Gadamer (VM): interpretação

Interpretation Auslegung, Deutung

Só que, como um olhar no título de seu escrito já pode nos ensinar, enfoca-se, no fundo, falsamente Chladenius se se entende a sua hermenêutica como uma ante-forma da historiografia. Não somente porque o caso da “interpretação dos livros históricos” não é, para ele, o ponto mais importante Ч de qualquer modo, trata-se sempre do conteúdo objetivo dos escritos Ч mas também porque, para ele, todo o problema da interpretação se coloca, no fundo, como pedagógico e é de natureza ocasional. A interpretação se ocupa expressamente de “discursos e escritos racionais”. Para ele, interpretar significa “acrescentar aqueles conceitos que são necessários para a compreensão plena de uma passagem”. A interpretação, portanto, não deve “indicar a verdadeira compreensão de uma passagem”, mas é determinada expressamente para resolver as obscuridades que impedem ao escolar a “compreensão plena dos textos” (Prefácio). Na interpretação é preciso que nos guiemos pela perspectiva do escolar (parágrafo 102). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Compreender e interpretar não são, para Chladenius, a mesma coisa (parágrafo 648). É claro que, para ele, uma passagem que necessite de interpretação é, por princípio, um caso especial, e que, em geral, as passagens podem ser entendidas imediatamente, quando conhecemos o assunto de que tratam, seja porque a passagem nos recorda a coisa em causa, seja porque apenas através da passagem obtemos acesso ao conhecimento da coisa em causa. Não há dúvidas de que, para o compreender, o decisivo continua sendo o entendimento da coisa em causa, a evidência objetiva Ч não se trata de um procedimento histórico nem de um procedimento psicológico-genético. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Disso segue-se Ч o que a hermenêutica não deveria esquecer nunca Ч que o artista que cria uma configuração não é o intérprete vocacionado para ela. Como intérprete não tem nenhuma primazia básica de autoridade face ao que meramente a recebe. No momento em que ele próprio reflete, converte-se em seu próprio leitor. Sua opinião, como produto dessa reflexão, não é padronizadora. O único padrão de interpretação é o conteúdo de sentido da sua criação, aquilo que esta “tem em mente”. A teoria da produção genial realiza, assim, um importante desempenho teórico ao extinguir a diferença entre o intérprete e o autor. Ela legitima a equiparação de ambos, na medida em que o que tem de ser compreendido não é, obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a intenção inconsciente do autor. E não foi outra coisa que Schleiermacher quis dizer com a sua fórmula paradoxal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seja como for, já vimos que o problema hermenêutico recebe um significado sistemático, no momento em que o romantismo reconhece a unidade interna de intelligere e explicare. A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão. Relacionado com isso, está também o fato de que a linguagem e a conceptualidade da interpretação foram reconhecidos como um momento estrutural interno da compreensão, com o que até mesmo o problema da linguagem passa de uma posição ocasional e marginal, para o centro da (313) filosofia. Mas a isso voltaremos mais tarde. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isto, o fenômeno hermenêutico se mostra como um caso especial da relação geral entre pensar e falar, cuja enigmática intimidade motiva a ocultação da linguagem no pensamento. Assim como na conversação, a interpretação é um círculo fechado na dialética de pergunta e resposta. E uma verdadeira relação vital histórica, que se realiza no médium da linguagem e que também, no caso da interpretação de textos, podemos denominar “conversação”. A linguisticidade da compreensão é (393) a concreção da consciência da história efeitual. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A relação essencial entre linguisticidade e compreensão se mostra, para começar, no fato de que a essência da tradição consiste em existir no médium da linguagem, de maneira que o objeto preferencial da interpretação é de natureza linguística. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Na análise do processo hermenêutico, havíamos concluído que a obtenção do horizonte da interpretação é, na realidade, uma fusão horizôntica. Isto se vê confirmado também a partir da linguisticidade da interpretação. Através da interpretação o texto tem de vir à fala. Todavia, nenhum texto, como também nenhum livro fala, se não falar a linguagem que alcance o outro. Assim, a interpretação tem de encontrar a linguagem correta, se é que quer fazer que o texto realmente fale. Por isso, não pode haver uma interpretação correta “em si”, porque em cada caso se trata do próprio texto. A vida histórica da tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre novas. Uma interpretação correta em si seria um ideal sem pensamentos incapaz de conhecer a essência da tradição. Toda interpretação está obrigada a entrar nos eixos da situação hermenêutica a que pertence. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A vinculação a uma situação não significa, de modo algum, que a pretensão de correção, que é inerente a qualquer interpretação, se dissolva no subjetivo ou ocasional. Não vamos voltar a cair no conhecimento romântico que purificou o problema da hermenêutica de todos os seus motivos ocasionais. A interpretação não é tampouco, para nós, um comportamento pedagógico, mas a realização da própria compreensão, que não se cumpre primeiramente só para aqueles em cujo benefício se interpreta, mas também para o próprio intérprete e somente no caráter expresso da interpretação linguística. Graças à sua linguisticidade, toda interpretação contém também uma possível referência a outros. Não existe falar que não envolva simultaneamente o que fala e o seu interlocutor. E isso vale também para o processo hermenêutico. Entretanto, essa referência não determina a realização interpretativa da compreensão ao modo de uma adaptação consciente a uma situação pedagógica, mas essa realização nada mais é que a concreção do próprio sentido. Cabe recordar a maneira pela qual devolvemos todo o valor ao momento da aplicação, que havia sido desterrado por completo da hermenêutica. É o que já vimos: Compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios, e saber que, embora se tenha de compreendê-lo em cada caso de uma maneira diferente, continua sendo o mesmo texto que, a cada vez, se nos apresenta de modo diferente. O fato de que, com isso, não se relativiza em nada a pretensão de verdade de qualquer interpretação, torna-se claro pelo fato de que a toda interpretação é essencialmente inerente sua (402) linguisticidade. O caráter linguístico da expressão, que a compreensão ganha na interpretação, não gera um segundo sentido além do que foi compreendido e interpretado. Na compreensão, os conceitos interpretativos não se tornam temáticos como tais. Pelo contrário, determinam-se pelo fato de que desaparecem atrás do que eles fazem falar na interpretação. Paradoxalmente, uma interpretação é correta quando é suscetível desse desaparecimento. E, no entanto, também é certo que ela tem de vir à representação na sua qualidade de ser destinada a desaparecer. A possibilidade de compreender depende da possibilidade dessa interpretação mediadora. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Mas ao mesmo tempo a correspondência entre dialética hermenêutica e filosófica, que parece derivar-se da construção dialética da individualidade em Schleiermacher e da construção dialética da totalidade em Hegel, não é uma correspondência verdadeira. Pois nessa equiparação desconhece-se a essência da experiência hermenêutica e a finitude radical que lhe subjaz. É claro que toda interpretação tem que começar por algum ponto. Não obstante, seu ponto de partida não é arbitrário. Na realidade não se trata de um começo real. Já vimos como a experiência hermenêutica implica sempre o fato de que, o texto que se trata de compreender, falar a uma situação que está determinada por opiniões prévias. Isso não é uma desfocagem lamentável que obstaculize a pureza da compreensão, mas, a condição de sua possibilidade, que caracterizamos como a situação hermenêutica. Somente porque, entre aquele que compreende e seu texto, não existe uma concordância lógica e natural, é que se pode vir a participar, no texto, de uma experiência hermenêutica. Somente porque o texto tem de ser transladado, de sua distância para o que nos é próprio, é que ele tem algo a dizer para aquele que deseja entender. Somente porque o texto o exige, chega-se, portanto, à interpretação e apenas do modo como ele o requer. O começo aparentemente thético da interpretação é, na realidade, resposta, e como em toda resposta, também o sentido da interpretação se determina a partir da pergunta que se colocou. À dialética da interpretação sempre precedeu a dialética de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ser uma e a mesma coisa e, ao mesmo tempo, ser distinto, esse paradoxo aplicável a todo conteúdo da tradição põe a descoberto que toda a tradição é, na realidade, especulativa. Por isso, a hermenêutica tem que deixar o olhar atravessar o dogmatismo de todo “sentido em si”, tal como o fez a filosofia crítica com relação ao dogmatismo da experiência. Isso não quer dizer que cada intérprete seja especulativo para sua própria consciência, isto é, possua consciência do dogmatismo implicado na sua própria intenção interpretadora. Ao contrário, trata-se de que toda interpretação é especulativa em sua própria realização efetiva e acima de sua autoconsciência metodológica; isso é o que emerge da linguisticidade da interpretação. Pois a palavra interpretadora é a palavra do intérprete, não a linguagem nem o vocabulário do texto interpretado. Nisso se torna patente que a apropriação não é mera reprodução ou mero relato posterior do texto interpretado, mas é como uma nova criação do compreender. Quando se destacou, com toda a razão, a referência de todo sentido ao eu, essa referência significa, para o fenômeno hermenêutico, que todo sentido da tradição alcança aquela concreção em que é compreendido, na relação com o eu que a compreende, e não, por exemplo, na reconstrução de um eu, pertencente à intenção de sentido originária. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

No contexto dessa problemática geral, o conceito de “texto” constitui um desafio peculiar. É, de novo, algo que nos liga aos nossos colegas franceses ou talvez também nos separa deles. Em todo caso, foi esse o motivo que me impulsionou a recolocar o tema “texto e interpretação”. Que relação guarda o texto com a linguagem? Que elemento da linguagem pode passar para o texto? O que é o consenso entre os falantes e o que significa que possa haver textos comuns? No consenso mútuo, como pode surgir algo como um texto comum e idêntico para todos? Como o conceito de texto pode alcançar um âmbito tão universal? Para todo aquele que tenha em conta as tendências filosóficas do século XX, fica claro que esse tema significa algo mais que uma reflexão sobre a metodologia das ciências filológicas. O texto é algo mais que o título de um campo de objetos da investigação literária. A interpretação é muito mais que a técnica de exposição científica de textos. No século XX, ambos os conceitos têm modificado radicalmente seu grau valorativo em nossos esquemas mentais e em nossa concepção de mundo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Compreende-se assim a importância que foi ganhando o conceito de interpretação. Essa palavra expressava originalmente a relação mediadora, a função do intérprete entre pessoas que falavam idiomas diferentes, a função de tradutor. Daí, ela passou a exercer a função de deciframento de textos de difícil compreensão. No momento em que o mundo intermediário da linguagem se apresenta à consciência filosófica em sua significação predeterminante, a interpretação foi obrigada a ocupar também na filosofia uma espécie de posição-chave. A ascensão triunfal dessa palavra começou com Nietzsche e passou de certo modo a representar um desafio para qualquer tipo de positivismo. Existirá uma realidade que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre aí sua realização? Não é a própria realidade o resultado de uma interpretação? A interpretação é o que oferece a mediação nunca acabada e pronta entre homem e mundo, e nesse sentido a única imediatez verdadeira e o único dado real é o fato de compreendermos algo como algo. A crença nas proposições protocolares como fundamento de todo conhecimento não durou muito inclusive no Círculo de Viena. Mesmo no âmbito das ciências naturais, a fundamentação do conhecimento não pode evitar a consequência hermenêutica de que a realidade “dada” é inseparável da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.