própria percepção descobriu-se a compreensão hermenêutica de algo-como-algo. Mas isso não significa compreender a interpretação como um recurso complementar do conhecimento. Ela constitui, antes, a estrutura originária do “ser-no-mundo”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Chegamos assim a um conceito sumário do que está à base de [345] toda constituição de textos e permite sua inserção no contexto hermenêutico: toda volta ao texto — seja um texto real, fixado por escrito, ou uma mera reprodução do que se expressa na conversação — remete à “notícia originária”, ao notificado ou anunciado originariamente que há de valer como algo idêntico dotado de sentido. A tarefa prescrita a tudo que se vai fixar por escrito é justamente que esta “notícia” deve poder ser compreendida. E o texto escrito deve fixar a informação originária de tal modo que seu sentido seja compreensível univocamente. À tarefa do escritor corresponde aqui a tarefa do leitor, do destinatário ou do intérprete, que é a tarefa de alcançar essa compreensão, ou seja, fazer com que o texto fixado por escrito fale novamente. Nesse sentido, ler e compreender significa restituir à informação sua autenticidade original. A tarefa da interpretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é controverso e é preciso alcançar a reta compreensão da “informação”. Mas a “informação” não é o que o orador ou o escritor disse originariamente, mas o que queria dizer se eu tivesse sido seu interlocutor originário. O problema hermenêutico na interpretação das “ordens”, por exemplo, é que estas devem cumprir-se “conforme seu sentido” (e não ao pé da letra). O que se explica pela constatação de que um texto não é um objeto dado, mas uma fase na realização de um processo de entendimento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Todas as considerações que fizemos até o presente destinam-se a mostrar que a relação entre texto e interpretação muda radicalmente quando se trata dos denominados “textos literários”. No que se seguiu, nos casos em que se dava uma motivação para a interpretação e onde no processo comunicativo se constituía algo como um texto, tanto a interpretação quanto o texto propriamente dito estavam inseridos no acontecimento do entendimento. Isso correspondia ao sentido literal da palavra interpres, que designa a pessoa que faz a intermediação na fala. Esta é a função originária do intérprete que faz a mediação entre os interlocutores de diferentes idiomas e com seu discurso mediador une os que estão separados. Se nesse caso a mediação serve para superar a barreira do idioma estrangeiro, também quando aparecem obstáculos na compreensão da mesma língua se faz necessária essa mesma mediação. Nesse último caso estabelece-se a identidade do enunciado na medida em que se remonta à compreensão, ou seja, na medida em que é tratada como texto. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu significado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, também o texto literário — com todos os matizes que ostenta — possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso não é um “escrito”, tampouco como uma conferência é uma aula, um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensível em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma repetição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma linguagem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota nas relações existentes entre os significados principais das palavras. Justamente as relações de significado anexas, que não aparecem ligadas à teleología de sentido, conferem sua magnitude (Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o conjunto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda audição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende o que ouviu como a figura de sentido de um discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a “linguagem” retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de “mundear” (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária idéia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra “volts”?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem [366] ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de “ser” como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de Aristóteles, gerando conseqüentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

A ocasionalidade deve aparecer como um momento de sentido dentro da pretensão de sentido de uma obra e não como o rastro do ocasional, velado por trás das obras e que deve ser descoberto através de interpretação. Se fosse o caso desse último, significaria que só estaríamos em condições de compreender o sentido do todo através da reconstituição da situação originária como tal. Se a ocasionalidade representa um momento de sentido na pretensão da própria obra, então o caminho para o entendimento do conteúdo de sentido da obra é ao mesmo tempo uma oportunidade para que o historiador experimente algo da situação originária, para onde aponta a própria obra. Nesse sentido, nossas considerações fundamentais sobre o modo de ser do ser estético estabeleceram uma nova legitimação para o conceito de ocasionalidade, que ultrapassa todas as formas específicas de legitimação. Assim, o jogo da arte não está elevado acima de tempo e espaço como afirma a consciência estética. Mesmo que reconheçamos o fundamental, não podemos falar de uma irrupção do tempo no jogo, como o fez recentemente Carl Schmitt, com relação ao drama de Hamlet. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II

É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as [384] fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO V

“E do espírito que, através das formas de sua objetivação, fala ao espírito pensante, espírito que se sente aparentado àquele em humanidade comum: trata-se de um reconduzir reunitivamente e de um religar aquelas formas com o todo interior que as gerou e do qual elas se separaram. Uma interiorização dessas formas; só que o seu conteúdo é deslocado para uma subjetividade diversa da originária. Trata-se, segundo isso, de uma inversão do processo criador no processo interpretativo, uma inversão, em conseqüência da qual o intérprete precisa percorrer, em seu caminho hermenêutico, o caminho criador na direção inversa; deve levar a cabo esse repensar dentro de si”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

É evidente que uma hermenêutica jurídica séria não pode contentar-se em utilizar como cânon de interpretação o princípio subjetivo da opinião e a intenção originária do legislador. Em muitos casos não pode deixar de aplicar conceitos objetivos, como, por exemplo, o conceito do pensamento jurídico que se expressa numa lei. Pensar que se pode aplicar uma lei a um caso concreto como o processo lógico da subsunção do particular sob o universal parece ser o caso de uma representação tipicamente laica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

[411] Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da “consciência”, incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do “ser”, à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da “pre-sença”, tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade (“fluir” = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente [412], e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Não foi um determinado cânon temático do classicismo o que me motivou a caracterizar o clássico como a categoria da história dos efeitos, por excelência. Com essa categoria, queria destacar muito mais a singularidade da obra de arte e sobretudo todo e qualquer texto eminente frente a outras formas de tradição compreensíveis e necessitadas de interpretação. Aqui, a dialética de pergunta e resposta por mim desenvolvida não perde sua validez, mas modifica-se: a pergunta originária, em relação à qual um texto deve ser compreendido como uma resposta, como dissemos acima, caracteriza-se, aqui, a partir de seu próprio princípio, por sua superioridade e liberdade com relação ao texto. Mas isso não significa que a “obra clássica” só seria acessível ainda em uma convencionalidade sem esperanças. Tampouco significa que exija um conceito harmonioso e inconteste do “humano comum”. A obra só “fala” quando fala “originariamente”, ou seja, “como se o dissesse para mim próprio”. Isso não significa, em absoluto, que aquilo que assim fala deve ser medido em um conceito normativo extra-histórico. Trata-se, antes, do caso oposto. O que fala desse modo impõe, com isso, uma medida. E aqui está o problema. A pergunta originária, cuja resposta constitui a compreensão do texto, apela, nesse caso, para uma identidade de sentido que já intermediou desde o princípio a distância entre origem e presente. Em uma conferência realizada em Zurique, em 1969, intitulada “Das Sein des Gedichteten”, indiquei as diferenciações hermenêuticas que se fazem necessárias para tais textos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a filosofia grega. Quase não tínhamos consciência de que essa filosofia grega representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A “destruição” da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e Aristóteles apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a idéia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra [485] sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Parece-me evidente que o retorno à dialógica originária do homem com o mundo é inevitável. É isso que se dá também quando se exige uma explicação última ou uma “fundamentação última” ou quando se ensina uma “auto-realização do espírito”. Assim, foi preciso retomar o caminho do pensamento hegeliano. Heidegger descortinou o pano de fundo da tradição da metafísica e na dissolução dialética dos conceitos tradicionais de Hegel em sua Ciência da lógica viu o mais radical seguimento aos gregos. Mas a sua “destruição” da metafísica não despojou o sentido dessa ciência da lógica. Invocou-se especialmente a sutil superação especulativa da subjetividade do espírito subjetivo por parte de Hegel, e isso aparece como uma via própria de solução frente ao subjetivismo moderno. Não havia aqui a mesma intenção presente no afastamento de Heidegger com relação à autoconcepção transcendental, afastamento empreendido pela idéia da “guinada”? Não foi também intenção de Hegel deixar de orientar-se pela autoconsciência, superando assim a divisão sujeito-objeto própria da filosofia da consciência? Ou será que existem outras diferenças? A orientação na universalidade da linguagem, o assentamento no caráter de linguagem de nosso acesso ao mundo, que compartilhamos com Heidegger, significariam um passo além de Hegel, um passo por detrás de Hegel? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.