Este é o contexto, a partir do qual se determina a idéia de Schleiermacher de uma hermenêutica universal. Essa idéia [183] nasceu da representação de que a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido são universais. Não resta dúvida de que essa alteridade torna-se maior no discurso artístico, e o mal-entendido mais provável do que no discurso sem arte, e torna-se mais aguda no discurso fixado por escrito do que no oral, que na viva voz é de igual modo constantemente também interpretado. Mas precisamente a extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo”, tão característica de Schleiermacher, mostra como se transformou o sentido da estranheza, cuja superação a hermenêutica deve promover, frente ao que até então havia sido a proposição de tarefas da hermenêutica. Num sentido novo e universal, a estranheza está ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Na verdade, a fórmula de Schleiermacher tem uma pré-história. Bollnow, que perseguiu essa questão, apresenta duas passagens nas quais se encontra esta fórmula antes de Schleiermacher: em Fichte e em Kant. Não foi possível [198] comprovar a existência de testemunhos mais antigos. Isso faz supor a Bollnow que talvez se trate de uma tradição oral, de uma espécie de regra filológica de trabalho, que provavelmente vinha sendo transmitida de uns para os outros e que Schleiermacher se assenhoreou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso [277] determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às conseqüências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O fato de que a essência da tradição se caracterize por sua lingüisticidade não carece de conseqüências hermenêuticas. Face a toda outra forma de tradição, a compreensão da tradição lingüística possui um destaque especial. Esta poderá estar muito atrás dos monumentos das artes plásticas no que se refere à imediatez e conspicuidade. Entretanto, a falta de imediatez não é um defeito; na aparente deficiência ou abstrata estranheza dos “textos” se expressa de uma maneira peculiar a filiação prévia de tudo o que é lingüístico ao âmbito da compreensão. A tradição lingüística é tradição no sentido autêntico da palavra, o que quer dizer que não é simplesmente um resíduo que se tenha tornado necessário investigar e interpretar na sua qualidade de relíquia do passado. O que chega a nós pelo caminho da tradição lingüística não é o que ficou, mas algo que se transmite, isto é, ele nos diz — seja sob a forma de tradição oral, onde vivem o mito, a lenda, os usos e costumes, seja sob a forma da tradição escrita, cujos signos estão destinados imediatamente a qualquer leitor que esteja em condições de os ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
O fato de que a essência da tradição se caracterize por sua lingüisticidade, adquire seu pleno significado hermenêutico onde a tradição se torna escrita. Na escrita se engendra a liberação da linguagem com relação à sua realização. Sob a forma da escrita, todo o transmitido está simultaneamente aí para qualquer presente. Nela se dá uma coexistência de passado e presente única em seu gênero, pois a consciência presente tem a possibilidade de um acesso livre a tudo quanto se haja transmitido por escrito. A consciência que compreende, liberada de sua dependência da transmissão oral, que traz ao presente as notícias do passado, porém voltada imediatamente para a tradição literária, ganha com isso uma possibilidade autêntica de deslocar e ampliar seu horizonte e enriquecer assim seu próprio mundo com toda uma nova dimensão de profundidade. A apropriação da tradição literária supera inclusive a experiência que se vincula com a aventura do viajar e do submergir-se em mundos lingüísticos estranhos. O leitor que se aprofunda numa língua e literatura estrangeiras mantém, a todo momento, a liberdade de voltar de novo a si mesmo, e está assim ao mesmo tempo aqui e acolá. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Na escrita, a linguagem chega à sua verdadeira espiritualidade, pois, face à tradição escrita, a consciência compreensiva alcançou sua plena soberania. Em seu ser, já não depende de nada. Assim, a consciência leitora se encontra na possessão potencial de sua história. Não é em vão que o conceito da filologia, do amor aos discursos, se transformou com o aparecimento da cultura literária na arte oni-abrangente da leitura, [395] perdendo sua relação originária com o cultivo do falar e argumentar. A consciência leitora é necessariamente histórica, é consciência que se comunica livremente com a tradição histórica. Nesse sentido está justificada a idéia hegeliana de equiparar o começo da historia com o surgir de uma vontade de tradição, de “permanência da recordação”. A escrita não é um simples acaso ou uma mera adição que não altera qualitativamente nada no progresso da tradição oral. É claro que também sem escrita pode dar-se uma vontade de sobrevivência, de permanência. Mas somente a tradição escrita pode ir mais além da mera permanência de resíduos de uma vida passada, a partir dos quais é possível à existência (Dasein) reconstruir outra existência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário [396] é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Isso aparece exemplarmente naquelas traduções que deveriam possibilitar um diálogo oral, pela intermediação do intérprete, entre pessoas de idiomas diferentes. Um intérprete que se limita a reproduzir o que representam na outra língua as palavras e frases ditas por um dos interlocutores torna o diálogo incompreensível. O que deve reproduzir não é o que foi dito em seu sentido literal, mas o que o outro quis dizer e disse, deixando muita coisa impronunciada. O limite de sua reprodução também deve ganhar o único [154] espaço que possibilita o diálogo, isto é, a infinitude interna que convém a todo entendimento. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra conseqüência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Isso se conhece no trabalho filológico como a tarefa de gerar [342] um texto legível. Mas é evidente que essa tarefa somente se impõe partindo de uma certa compreensão do texto. É só quando um texto já está decifrado e resiste à compreensão que indagamos pelo seu verdadeiro conteúdo, perguntando se a leitura tradicional ou a variante eleita era correta. O tratamento que o filólogo dá a um texto, que gera um texto legível, corresponde, pois, perfeitamente, à percepção não meramente acústica que tem lugar numa transmissão auditiva direta. Dizemos que alguém ouviu quando pôde compreender. Correspondentemente, a insegurança na percepção acústica de uma mensagem oral é parecida com a insegurança de um modo de ler. Em ambos os casos, produz-se um acoplamento com o anterior. A compreensão prévia, a expectativa de sentido e circunstâncias de todo gênero que não se encontram no texto como tal influem na apreensão do texto. Isso fica patente quando se trata de tradução a partir de uma língua estrangeira. O domínio do idioma estrangeiro é uma mera condição prévia para a tradução. Quando se fala de “texto” nesses casos significa que não se trata somente de compreendê-lo, mas de vertê-lo a outra língua. Desse modo, converte-se em “texto”, pois o que é dito nele não somente é compreendido, mas passa a ser o “objeto” que está aí frente a uma infinidade de possibilidades de traduzir o dito na “língua-meta”. Isso implica por sua vez uma relação hermenêutica. Toda tradução, mesmo a simples reprodução literal, é sempre um gênero de interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Em suma, podemos dizer que o que o lingüista converte em tema ao prescindir do acordo sobre a coisa, representa para o próprio acordo um mero caso-limite de uma possível consideração. O que sustenta a realização do acordo, em contraposição à lingüística, é precisamente o esquecimento da linguagem que envolve formalmente a fala ou o texto. Somente quando esse esquecimento é turvado, isso é, quando não alcançamos o acordo, perguntamos pela letra do texto. Então a recuperação do texto pode se converter numa tarefa própria. De certo, no uso da linguagem distinguimos entre letra e texto, mas não é por acaso que ambos os termos podem intercambiar-se (também no grego o falar e o escrever confluem no conceito de grammatike). Ao contrário, a ampliação do conceito de texto encontra sua fundamentação na hermenêutica. A compreensão de um texto, seja oral ou escrito, depende, em todo caso, de condições comunicativas que ultrapassam o mero conteúdo fixo do que nele é dito. Podemos afirmar inclusive que o fato de recorrer à letra ou ao texto como tal está sempre motivado pela peculiaridade da situação do consenso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Mas há também um outro extremo do acordo que não motiva a se falar de “texto”. Tal é, por exemplo, a comunicação científica que pressupõe determinadas condições de entendimento. Isso depende do tipo de destinatário; refere-se ao especialista. Se de um lado a notícia somente é válida para mim mesmo, a comunicação científica, embora venha publicada, não é para todos; somente pretende ser compreensível para aquele que está familiarizado com a situação da investigação e sua linguagem. Cumprida essa condição, o colega não recorrerá geralmente ao texto enquanto texto. Ele só o fará quando a idéia expressa lhe parecer demasiado estranha e então precisa perguntar-se se ela não contém um mal-entendido. A situação é bem distinta, obviamente, para o historiador da ciência, que considera esses mesmos testemunhos científicos como verdadeiros textos. Esses requerem uma interpretação, uma vez que aqui o intérprete não é o leitor previsto e precisa saltar a distância que medeia entre ele e o leitor originário. O conceito de “leitor originário” é sem dúvida muito vago, como assinalei em outro lugar, mas adquire seu perfil no curso da investigação. Pela mesma razão em geral uma carta não é considerada como texto, quando nós mesmos somos destinatários. Então se entra na situação de diálogo escrito sem interromper o curso contínuo, caso não se interponha um obstáculo especial para a compreensão que obrigue a recorrer ao texto mesmo. No fundo, o diálogo escrito exige a mesma condição básica válida para o intercâmbio oral. Os dois interlocutores desejam sinceramente entender-se. Assim, sempre que se busca um entendimento, há boa vontade. A questão é saber até que ponto se dá essa situação e suas implicações quando não se especifica um destinatário ou vários deles, quando o destinatário é o leitor anônimo ou quando não se tem em mente o destinatário mas quem busca compreender o texto é um estranho. Escrever uma carta é uma tentativa de diálogo como qualquer outra, e como no contato direto realizado na linguagem e em todas as situações [344] pragmáticas cotidianas, somente a dificuldade no acordo motivará o interesse pela literalidade do que é dito. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
A pretensão de validez inerente à instituição do direito faz com que esse adquira o estatuto de texto, codificado ou não. A lei, enquanto estatuto ou constituição, necessita sempre da interpretação para a sua aplicação prática, o que significa, por outro lado, que toda aplicação prática implica interpretação. Por isso a jurisprudência, os casos precedentes e a praxis anterior comportam sempre uma função legislativa. Nesse sentido, o âmbito jurídico mostra exemplarmente até que ponto a redação deve sempre ser feita tendo-se em mente sua interpretação, ou seja, uma aplicação correta e razoável. É preciso assinalar que o problema hermenêutico no procedimento oral e no escrito é no fundo o mesmo. Pensemos, por exemplo, no interrogatório de testemunhas. Essas não podem ser pessoas versadas nas condições da investigação e no trabalho de busca da justa sentença. Assim, a pergunta a elas dirigida apresenta o caráter abstrato de “texto”, e a resposta que darão é do mesmo gênero. O que significa que essa resposta tem o caráter de uma declaração escrita. Prova disso é a insatisfação com que as próprias testemunhas acolhem a protocolação de uma declaração. Não podem negar o que dizem, mas não lhe agrada deixá-lo nesse isolamento, querendo interpretá-lo de imediato eles mesmos. A tarefa de fixação e, portanto, a redação do protocolo deve levar isso em conta, uma vez que, na reprodução do que realmente foi dito, o protocolo, na medida do possível, deve ajustar-se à intenção do declarante. O exemplo da declaração das testemunhas mostra, ao contrário, como o procedimento escrito (ou os componentes da escritura no processo) influi no desenvolvimento do diálogo. A testemunha isolada em sua declaração encontra-se de antemão confinada à expressão escrita dos resultados da investigação. Uma situação parecida ocorre quando pedimos para que a promessa, a ordem dada ou a formulação da pergunta sejam feitas por escrito: também isso supõe uma separação da situação comunicativa original e deve expressar o sentido originário em forma de fixação escrita. Em todos esses casos é evidente a referência à situação comunicativa original. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Ao segundo tipo de texto antitextual, denominei pseudotexto. Refiro-me ao modo de falar e de escrever que assimila elementos que não pertencem realmente à transmissão de sentido, mas representam uma espécie de material suplementar, que serve para fazer transições retóricas visando a fluência do discurso. Podemos definir a retórica no discurso dizendo que não representa o conteúdo objetivo das frases nem sequer o conteúdo de sentido transferível ao texto, mas o que exerce um papel puramente funcional e ritual na comunicação oral ou escrita. O que abordo aqui como pseudotexto é, por assim dizer, o componente de linguagem vazio de significado. Todos conhecemos esse fenômeno, por exemplo, na dificuldade de descobrir e de tratar adequadamente o material suplementar do discurso ao traduzir um texto para outro idioma. O tradutor presume que esse material suplementar contém um autêntico sentido e reproduzindo-o destrói a verdadeira fluência comunicativa do texto que tem em suas mãos. Isso é um risco que corre todo tradutor. O que não impede que se possa encontrar algo que corresponda a esse material suplementar. Mas a tarefa da tradução restringe-se unicamente ao conteúdo de sentido do texto, e por isso reconhecer e eliminar essas passagens vazias representa a verdadeira tarefa de uma tradução racional. Convém antecipar que a questão muda por completo quando se trata de textos de verdadeira qualidade literária, textos que eu qualifico de eminentes, como os que vamos conhecer mais adiante. E aqui que nos deparamos com os limites na tradutibilidade de textos literários, limites que se apresentam nos mais diferentes graus possíveis. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Em todo caso, não podemos deixar-nos induzir ao erro de pensar que o problema da hermenêutica só poderia ser colocado desde o ponto de vista do historicismo moderno. Isso, se admitirmos que os clássicos discutiam as opiniões de seus precursores não como historicamente diferentes, mas como se fossem contemporâneas. Mas a tarefa da hermenêutica de interpretação dos textos herdados da tradição também estava presente então. E, supondo-se que esta interpretação sempre inclui a questão da verdade, talvez ela não esteja tão longe de nossas próprias experiências com textos, como quer supor a metodologia da ciência histórico-filológica. Sabe-se que a palavra hermenêutica se reporta à tarefa do intérprete, o qual explicita e comunica algo incompreensível, por ser falado numa língua estranha — mesmo que essa seja a linguagem dos deuses feita de sinais e signos. O saber que se consagra a essa tarefa sempre foi objeto de possíveis reflexões e desenvolvimento consciente. Esse desenvolvimento pode muito bem ter se dado na forma de uma tradição oral, como ocorreu no sacerdócio deifico. Mas a tarefa da interpretação se apresenta com muita decisão onde há literatura escrita. Tudo que foi fixado por escrito tem algo de estranho, exigindo, enquanto tal, a mesma tarefa de compreensão que encontramos quando se fala algo em língua estrangeira. O intérprete do texto gráfico, assim como o intérprete do discurso divino ou humano, tem a tarefa de superar a estranheza e possibilitar apropriação. Essa tarefa pode complicar-se quando a distância histórica entre o texto e o intérprete se tornar consciente. Isso porque, nesse caso, a tradição que sustenta tanto o texto herdado quanto seus intérpretes está rompida. Creio, no entanto, que sob o ímpeto de falsas analogias metodológicas sugeridas pelas ciências da natureza, a hermenêutica “histórica” se distancia em muito da hermenêutica pré-histórica. Tentei mostrar que essas hermêuticas compartilham pelo menos um traço dominante comum: a estrutura da aplicação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
[475] Não é sem razão, portanto, que a obra de arte da linguagem vem em primeiro plano. Independentemente da questão histórica da oral poetry, ela é arte de linguagem em forma de literatura, em um sentido básico. Costumo chamar a textos dessa natureza de textos “eminentes”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.