Gadamer (VM): labor hermenêutico

É evidente que a reconstrução das condições sob as quais uma obra transmitida cumpria sua determinação original constituiu, obviamente, uma operação auxiliar verdadeiramente essencial para a compreensão. A única coisa que temos a indagar é se o que se alcança por esse caminho é realmente o mesmo que buscamos, quando tentamos encontrar o significado da obra de arte e se a compreensão é determinada corretamente, se nós a considerarmos como uma segunda criação, como a re-produção da produção original. Uma tal determinação da hermenêutica acaba não sendo menos absurda do que toda restituição e restauração da vida passada. A reconstrução das condições originais, tal qual toda restauração, é, face à historicidade do nosso ser, uma empresa impotente. O reconstruído, a vida recuperada do alheamento, não é a original. Ela obtém, só na sobrevivência do alheamento, uma existência secundária na cultura. A tendência, que está se impondo recentemente, de devolver as obras de arte dos museus ao lugar originário de sua determinação, ou de devolver o aspecto original aos monumentos arquitetônicos, só pode confirmar este ponto de vista. Mesmo o quadro devolvido do museu para a igreja, ou o edifício reconstruído segundo o seu estado antigo, são o que foram — se convertem em objeto para turistas. E um labor hermenêutico, para quem a compreensão significasse reconstrução do original, permaneceria do mesmo modo, apenas num sentido morto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Nesse sentido, o historiador vai mais além do labor hermenêutico. A isto corresponde o fato de que aqui o conceito da interpretação obtém um sentido novo e aguçado. Não se refere somente à realização expressa da compreensão de um dado texto, tarefa que cabe ao filólogo levar a cabo. O conceito da interpretação histórica possui, antes, seu correlato no conceito da expressão, conceito que a hermenêutica histórica não entende no seu sentido clássico e usual, como termo retórico, referente à relação da linguagem com o pensamento. O que expressa a expressão não é somente o que nela deve tornar-se expresso, o que ela intenciona, mas preferentemente aquilo que também chega a expressar-se nesse intencionar e dizer, sem que este deva ser expresso, aquilo, portanto, que a expressão como que “dissimula”. Nesse sentido amplo, o conceito “expressão” não se restringe à expressão linguística. Ele abarca, antes, tudo aquilo atrás de que e tem de ir, urna vez que se queira posicionar-se atrás disto, o qual é de tal modo, que possibilita este estar atrás. A interpretação tem a ver, aqui, não tanto com o sentido intencionado, mas com o sentido oculto, e que tem de ser revelado. E nesse sentido cada texto representa não somente um sentido compreensível, mas também um sentido necessitado de diversas perspectivas de interpretação. Em primeiro lugar ele próprio é um fenômeno de expressão. E compreensível que o historiador se interesse precisamente por esse seu aspecto. Pois o valor testemunhal de um relato, por exemplo, depende efetivamente do que representa o texto como fenômeno expressivo. Nele pode-se adivinhar o que queria o escritor, sem chegar a dizê-lo, a que partido pertencia, que convicções atribuía às coisas, ou ainda, que grau de falta de consciência e de inverdade ter-se-á de lhe atribuir. Evidentemente [342] que não se pode deixar de lado esses momentos subjetivos da credibilidade de um testemunho. Mas sobretudo temos de levar em conta que o conteúdo da tradição, ainda que supondo-se assegurada sua credibilidade subjetiva, deve: ser ainda interpretado, isto é, o texto se entende como um documento cujo sentido real tem de ser elucidado mais além de seu sentido literal, por exemplo, comparando-o com outros dados que permitam avaliar o valor histórico de uma tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.