Gadamer (VM): oratória

Por fim, desde a renascença da antiga filosofia e retórica, a imagem de Sócrates torna-se antipropaganda contra a ciência, tal qual se mostra, sobretudo, na figura do idiota, do leigo, que assume um papel totalmente novo entre o erudito e o sábio. Da mesma forma, a tradição teórica do humanismo sabe como se reportar a Sócrates, bem como à crítica cética aos dogmáticos. Observa-se em Vico que ele critica os estóicos, porque acreditam na razão como regula veri, e, inversamente, louva os antigos acadêmicos, que somente afirmam o saber do não-saber, e tanto mais ainda os novos acadêmicos, porque eles, na arte da argumentação (que pertence à oratória) são grandes. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “techne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambigüidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas freqüentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas a oratória como tal está ligada à imediaticidade de seus efeitos. Com profunda erudição, Klaus Dockhorn mostrou em que medida o produzir efeitos se impôs como o mais importante recurso persuasivo desde Cícero e Quintiliano até a retórica política inglesa do século XVIII. Mas o produzir efeitos, enquanto a tarefa essencial do orador, tem muito pouca influência quando se trata da expressão escrita, a qual se torna objeto do esforço hermenêutico; e é justamente essa diferença que queremos destacar: o orador arrasta o ouvinte. O brilho de seus argumentos deslumbra o ouvinte. A força persuasiva do discurso não deve nem pode admitir a reflexão crítica. A leitura e interpretação do escrito, ao contrário, estão tão distanciadas e afastadas do escritor, de seus humores, de suas intenções e de suas tendências latentes que a apreensão do sentido do texto adquire o caráter de uma produção autônoma que se assemelha mais à arte do discurso do que ao comportamento de seu ouvinte. Compreende-se assim o fato de os recursos teóricos da arte da interpretação serem tomados em grande medida da retórica, como demonstrei em alguns pontos e como expôs Dockhorn numa ampla base. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Transferindo isso para a arte da boa interpretação, nos deparamos com uma dimensão intermediária peculiar, qual seja, o discurso fixado por escrito ou em letra impressa. Por um lado, isso significa uma maior dificuldade para a compreensão, mesmo que se cumpram plenamente as condições gramaticais da linguagem. A palavra morta deve despertar para uma linguagem viva. Mas ainda a fixação por escrito significa uma facilitação, por oferecer-se numa forma invariável ao esforço reiterado de compreensão. Não se trata de uma mera contagem de pontos positivos e negativos dados na fixação. Uma vez que a hermenêutica está às voltas com a interpretação dos textos e estes são discursos destinados a ser lidos em público ou em privado, a arte da escrita vem ao encontro da tarefa da interpretação e da compreensão. Assim, a arte especial da escrita teve como um de seus objetivos oferecer uma base textual adequada para a leitura pública nos tempos antigos, quando a cultura tinha como suporte a leitura em voz alta. Trata-se de uma perspectiva estilística importante que desempenhou um papel determinado no período clássico dos gregos e romanos. Com a difusão generalizada da leitura privada e sobretudo com a aparição da imprensa, tornaram-se necessários outros recursos para a leitura, como a pontuação e as divisões. Com isso, a arte da escrita também exige alterações. Poderíamos fazer um paralelo com as razões da decadência da oratória que se explicam nos Dialogus de Tácito. Na arte da imprensa encontram-se as razões para a decadência da literatura épica e das mudanças na arte de escrever, que corresponde à arte modificada de ler. É evidente que ambas, a retórica e a hermenêutica, diferem em muito do modelo preciso de um saber artesanal que inspira o conceito de “teoria da arte” (techne). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Decerto, a idéia aristotélica de uma filosofia prática não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A filosofia prática política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A filosofia moral grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estóica. Mesmo assim, a retórica de Aristóteles exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse Aristóteles, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Theet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Mas também na vertente filosófica, encontramos desde há muito uma tendência similar, dotada de uma consciência filosófica [431] ainda maior, quando Chaim Perelman e seus colaboradores defenderam o significado lógico da argumentação usual no direito e na política contra a lógica da teoria da ciência. Utilizando os recursos da análise lógica, mas justamente com a intenção de distinguir os procedimentos do discurso persuasivo contra a forma de demonstração lógico-apodíctica, ele lança mão da antiga aspiração da retórica contra o positivismo científico. Frente à unilateralidade da teoria moderna da ciência e da philosophy ofscience, era inevitável que o interesse filosófico não recuperasse lentamente seu interesse pela tradição da retórica, exigindo sua revitalização. Foi o que fortaleceu também o interesse pela hermenêutica, uma vez que essa partilha com a retórica sua distinção frente ao conceito de verdade da teoria da ciência e a defesa de seu direito à autonomia. Fica em aberto a questão de saber se essa correspondência, historicamente legítima, entre retórica e hermenêutica é total e plena. De certo, a maioria dos conceitos da hermenêutica clássica desde Melanchton provém da tradição retórica da Antigüidade. O elemento da retórica, o âmbito dos persuasive arguments, tampouco se limita às ocasiões forenses e públicas da arte da oratória. Parece dilatar-se, antes, com o fenômeno universal da compreensão e do entendimento. Mas desde antigamente permanece uma barreira infranqueável entre a retórica e a dialética. O processo do entendimento insere-se mais profundamente na esfera da comunicação intersubjetiva, abrangendo também todas as formas em que se dá o consenso tácito, como o demonstrou M. Polanyi, e igualmente os fenômenos de comunicação à margem do âmbito da linguagem, os fenômenos mímicos, como o riso, o choro, cujo significado hermenêutico nos foi ensinado por H. Plessner. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.