Para isso, escolhemos, como primeiro ponto de partida, um conceito que desempenhou importante papel na estética: o conceito do JOGO. No entanto, o que nos importa é libertar esse conceito de seu significado subjetivo, que apresenta em Kant e em Schiller e que domina toda a nova estética e toda a nova antropologia. Quando, em correlação com a experiência da arte, falamos de JOGO, JOGO não significa aqui o comportamento ou muito menos o estado de ânimo daquele que cria ou daquele que usufrui e, sobretudo, não significa a liberdade de uma subjetividade que atua no JOGO, mas o próprio modo de ser da obra de arte. Havíamos reconhecido na análise da consciência estética que a contraposição de uma consciência estética e de um objeto não corresponde ao estado das coisas. É esse o motivo por que nos é importante o conceito do JOGO. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
É certo que se pode diferenciar do próprio JOGO o comportamento do jogador, que, como tal, se integra com outros modos de comportamento da subjetividade. Assim, por exemplo, pode-se dizer que, para quem joga, o JOGO não é uma questão séria, e que é por isso mesmo que se joga. Podemos, a partir disso, procurar determinar o conceito do JOGO. O que é mero JOGO não é sério. O jogar possui uma relação de ser própria para com o que é sério. Não apenas porque nisso se encontra sua “finalidade”. Joga-se “por uma questão de recreação”, como diz Aristóteles. O que é importante é que se coloque no próprio JOGO uma seriedade própria, até mesmo sagrada. E, não obstante, não desaparecem simplesmente no comportamento lúdico todas as relações-fins, que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe, ele mesmo, que o JOGO é somente JOGO, e que se encontra num mundo que é determinado pela seriedade dos fins. Mas isso não sabe na forma pela qual ele, como jogador, ainda imaginava essa relação com a seriedade. Somente então é que o jogar preenche a finalidade que tem, quando aquele que joga entra no JOGO. Não é a relação que, a partir do JOGO, de dentro para fora, aponta para a seriedade, mas é apenas a seriedade que há no JOGO que permite que o JOGO seja inteiramente um JOGO. Quem não leva a sério o JOGO é um desmancha-prazeres. O modo de ser do JOGO não permite que quem joga se comporte em relação ao JOGO como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o JOGO e que o que está fazendo é “apenas um JOGO”, mas não sabe o que ele “sabe” nisso. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Seja como for, também a pesquisa antropológica mais recente compreendeu tão amplamente o tema do JOGO que, com isso, chegou no limite do modo de observação que procede da subjetividade. Huizinga procurou descobrir o momento do JOGO em toda cultura, elaborando sobretudo a correlação do JOGO infantil e animal com os “jogos sagrados” do culto. Isso o levou a reconhecer a peculiar diferenciação na consciência lúdica que simplesmente torna impossível diferenciar entre crença e descrença. “O próprio selvagem não conhece nenhuma diferenciação de conceito entre ser e jogar, não conhece nenhuma identidade, nenhuma imagem ou símbolo. E por isso permanece questionável se não se pode chegar melhor e mais próximo ao estado de espírito do selvagem através de sua ação sacral, fixando-nos no termo primário do jogar. No nosso conceito de JOGO desfaz-se a diferenciação entre crença e simulação.” VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Depois que as aporias dessa mudança subjetiva da estética se tornaram nítidas para nós, vemo-nos remetidos de volta à antiga tradição. Se a arte não é a variedade de vivências cambiantes, cujo objeto, cada vez subjetivo, é preenchido com significado, como se fosse uma fórmula vazia, a “representação” terá de ser reconhecida como o modo de ser da própria obra de arte. Isso deveria ser preparado através do fato de que o conceito da representação foi derivado do conceito do JOGO, na medida em que o representar-se é a verdadeira essência do JOGO (espetáculo) — e com isso também da obra de arte. O JOGO jogado é que, através de sua representação, se dirige ao espectador, e de tal maneira que o espectador passa a ser parte integrante do objeto, apesar de todo o distanciamento da contraposição. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
A mesma coisa e de maneira semelhante vale para o espetáculo teatral em si e para aquilo que ele é enquanto poesia. A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fluente como as vivências estéticas, nas quais é experimentado. Antes, na execução e somente nela — o mais claro exemplo é o da música — encontra-se a obra, ela mesma, tal qual no culto encontra-se a divindade. Aqui se torna visível o proveito metódico que se obtém, partindo-se do conceito de JOGO (espetáculo). A obra de arte não é simplesmente isolável da “contingência” das condições de acesso sob as quais se mostra, e onde essa isolação acaba ocorrendo, o resultado é uma abstração, que reduz o ser próprio da obra. O espetáculo só acontece onde está sendo representado, e música em plenitude deve soar. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Disso tudo, tiremos a devida conclusão. O que significa ser estético? Com o conceito do JOGO e da transformação em configuração, que caracterizou o JOGO da arte, procuramos mostrar algo geral: ou seja, que justamente a representação e correspondentemente a execução da obra literária e da música é algo essencial e, de forma alguma, acidental. Em ambas realiza-se apenas o que as próprias obras de arte já são: a existência daquilo que é representado através delas. A temporalidade específica do ser estético, que é a de ter o seu ser no ser representado, torna-se existente no caso da reprodução, como um fenômeno independente e elevado. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do JOGO como o genuino acontecimento da arte. Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. A originalidade da imagem, portanto, não se limita à função “retratante” do quadro — e, assim, também não ao domínio particular da pintura e das artes plásticas “objetivas”, do qual, por exemplo, a arte da construção ficaria totalmente excluída. A originalidade da imagem é, antes, um momento da essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da arte. A “idealidade” da obra de arte não pode ser determinada através da relação com uma ideia como um ser a ser imitado, reproduzido, senão que, como diz Hegel, como o “aparecer” da própria ideia. A partir do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a primazia do quadro pintado sobre madeira, que faz parte de um acervo de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda, antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do JOGO, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no JOGO não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambiguidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambiguidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3
A melhor maneira de determinar o que significa a verdade será, também aqui, recorrer ao conceito do JOGO: o modo como se desenvolve o peso das coisas que nos vêm ao encontro na compreensão é, por sua vez, um processo linguístico, por assim dizer, um JOGO de palavras que circunscrevem o que queremos dizer. São também jogos linguísticos os que nos permitem chegar à compreensão do mundo na qualidade de aprendizes — e quando deixaremos acaso de o ser? Por isso vale a pena recordar aqui as nossas constatações sobre a essência do JOGO, segundo as quais o comportamento do jogador não deve ser entendido como um comportamento da subjetividade, já que é, antes, o próprio JOGO o que joga, na medida em que inclui em si os jogadores e se converte desse modo no verdadeiro subjectum do movimento lúdico. Tampouco aqui se pode falar de um jogar com a linguagem ou com os conteúdos da experiência do mundo ou da tradição que nos interpelam, mas do JOGO da própria linguagem, que nos interpela, propõe e se recolhe, que pergunta e que se consuma a si mesmo na resposta. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3
Portanto, a compreensão é um JOGO, não no sentido de que aquele que compreende se reserve a si mesmo como num JOGO e se abstenha de tomar uma posição vinculante frente às pretensões que lhe são colocadas. Pois aqui, não se dá, de modo algum, a liberdade da autopossessão, que é inerente ao poder abster-se assim e é isso o que pretende expressar, a aplicação do conceito do JOGO à compreensão. Aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem sentido. Está pois justificado que, para o fenômeno hermenêutico, se empregue o mesmo conceito do JOGO que para a experiência do belo. Quando compreendemos um texto nos vemos tão atraídos por sua plenitude de sentido como pelo belo. Ele ganha validez e já sempre nos atraiu para si, antes mesmo que alguém caia em si e possa examinar a pretensão de sentido que o acompanha. O que nos vem ao encontro na experiência do belo e na compreensão do sentido da tradição tem realmente algo da verdade do JOGO. Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e quando queremos saber o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3
Em um empreendimento como este é questão de ordem levar-se em conta a ressonância que o projeto pessoal encontrou junto à crítica. Também nesse caso, não podemos negligenciar que o fato de a história efeitual pertencer à coisa ela mesma é uma verdade hermenêutica. Nesse sentido há que se remeter para o prefácio à 2a edição e o posfácio à 3a e 4a edições. Olhando retrospectivamente, hoje, parece-me que não se alcançou plenamente a consistência de caráter teorético desejada, pelo menos num ponto. Não fica suficientemente claro como se harmonizam os dois projetos fundamentais que contrapõem o conceito de JOGO ao princípio subjetivista que determina o pensamento da modernidade. Por um lado, encontra-se a orientação no JOGO da arte, e ademais, a fundamentação da linguagem no diálogo, que trata do JOGO da linguagem. Com isso coloca-se a questão mais ampla e decisiva: até que ponto consegui tornar visível a dimensão hermenêutica como um além da autoconsciência, e isto quer dizer, não suspender mas conservar a alteridade do outro na compreensão? Tive, assim, que recuperar o conceito de JOGO em minha perspectiva ontológica, ampliada ao caráter universal da linguagem. Tratava-se de vincular estreitamente o JOGO da linguagem com o JOGO da arte, no qual havia vislumbrado como o caso hermenêutico por excelência. Era natural agora pensar a nossa experiência de mundo em seu aspecto da linguagem, que é universal, sob o modelo do JOGO. Já no prefácio à 2 — edição de meu livro assim como nas páginas conclusivas de minha contribuição “Die phänomenologische Bewegung” (O movimento fenomenológico) mostrei a convergência das minhas ideias concebidas nos anos trinta com o conceito de JOGO do Wittgenstein tardio. VERDADE E METODO II Introdução 1
À primeira vista, a tentativa de conjugar a seriedade mortal da fé com a arbitrariedade do JOGO pode causar certa surpresa. Essa contraposição fica de fato desprovida de sentido se mantemos a compreensão usual do JOGO e do jogar, como um comportamento subjetivo e não como um todo dinâmico sui generis, que engloba em si também a subjetividade daquele que está jogando. No meu entender, esse conceito de JOGO é legítimo e originário, como espero ter demonstrado em meu trabalho. Por isso a relação entre fé e compreensão, vista sob o ponto de vista do JOGO, merece uma atenção especial. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9
É sob essa perspectiva que gostaria de considerar a relação entre fé e compreensão. A autocompreensão da fé determina-se pelo fato de que, vista teologicamente, a fé não constitui uma possibilidade do homem, mas um ato da misericórdia de Deus que sobrevêm ao crente. É difícil, contudo, manter essa visão teológica e essa experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver sob o domínio da ciência moderna e de sua metodologia. O conceito de saber que se fundamenta nessa metodologia não tolera nenhuma restrição em sua pretensão de universalidade. Baseada nessa pretensão, toda autocompreensão apresenta-se como uma espécie de autopossessão que exclui com veemência tudo que possa se lhe contrapor e que a separe de si própria. O conceito de JOGO pode tornar-se aqui importante, uma vez que o mergulhar no JOGO, em seu auto-esquecimento extático, não é experimentado como uma perda da posse de si, mas positivamente como a leve liberdade de elevar-se sobre si mesmo. Isso não se deixa apreender, de maneira unitária, como a subjetividade de um auto-esquecimento. Como formulou certa vez o historiador holandês Huizinga, a consciência daquele que está jogando encontra-se num equilíbrio indistinguível entre fé e falta de fé. “O selvagem não conhece a diferença conceitual entre ser e jogar.” VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9
Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de JOGO. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do JOGO a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do JOGO apenas em sua aparência subjetiva. JOGO é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de JOGO do navio ou de JOGO cênico ou do livre JOGO das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do JOGO para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se JOGO quando o jogador individual leva a sério o JOGO, isto é, quando entra seriamente no JOGO, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do JOGO de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O JOGO da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à ideia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto ideia geral, essa ideia da vida justa é uma ideia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de JOGO. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O JOGO das forças complementa-se com o JOGO das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de JOGO, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de JOGO” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o JOGO recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em JOGO. Por isso, a partir do conceito de JOGO, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O JOGO nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 30