Gadamer (VM): obra poética

Que conseqüências ontológicas isso tem? O que é que resulta, quando partimos dessa maneira do caráter lúdico do jogo, a fim de determinar mais acuradamente o modo de ser do ser estético? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte, entendida a partir dele, não são um mero sistema de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar-na-existência da própria poesia. Assim, a questão é saber o que é propriamente, de acordo com o seu ser, essa obra poética, que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que no entanto é o seu ser próprio que nisso se torna representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Pode-se dizer com mais exatidão: a representação mímica da encenação leva isso a ser-aí (Da-sein = existência) o que, aliás, a obra poética exige. À dupla diferenciação da obra poética e de sua matéria e da obra poética e a encenação, corresponde a uma dupla indiferenciação tida como a unidade da verdade, que se reconhece no jogo da arte. Trata-se de um cair-fora da efetiva experiência de uma obra poética, quando se considera a fábula, que lhe está à base, sob, por exemplo, o ponto de vista de sua origem, e da mesma forma, já é um cair-fora da efetiva experiência do espetáculo, quando o espectador (123) reflete sobre a concepção que está à base de uma encenação, ou sobre o desempenho do ator como tal. Uma tal reflexão contém já a diferenciação estética da própria obra com relação à sua representação. Porém, para o conteúdo da experiência como tal, como já o vimos, é até indiferente se a cena trágica ou cômica, que se desenrola diante de alguém, está acontecendo no palco ou ao vivo, quando se é só espectador. Na medida em que se representa assim, como um todo com sentido, então é o que chamamos uma configuração. Não é em si e para isso encontra-se numa intermediação acidental, mas alcança o seu ser verdadeiro na intermediação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O palco teatral é, por isso, uma instituição política de extraordinária espécie, porque somente na encenação transparece aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, o que desperta na repercussão. Ninguém sabe com anterioridade qual será o “resultado” e o que, de alguma forma, irá se perder no vazio. Cada encenação é um acontecimento, mas não um acontecimento que venha a se opor ou posicionar-se paralelamente à obra poética, como algo próprio — a própria obra é que acontece no acontecimento da encenação. É da sua natureza ser tão “ocasional” assim, que a ocasião da encenação traz à fala e deixa transparecer o que está nela. O diretor de teatro, que encena a obra literária, demonstra sua capacidade no fato de que sabe aproveitar a oportunidade. Nisso, porém, age também segundo a indicação. A diferenciação estética bem pode mensurar por dentro a música executada, a partir da tonalidade extraída da leitura da partitura — mas ninguém pode duvidar que ouvir música não é ler. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Ou talvez não exista aqui um limite tão restrito? Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser contadas entre a literatura universal. Do ponto de vista da consciência estética isto é evidente na medida em que a referida consciência considera decisivo na obra de arte não o significado do conteúdo, mas unicamente a qualidade de sua formulação. Porém, na medida em que nossa crítica à consciência estética restringiu fundamentalmente o alcance deste ponto de vista, este princípio de delimitação entre arte literária e literatura tornar-se-á duvidoso. Já havíamos visto que nem sequer a obra de arte poética poderá ser concebida na sua verdade essencial, aplicando-lhe o padrão da consciência estética. O que a obra poética tem em comum com todos os demais textos literários é que ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa compreensão não se volta especificamente para o desempenho de formulação, que lhe convém como obra de arte, mas para o que nos diz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Aqui a dialética de pergunta e resposta não se sustenta. A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar “agora eu sei”. Dela não se extrai uma informação precisa — e pronto! Não se podem haurir de uma obra de arte as informações que ela esconde em si, de modo a esvaziá-la como ocorre com comunicados que recebemos. A recepção de uma obra poética, seja pelo ouvido real ou somente por aquele ouvido interior que escuta na leitura, apresenta-se como um movimento circular, no qual as respostas repercutem em novas perguntas e provocam novas respostas. Isso motiva a demora junto à obra de arte — seja ela de que espécie for. A atitude de demorar-se é certamente a caracterização específica na experiência da arte. Uma obra de arte jamais se esgota. Ela nunca está vazia. Definimos, pelo contrário, a não-arte, a imitação ou a arte interesseira e similares, precisamente pelo fato de julgá-las “vazias”. Nenhuma obra de arte nos fala sempre do mesmo modo. E a conseqüência é que nós também precisamos responder cada vez de modo diferente. Diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma — a unidade da expressão artística — se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas. Considero um erro querer contrapor essa multivariedade infindável à identidade irredutível da obra. Frente à estética da recepção de Jauss e ao desconstrutivismo de Derrida (que nesse ponto se aproximam), parece-me ser o caso de afirmar que insistir na identidade de sentido de um texto não significa recair no superado platonismo de uma estética classista e nem aprisionar-se na metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Enquanto tal, a hermenêutica explicita o que acontecia nessa práxis. A reflexão sobre a práxis da compreensão não se pode dissociar da tradição da retórica. Nesse sentido, uma das contribuições mais importantes de Melanchton à hermenêutica foi ter elaborado a doutrina dos scopi, ou perspectivas. Melanchton observou que, assim como os oradores, no começo de seus escritos, Aristóteles indica a perspectiva a partir da qual é preciso compreender suas afirmações. É bem diferente a tarefa de interpretar uma lei, a Bíblia ou uma obra poética “clássica”. O “sentido” desses textos não se determina para uma compreensão “neutra”, mas somente a partir da perspectiva de sua pretensão de validade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Mas convém mencionarmos outro contexto, a saber, a relação problemática em que se encontra hoje a poética frente à retórica. Isso contém um aspecto hermenêutico. Em suas origens e até os dias de Kant e da destronização da retórica pela estética do gênio e pelo conceito de vivência, ambas as disciplinas estavam fraternalmente (432) unidas, ambas existiam como artes da linguagem, isto é, formas de uso artístico e livre do discurso. Mas havia nelas um prejulgamento que acabou sendo dissipado. Nessa tradição compreendeu-se a linguagem da poesia e a linguagem do discurso artístico a partir do conceito de ornatus. Mas isso significa que a linguagem simples da vida prática representa o exemplo autêntico da linguagem. E, pelo menos desde Vico, Hamann e Herder, a evidência desse enfoque do problema acabou sendo esquecida. Se a poesia representa a linguagem matriz do gênero humano, poderá nos ensinar a respeito da essência da linguagem muito mais do que nos ensinam as ciências que estudam as línguas enquanto idiomas estrangeiros em sua existência alienada nos moldes de meios de comunicação e de informação. Ora, a relação entre poesia e hermenêutica encontra-se em dificuldades por causa do predomínio do jacobismo técnico-industrial, uma vez que a compreensibilidade da obra poética (como a da obra pictórica ou plástica) é considerada um preconceito “clássico”. Parece-me que, atualmente, a tarefa da hermenêutica continua sendo justamente explicar essas figuras de compreensibilidade deficientes (basta recordar as obras de um grupo de investigação sobre hermenêutica, aparecidas nos últimos anos sob o título Poetik und Hermeneutik (Poesia e hermenêutica)). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua “própria” linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e (507) da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em “formar” conceitos arbitrários e “defini-los” com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.