O fato de que o encanto mágico do quadro se encontra somente nos primórdios da história da imagem, por assim dizer no que faz parte de sua pré-história, encanto que repousa na identidade e na não-diferenciação entre o quadro e o copiado, não significa que uma consciência do quadro que se torna cada vez mais diferenciada, que se afasta cada vez mais da identidade mágica, possa se liberar inteiramente dela. Antes, a não não-diferenciação permanece um traço essencial de toda a experiência da imagem. O caráter insubstituível do quadro, sua vulnerabilidade, sua “sacralidade” encontra, na minha opinião, sua fundamentação adequada na já exposta ontologia do quadro. A sacralização da “arte” no século XIX, que já descrevemos, ainda vive graças a isso. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na essência da emanação reside o fato de que o emanado é uma supra-abundância. Aquilo de onde a emanação flui não se torna menor, por isso. O desenvolvimento desse pensamento através da filosofia neoplatônica, que despedaça o domínio da ontologia grega da substância, fundamenta o status ontológico positivo do quadro. Pois quando o uno original não se torna menor por causa da profusão da multiplicidade que sai dele, isso, diz certamente que o ser se torna mais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Até esse ponto, examinamos essa “ontologia” do quadro usando relações profanas. É notório, porém, que somente o quadro religioso permite que sobressaia inteiramente o verdadeiro poder de ser do quadro. Pois é da manifestação do divino que se afirma alcançar sua plasticidade tão-somente através da palavra e da imagem. O significado do quadro religioso é, portanto, exemplar. Nele torna-se indubitável que o quadro não é a cópia de um ser retratado, mas, de acordo com o ser, se comunica com o retratado. A partir desse exemplo torna-se compreensível que a arte, ela mesma, e num sentido [148] universal, proporciona um crescimento de plasticidade ao ser. A palavra e a imagem não são meras ilustrações subseqüentes, mas, permitem que o que representam seja assim inteiramente o que é. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do jogo como o genuino acontecimento da arte. Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, [149] pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. A originalidade da imagem, portanto, não se limita à função “retratante” do quadro — e, assim, também não ao domínio particular da pintura e das artes plásticas “objetivas”, do qual, por exemplo, a arte da construção ficaria totalmente excluída. A originalidade da imagem é, antes, um momento da essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da arte. A “idealidade” da obra de arte não pode ser determinada através da relação com uma idéia como um ser a ser imitado, reproduzido, senão que, como diz Hegel, como o “aparecer” da própria idéia. A partir do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a primazia do quadro pintado sobre madeira, que faz parte de um acervo de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda, antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Portanto, a forma de arte que é a literatura deixa-se conceber, somente a partir da ontologia da obra de arte — não a partir das vivências estéticas que vão aparecendo ao longo da leitura. A leitura pertence essencialmente à obra de arte literária, tanto como a declamação ou a execução. Todos estes são graus, do que em geral se costuma chamar de re-produção, mas que, na realidade, representa o modo de ser original de todas as artes transitórias e que se tornou exemplar para a determinação do modo de ser da arte em geral. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey, de uma “filosofia da vida”. E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey, de O.F. Bollnow. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Como vimos, o conceito de mundo da vida se opõe a todo objetivismo. Trata-se de um conceito essencialmente histórico, que não tem em mente a um universo do ser, a um “mundo que é”. Nem mesmo a idéia infinita de um mundo verdadeiro, partindo-se da progressão infinita dos mundos humano-históricos, deixa-se formular com sentido na experiência histórica. É verdade que se pode indagar pela estrutura do que abrange a todos os mundos ambientais experimentados alguma vez pelos homens, que representa, com isso, a possível experiência do mundo como tal e, nesse sentido, é que se pode perfeitamente falar de uma ontologia do mundo. Uma tal ontologia do mundo continuaria sendo sempre algo bastante diferente do que poderiam produzir as ciências da natureza, pensadas até o fim. Ela representaria uma tarefa filosófica que toma a estrutura essencial do mundo por objeto. Mas mundo da vida quer dizer outra coisa, o todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos. E aqui já não se pode mais evitar a [252] conclusão de que, diante da historicidade da experiência nela implicada, a idéia de um universo de possíveis mundos da vida históricos é fundamentalmente irrealizável. A infinitude do passado, mas sobretudo o caráter aberto do futuro histórico não é conciliável com essa idéia do universo histórico. Husserl extraiu explicitamente essa conclusão, sem retroceder ante o “fantasma” do relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A idéia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria idéia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da “consciência” ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um “pré” (“dá”), uma clareira no ser, isto é, a [262] diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que “há” tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da “inocência” — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é “existência” e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico [268], natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da “vida” a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo conseqüente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama “existencial”, quando se crê poder opor ao existencial da “cura” um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por conseqüência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma “posição” prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica “dogmática” a idéia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A linguagem como horizonte de uma ontologia hermenêutica VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a idéia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da idéia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por conseqüência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na filosofia grega, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a idéia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Os novos trabalhos de Manfred Frank forneceram, nesse meio tempo, ao leitor alemão as bases do neo-estruturalismo. Isso esclareceu-me muita coisa. De modo especial ficou claro, na explanação de Frank, até que ponto a refutação da metafísica da présence [16] em Derrida orienta-se pela crítica que Heidegger dirige a Husserl e sua crítica à ontologia grega, sob o conceito do “ser simplesmente dado” (“Vorhandenheit”). Nesse proceder, porém, não se faz plenamente justiça nem a Husserl, nem a Heidegger. Husserl não se deteve no ideal-da-significação-una, sobre a qual fala a primeira investigação lógica, mas intentou demonstrar a identidade por ele ali suposta, através de uma análise do tempo. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
No âmbito da filosofia moral, certamente não há nada parecido. Isto porque a partir de Rousseau e Kant não foi mais possível admitir uma perfectibilidade moral do gênero humano. No entanto, a crítica fenomenológica ao neokantianismo encontrou também aqui o seu êmulo, sobretudo no formalismo da filosofia moral de Kant. O ponto de partida assumido por Kant no fenômeno do dever e sua demonstração na incondicionalidade do imperativo categórico pareciam banir da filosofia moral todo conteúdo daquilo que ordena a lei moral. Por mais fraca que seja em seu aspecto negativo, a crítica de Max Scheler ao formalismo da ética kantiana demonstrou sua própria fecundidade pelo projeto de uma ética material dos valores. A crítica fenomenológica de Scheler ao conceito neokantiano de produção representou também um importante [70] estímulo, que levou especialmente Nicolai Hartmann a desviar-se do neokantianismo e dirigir-se à concepção de sua “metafísica do conhecimento”. O fato de o conhecimento não proporcionar nenhuma modificação no conhecido — e muito menos sua geração — , o fato de que tudo que é seja, independentemente de ser conhecido ou não, pareceu-lhe um argumento contra toda forma de idealismo transcendental e também contra a investigação husserliana da constituição. Positivamente, Nicolai Hartmann acreditava que no reconhecimento do ser-em-si do ente e em sua independência frente a toda subjetividade humana poderia traçar o caminho para uma nova ontologia. Dessa forma, chegou bem próximo do novo “realismo”, que começava a se impor com toda força na Inglaterra. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as idéias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A conseqüência dessa idéia fundamental é que tudo que se experimenta no fluir da história com o passar ou com o devir depende de postulados pelos quais articula-se e diferencia-se essa, por assim dizer, liga de acontecimentos que transcorre. O que relativiza todas as fronteiras dentro do acontecer, todas as caracterizações significativas do acontecer como ocaso ou como surgimento, como devir ou como passar é, na verdade, uma postura de extremo nominalismo. Os seccionamentos da história são seccionamentos de nossa consciência que atingem nossas decisões de sentido. Sendo no fundo arbitrárias, elas não possuem nenhuma realidade verdadeiramente histórica. Devemos deixar de lado a crítica dessa idéia da história, que se fundamenta em pressupostos da ontologia grega, e ter presente um fenômeno fundamental que denuncia o falso princípio nominalista desse modo de consideração. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
[330] Os problemas da hermenêutica tiveram sua origem primeira em certas ciências individuais, especialmente a teologia e a jurisprudência, e por fim ganharam impulso também através das ciências históricas. Mas o próprio romantismo alemão já vira com profundidade que a compreensão e a interpretação não aparecem apenas em manifestações da vida fixadas por escrito, como dissera Dilthey, mas atingem o relacionamento geral dos seres humanos entre si e com o mundo. É o que podemos constatar inclusive em certas palavras derivadas, como a palavra compreensão (Verständnis). Em língua alemã, Compreender (Verstehen) significa também “entender algo”. A capacidade de compreensão é a faculdade fundamental da pessoa, que caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobretudo pela via da linguagem e do diálogo. Nesse sentido, a pretensão de universalidade da hermenêutica está garantida. Por outro lado, o caráter de linguagem do processo de entendimento que se produz entre as pessoas representa uma barreira intransponível que o romantismo alemão valorizou em princípio positivamente em seu significado metafísico. A barreira aparece formulada na frase individuum est ineffabile. A frase expressa uma limitação da ontologia antiga (e não somente do período medieval). Mas para a consciência romântica isso significa que a linguagem nunca alcança o mistério último e indecifrável da pessoa individual. Essa idéia foi muito bem expressa pelo sentimento vital da época romântica, sugerindo uma autonomia da expressão de linguagem que não constitui somente seu limite, mas também sua relevância para a formação do common sense que une os seres humanos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da “pre-sença”, a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base européia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt (“mundo da vida”). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloqüente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano “ou isso ou aquilo” exerceu sobre o lema “tanto isso quanto aquilo”, próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] “cura” da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra “volts”?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem [366] ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de “ser” como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de Aristóteles, gerando conseqüentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Heidegger não foi o primeiro a dar-se conta da alienação objetiva que se produziu na linguagem escolástica da metafísica. Já havia sido uma aspiração do idealismo alemão desde Fichte e sobretudo desde Hegel dissolver e fluidificar a ontologia grega da substância e seus conceitos mediante o movimento dialético do pensamento. Houve precursores inclusive dentro da linguagem do latim [367] escolástico, especialmente quando se agregava a palavra viva da pregação em língua vernácula aos tratados escolásticos escritos em latim, como é o caso de Mestre Eckhart ou de Nicolau de Cusa, e também das especulações de Jakob Bõhme. Mas esses foram personagens secundários da tradição metafísica. Quando Fichte escreve Tathandlung (força do ato) em lugar de Tatsache (fato), está antecipando, no fundo, as formulações provocativas de Heidegger, que gosta de inverter o sentido das palavras. Ele compreendeu, por exemplo, Entfernung (distanciamento) como aproximação, ou tomou a frase was heisst denken? (que significa pensar?) como se significasse was befiehlt uns zu denken? (que nos convoca a pensar?); ou quando traduziu Nichts ist ohne Grund (o nada está sem fundamento) como um enunciado sobre o nada, enquanto carente de fundamento: esforços violentos de alguém que nada na contracorrente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Era definitivamente mais prudente comportar-se sem chamar a atenção. Eu me limitava a apresentar os resultados de meus [491] estudos em sala de aula. Na aula era possível movimentar-se livremente e sem impedimentos. Mesmo sobre Husserl pude organizar seminários em Leipzig, sem nenhuma pressão. Muitos pontos que eu elaborava passavam primeiro ao domínio público através de trabalhos de meus alunos, especialmente na excelente dissertação de Volkmann-Schluck, Plotin als Interpret der Platonischen Ontotogie (Plotino como intérprete da ontologia platônica, 1940). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.