A partir disso, porém, há algo mais a dizer. O conceito da literatura não deixa de estar vinculado ao seu receptor. A existência da literatura não é a sobrevivência morta de um ser alienado, que se desse simultaneamente à realidade vivencial de uma época posterior. A literatura é, antes, uma função da preservação e da transmissão espiritual e traz, por isso, a cada situação presente, a história que nele se oculta. Desde a formação dos cânones da literatura antiga, que devemos aos filólogos alexandrinos, toda a seqüência da transcrição e preservação dos “clássicos” constitui uma tradição cultural viva, que não se limita a resguardar o que existe, mas também a reconhecê-lo como exemplar e a transmiti-lo como modelo. Em toda mudança de gosto, forma-se essa grandeza operante que chamamos “literatura clássica”, como modelo permanente para todo o posterior, até os tempos da disputa ambígua dos “anciens et modernes”, e mesmo para além deles. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Obviamente, que Schleiermacher não é o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica nisso, em tornar compreensível aquilo que é intensionado por outros em discursos e textos. A arte da hermenêutica não tem sido nunca o organon da investigação da coisa em causa. Isso distinguiu-a desde o início do que Schleiermacher denomina dialética. Entretanto, sempre que alguém se esforça por compreender — por exemplo, a Escritura Sagrada ou os clássicos — está operando, indiretamente, uma referência à verdade que está oculta no texto e que deve chegar à luz. O que se deve compreender, na realidade, não é uma idéia, enquanto um momento vital, mas enquanto uma verdade. Este é o motivo por que a hermenêutica possui uma função auxiliar e permanece subordinada à investigação da coisa em causa. Também Schleiermacher leva isso em conta, desde o momento em que relaciona a hermenêutica por princípio — no sistema das ciências — à dialética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, de antemão é possível que apenas para Schleiermacher, que autorizou a hermenêutica até fazer dela um método à margem de qualquer conteúdo, pôde ser levada em consideração uma formulação que reivindicou tão fundamentalmente a superioridade do intérprete sobre seu objeto. Se observarmos mais de perto, compreenderemos que a aparição da fórmula em Fichte e Kant corresponde a isso. Pois o contexto em que, ali, aparece essa suposta regra filológica de trabalho, demonstra que Fichte e Kant tinham em mente algo totalmente diferente. Ali não se trata, de modo algum, de um princípio da filologia, mas de uma pretensão da filosofia, ou seja, a de superar as contradições que possam ser encontradas numa tese, através de uma maior clareza conceitual. E pois um princípio que expressa, absolutamente consoante o espírito do racionalismo, que só se alcançam as evidências que correspondem à verdadeira intenção do autor através do pensamento, através do desenvolvimento das conseqüências localizadas nos conceitos do autor — evidências que o autor teria que ter compartilhado, se tivesse pensado com suficiente clareza e nitidez. Também a tese, hermeneuticamente absurda, em que se mete Fichte na sua polêmica contra a interpretação kantiana [199] dominante, segundo a qual “uma coisa é o inventor de um sistema e outra, seus intérpretes e seguidores”, assim como sua pretensão de explicar Kant “segundo o espírito”, estão inteiramente impregnadas com as pretensões da crítica objetiva. A discutida fórmula não forrnula nada mais do que a reivindicação de uma crítica filosófica objetiva. Aquele que melhor souber pensar até o fim aquiío de que fala o autor estará capacitado para ver o que este diz, à luz de uma verdade ainda oculta para o próprio autor. Neste sentido, o princípio, segundo o qual devemos compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si mesmo, é antiquíssimo, tanto como a crítica científica em geral. Todavia, ele recebe sua cunhagem como fórmula para a crítica filosófica objetiva no espírito do racionalismo. E é natural que, como tal, ganhe um sentido muito diverso do que a regra filológica em Schleiermacher. É quase de se supor que justamente Schleiermacher reinterpretou este princípio da crítica filosófica, transformando-o em um princípio da arte da interpretação filológica. E com isso marca-se com exatidão a posição na qual se encontram Schleiermacher [200] e o romantismo. Ao criar uma hermenêutica universal, eles expulsam a crítica guiada pela compreensão da coisa em causa, para fora do âmbito da interpretação científica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A fórmula de Droysen para o conhecimento histórico é, pois, “compreender investigando” (§ 8). Nisso se oculta tanto uma mediação infinita como uma imediatez última. O conceito da investigação, que Droysen vincula, aqui numa cunhagem tão significativa, com o do compreender, deve marcar a infinitude da tarefa que separa o historiador tão profundamente das perfeições da criação artística, como da perfeita sintonia que instauram a simpatia e o amor entre o eu e o tu. Somente investigando a tradição até o fim e “sem descanso”, descobrindo sempre novas fontes e reinterpretando-as sem cessar, a investigação vai se aproximando pouco a pouco da “idéia”. Isso soa como um apoiar-se no procedimento das ciências da natureza e como uma antecipação da interpretação neokantiana da “coisa em si”, como “tarefa infinita”. Porém, observando-se mais de perto, descobrir-se-á que nisso há algo mais. A fórmula de Droysen não delimita o fazer do historiador somente face à idealidade total da arte e face à comunhão íntima das almas, mas também, ao que parece, face ao procedimento das ciências da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma [256] de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Evidentemente, trata-se de algo mais do que uma mera correspondência estrutural de vida e autoconsciência. Hegel tem toda razão quando deriva dialeticamente a autoconsciência a partir da vida. O que está vivo não é, de fato, nunca verdadeiramente conhecível para a consciência objetiva, para o esforço do entendimento que busca penetrar na lei dos fenômenos. O vivo não é algo a que se possa alcançar de fora e contemplá-lo na sua vitalidade. A única maneira pela qual se pode conceber a vitalidade é dar-se conta (Innewerden) dela. Hegel faz alusão à história da imagem oculta de Sais, quando descreve a auto-objetivação interna da vida e da autoconsciência: aqui, o interior vê o interior. Experiencia-se a vida nessa forma de sentir-se a si mesmo, nesse dar-se conta da própria vitalidade. Hegel mostra como essa experiência se acende e se apaga sob a forma de desejo e satisfação do desejo. Esse auto-sentimento da vitalidade, no qual esta se torna consciente de si mesma, é, digamos, uma forma falsa prévia, uma forma ínfima da autoconsciência, na medida em que esse tornar-se consciente de si mesmo no desejo se anula na satisfação do desejo. Todavia, por mais falsa que seja essa forma prévia, esse sentimento vital, frente à verdade objetiva, frente à consciência de algo estranho, é ainda a primeira verdade da autoconsciência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a idéia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, e nela se baseia a tarefa da hermenêutica, mas não no sentido psicológico de Schleiermacher, como o âmbito que oculta o mistério da individualidade, mas num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos conta. Também aqui se manifesta uma tensão. Ela se desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Na suposta ingenuidade da nossa compreensão, na qual nos guiamos pelo padrão da compreensibilidade, o outro se mostra a partir do próprio, e isso de tal modo que ele não se expressa mais, em absoluto, como próprio e como outro. O objetivismo histórico, na medida em que apela para o seu método crítico, oculta o entrelaçamento efeitual-histórico em que se encontra a própria consciência histórica. É verdade que, graças ao seu método crítico, ele desmorona a arbitrariedade e o capricho de certos atualizadores congraçamentos com o passado, mas com isso ele se livra da má consciência de negar aquelas pressuposições que não são arbitrárias nem aleatórias, mas sustentadoras, as quais guiam seu próprio compreender; dessa forma negligencia a verdade que seria acessível, apesar de toda finitude de nossa compreensão. Nisso o objetivismo histórico se parece à estatística, que é um meio propagandístico tão distinto por deixar falar a linguagem dos fatos, e aparenta assim uma objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seu questionamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Para o historiador é uma suposição fundamental que a tradição deva ser interpretada num sentido diferente do que os textos exigem por si mesmos. Por detrás deles e por detrás da intenção de sentido, a que dão expressão, o historiador buscará as realidades de que são expressão involuntária. Os textos aparecem juntos a toda outra classe de materiais históricos, isto é, dos chamados restos. E também esses têm de ser interpretados, isto é, não devem ser compreendidos somente no que dizem, mas também no que neles se testemunha. É aqui onde o conceito da interpretação chega à sua plenitude. A interpretação se torna necessária onde o sentido de um texto não se deixa compreender imediatamente. Deve-se interpretar, sobremodo onde não se quer confiar no que um fenômeno representa imediatamente. O psicólogo interpreta, na medida em que não deixa valer exteriorizações vitais no seu sentido intencionado mas retrocede, questionando o que ocorreu no inconsciente. E o historiador interpreta os dados da tradição para chegar atrás do verdadeiro sentido, que, a um só tempo, se manifesta e se oculta neles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A experiência do tu, que assim se adquire, é objetivamente mais adequada que o conhecimento das pessoas, que só procura calcular sobre eles. É uma pura ilusão ver no outro um instrumento completamente dominável e manejável. Inclusive no servo há uma vontade de poder que se volta contra o senhor, como acertadamente o expressou Nietzsche. Todavia, esta dialética da reciprocidade que domina toda a relação-eu-tu permanece necessariamente oculta para a consciência do indivíduo. O servo que tiraniza o senhor com a sua própria servidão não crê, de modo algum, que nisto se busca a si mesmo. E mais, a própria autoconsciência consiste justamente em subtrair-se [366] à dialética desta reciprocidade, retirar-se reflexivamente desta relação com o outro e tornar-se assim inacessível para ele. Quando se compreende o outro e se pretende conhecê-lo, se lhe subtrai, na realidade, toda a legitimação de suas próprias pretensões. Em particular isto é válido para a dialética da assistência social, na medida em que penetra todas as relações inter-humanas como uma forma reflexiva de impulso para o domínio. A pretensão de compreender o outro, antecipando-se-lhe, cumpre a função de manter, na realidade, a distância a pretensão do outro. Isto é bem conhecido, por exemplo, na relação educadora, uma forma autoritária da assistência social. A dialética da relação-eu-tu se torna mais aguda nessas formas reflexivas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O caráter originário da conversação se mostra também naquelas formas derivadas nas quais a correlação de pergunta e resposta fica oculta. A própria correspondência epistolar representa um interessante fenômeno de transição: é uma espécie de conversação por escrito, que, de algum modo, dilata o movimento do falar que passa ao largo do outro e de se pôr de acordo. A arte epistolar consiste em não deixar que a palavra escrita degenere em tratado, mas em dispô-la à contraposição do interlocutor. Mas também consiste, inversamente, em manter e satisfazer corretamente a medida de caráter definitivo que possui tudo quanto se diz por escrito. Pois a distância temporal que separa o envio de uma carta da recepção de sua resposta não é somente um fato externo, mas um fato que [375] cunha a forma de comunicação da correspondência de uma forma essencial, como uma forma especial da escrita. É significativo que o encurtamento dos prazos postais não somente não tenham conduzido a uma intensificação dessa forma de comunicação, mas que, pelo contrário, tenha favorecido a decadência da arte de escrever cartas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso pode ser reconhecido, e, todavia, sempre iremos perder alguma coisa: é claro que Platão retrocede ante a verdadeira relação entre palavra e coisa. Nesse ponto considerava que a pergunta de como se pode conhecer o ente é na realidade demasiado ampla, e onde fala dela, onde portanto descreve a verdadeira essência da dialética, como ocorre no excurso da sétima carta, a lingüisticidade somente aparece como um momento externo de uma não univocidade cambaleante. Faz parte dos pretextos (proteinomena) que procuram se nos impor e que o verdadeiro dialético deve deixar para trás, tal como a aparência sensível das coisas. O puro pensar as idéias, a dianoia, é, em sua qualidade de diálogo da alma consigo mesma, mudo (aneu phones). O logos é a corrente que, partindo desse pensar, flui ressoando através da boca (reuma dia tou stomatos meta phthoggou): é claro que a sensorialização fônica não pode pretender para si nenhum significado de verdade próprio. Indubitavelmente, Platão não reflete sobre o fato de que a realização do pensamento, concebida como diálogo da alma, implica, por sua vez, uma vinculação, à linguagem. E se na sétima carta se expressa ainda algo disso, essa referência se dá, no entanto, no contexto da dialética do conhecimento, isto é, da orientação de todo o movimento do conhecer na direção do uno (auto). Ainda que aqui se reconheça fundamentalmente a vinculação lingüística, esta não aparece, todavia, no seu verdadeiro significado: só é um dos momentos do conhecimento, e todos eles se manifestam em sua provisoriedade dialética [412], a partir da própria coisa, para a qual se dirige o conhecimento. Tem de se concluir, pois, que o descobrimento das idéias por Platão oculta a essência da linguagem ainda mais do que o fizeram os teóricos sofísticos, que desenvolveram sua própria arte (techne) no uso e abuso da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Seja qual for o caso, onde Platão supera o nível de discussão do Crátilo, apontando para a sua própria dialética, tampouco encontramos outra relação com a linguagem do que a que já se discutiu a esse nível: ferramenta, cópia e produção, e julgamento da mesma a partir do modelo original, a partir das próprias coisas. Portanto, mesmo quando não reconhece ao âmbito das palavras (onomata) nenhuma função cognitiva autônoma, e precisamente quando exige a superação desse âmbito, retém o horizonte de questionamento em que se coloca a questão da “correctura” dos nomes. Inclusive quando não quer saber de uma correctura natural destes (como no contexto da sétima carta), continua mantendo, como padrão, uma relação de semelhança (omoion): cópia e modelo original continuam sendo para ele o modelo metafísico pelo qual ele pensa toda a relação com o noético. A arte do artesão tão bem quando a do demiurgo divino, a arte do orador tão bem quanto a do dialético filosófico copia no seu médium o verdadeiro ser das idéias. Sempre há uma distância (apexei). ainda que o verdadeiro dialético consiga por si mesmo superar essa distância. O elemento do verdadeiro discurso continua sendo a palavra (onoma e rema), a mesma palavra na qual a verdade se oculta até o irreconhecível e mesmo até sua completa anulação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Obviamente que também pode ocorrer que não se chame a alguém pelo seu nome correto, porque pode ser que o tenhamos confundido com outro, ou que não se empregue a “palavra correta” para uma coisa, porque esta não é conhecida. Mas então o que é incorreto não é a palavra, mas o seu emprego. Só aparentemente se refere à coisa para a qual é empregada. Na realidade ela é a palavra adequada para outra coisa diferente, e para esta, sim, é correta. Também aquele que aprende a língua estrangeira e procura fixar o vocabulário, isto é, o significado das palavras que lhe são desconhecidas, pressupõe sempre que essas possuam seu verdadeiro significado, que o dicionário extrai do uso lingüístico e transmite. Poderão ser confundidas essas significações, mas isso não significará senão [415] que as palavras “corretas” são mal empregadas. Por conseguinte, tem sentido falar de uma perfeição absoluta da palavra, pois que entre sua manifestação sensível e seu significado não existe, em absoluto, relação sensível, nem por conseqüência, distância. Tampouco Crátilo teria tido motivo para deixar-se submeter de novo ao jugo do esquema da cópia. Para a cópia, vale efetivamente quem sem ser mera duplicação do original, se parece com ele, e portanto, é outra coisa e remete para esse outro que representa, em virtude de sua similitude imperfeita. Entretanto, para a relação da palavra com o seu significado isso não tem, evidentemente, validez alguma. Nesse sentido, quando Sócrates reconhece que as palavras — diferentemente das pinturas (zoa) — não são somente corretas, mas também verdadeiras (alethe), é como se abrisse de repente uma verdade completamente oculta. Obviamente que a “verdade” da palavra não se apoia na correctura, em sua correta adequação à coisa, mas em sua perfeita espiritualidade, isto é, torna-se patente o sentido da palavra no seu som. Nesse sentido, todas as palavras “são” verdadeiras, isto é, seu ser se abre em seu significado, enquanto que as cópias são apenas mais ou menos parecidas, se se mede segundo o aspecto da coisa, são apenas mais ou menos corretas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Pois, mesmo a própria linguagem tem algo de especulativo, num sentido completamente distinto: não somente no sentido hegeliano da formação prévia e instintiva das relações lógicas da reflexão, mas como realização de sentido, como acontecer do falar, do entender-se, do compreender. Essa realização é [473] especulativa, na medida em que as possibilidades finitas da palavra estão submetidas ao sentido intencionado como a uma orientação rumo ao infinito. Aquele que quer dizer algo busca e encontra as palavras com as quais torna-se compreensível ao outro. Isso não significa que faça “enunciados”. O que quer dizer “fazer enunciados”, e até que ponto isso não é o mesmo que dizer o que se tinha em mente, é algo de que qualquer pessoa pode ter-se dado conta desde que tenha presenciado um interrogatório, ainda que somente na qualidade de testemunha. No enunciado se oculta com precisão metodológica o horizonte de sentido do que verdadeiramente tinha-se que dizer. O que resta é o sentido “puro” do que foi enunciado. Isso é o que passa ao relatório. Mas na medida em que foi reduzido ao enunciado, representa sempre um sentido já desfocado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A idéia de condicionalidade de todo conhecimento pelos [39] poderes históricos e sociais que movem a atualidade não representa apenas um enfraquecimento teórico de nossa crença no conhecimento. Significa também uma conivência real de nosso conhecimento com relação aos poderes da época. As ciências do espírito são colocadas a serviço dessas tendências, são avaliadas pelo significado que seus conhecimentos sociais, políticos, religiosos prestam ao poder vigente. Desta forma, reforçam a pressão que o poder exerce sobre o espírito. Diante de toda espécie de terror, elas são incomparavelmente mais susceptíveis do que as ciências da natureza, porque nelas não há nenhum parâmetro para distinguir, com segurança invejável, o autêntico e correto da intenção oculta e simulada. Desta forma, a última comunidade ética que as liga com o ethos de toda investigação corre o risco de perder-se. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “techne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambigüidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas freqüentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Isso tornou-se muito claro nos seguidores de Dilthey: As tipologias pedagógico-antropológicas, psicológicas, sociológicas, de teoria da arte e históricas, que se difundiam na época, demonstraram, ad óculos, que sua fecundidade dependia sempre da dogmática nelas oculta e latente. Todas as tipologias de Max Weber, Spranger, Litt, Pinder, Kretschmer, Jaensch, Lersch, e outros, mostraram ter um valor de verdade limitado, que ainda assim chegaram a perder quando tentaram abarcar a totalidade dos fenômenos, ou seja, quando quiseram ser completas. Essa “ampliação” de uma tipologia em sentido de uma oniabrangência significa, por motivos intrínsecos, sua própria dissolução, isto é, a perda de seu núcleo dogmático de verdade. Mesmo Psychologie der Weltanschauungen (A psicologia das concepções de mundo), de Jasper, ainda não estava tão livre da problematicidade característica de toda tipologia inspirada em Max Weber e Dilthey, como pretendeu (e conseguiu) mais tarde sua Filosofia. O recurso conceitual à tipologia só pode ser legitimado, na verdade, de um ponto de vista extremamente nominalista. Mesmo a radicalidade nominalista do auto-ascetismo de Max Weber tinha seus limites e complementava-se pelo reconhecimento totalmente irracional e voluntarista de que cada um precisa escolher “seu Deus”, aquele ao qual quer seguir. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Mas isso significa que só compreendemos quando vislumbramos os subterfúgios e desmascaramos as falsas presunções? Essa parece ser a pressuposição de Habermas. Pelo menos é o que ele acredita. O poder da reflexão se mostraria somente nesse caso, e sua impotência se mostraria quando ficamos presos à teia da linguagem e continuamos a nela tecer. Ele pressupõe que a reflexão das ciências hermenêuticas “sacode o dogmatismo da práxis vital”. Por outro lado, afirmar que a ação de tornar transparentes os preconceitos que estão na base da estrutura do compreender poderia desembocar no reconhecimento da autoridade parece-lhe uma afirmação infundada e que comprometeria o legado do Iluminismo — uma violência dogmática! Pode ser também que o conservadorismo (não de um Burke, mas de uma geração que tem atrás de si três grandes convulsões sociais da história alemã, sem jamais ter chegado a uma revolução que abalasse a ordem social vigente) favoreça a visão de uma verdade que facilmente se oculta. Ao desvincular autoridade e razão da antítese abstrata do Iluminismo emancipatório, afirmando sua relação essencialmente ambivalente, não fiz outra coisa que afirmar algo de evidente, e não se trata de uma “convicção fundamental” (174). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Chamo pré-textos à terceira forma de textos antitextuais. Neles incluo todas aquelas expressões comunicativas que não são compreendidas segundo o sentido que elas têm em mente transmitir, mas aquelas que expressam algo que permanece mascarado. [349] Pré-textos são, pois, aqueles textos que interpretamos numa direção que eles não referem. O que eles apresentam é um mero subterfúgio por trás do qual se oculta o “sentido”, e nesses casos a tarefa de interpretação converte-se em descobrir os subterfúgios e comunicar o que se expressa realmente neles. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, alcança a independência unicamente quando utiliza a linguagem como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A conseqüência é que o sentido do discurso como um todo perde prontamente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito viu um dos testemunhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosófico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo imediato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a dialética é a representação do especulativo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Impõe-se assim a tarefa de uma destruição do conceptualidade da metafísica. Esse é o único sentido aceitável da expressão “linguagem da metafísica”: a conceptualidade formada em sua história. A tarefa de uma destruição da conceptualidade alienada da metafísica, que continua no pensamento atual, foi o lema de Heidegger em seus primeiros anos de docência. A tarefa de reconduzir pelo pensamento os termos conceituais da tradição à língua grega, ao sentido natural das palavras e à sabedoria oculta da linguagem que nelas se deve buscar, deu nova vida ao pensamento grego e a sua capacidade para interpelar-nos. Impressiona ver com que vigor Heidegger levou a efeito essa tarefa, e é isso na verdade que constitui sua genialidade. Ele tentou inclusive religar as palavras a seu sentido literal já desaparecido, não vigente. Desse sentido etimológico buscou tirar conseqüências para o pensamento. É interessante notar que a esse respeito o Heidegger tardio fala de “palavras originárias”. Essas palavras expressariam a experiência grega de mundo muito melhor que as teorias e princípios dos primeiros textos gregos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Em muitas oportunidades objetou-se contra as minhas investigações dizendo que sua linguagem seria muito imprecisa. Não posso admitir que isso seja só a descoberta de uma deficiência — o que muitas vezes pode ser suficiente. Ao contrário, parece-me muito mais adequado à tarefa da linguagem conceitual filosófica manter de pé o envolvimento com o todo do saber sobre o mundo baseado na linguagem, e com isso manter viva uma relação com o todo, mesmo que às custas de uma delimitação mais precisa dos conceitos. Isso é a implicação positiva da “carência de linguagem”, que nasceu com a filosofia desde os seus começos. Em momentos muito especiais e sob condições muito específicas, que não podem ser encontradas em um Platão ou em um Aristóteles, em um Mestre Eckhart ou Nicolau de Cusa, nem em um Fichte ou um Hegel, mas talvez em Tomás de Aquino, em Hume e em Kant, essa carência de linguagem permanece oculta sob uma sistemática conceitual equilibrada e só volta a manifestar-se, e nesse caso de maneira necessária, quando o pensar acompanha o movimento do pensamento. Nesse particular remeto à conferência que pronunciei em Dusseldorf, “Die Begriffsgeschichte und die Sprache der Philosophie”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.